Ao assistir ao espectáculo “Ofertório”, o cidadão-espectador dá por si a pensar: só Caetano Veloso é capaz de juntar em palco a filharada toda, de diferentes mães, sem que haja qualquer vestígio de mágoa ou ressentimento pelo palco ou nos bastidores. Ele que, entre tours e estúdios, não será o pai normativo, sempre em casa. Um pai-pantufa. Caetano Veloso não é isso.

Pelo contrário: o que passa do show para a plateia, entre canções, sorrisos, pequenas histórias e danças, é uma paz maior, uma proximidade não só familiar mas artística. Cada um tem o seu lugar e todos dão as mãos uns aos outros.

“Todas as notas deste show são para João Gilberto”, disse, quase no fim, Moreno Veloso, o mais velho da tríade de descendentes do autor de “Qualquer Coisa” e de “Abraçaço”. Notas que edificam canções e histórias. Pequenas narrativas, curtos episódios que fazem como que uma glosa a cada canção e às personalidades de quem dá voz a este “Ofertório”, presente de Caetano para a sua mãe, religiosa, ao contrário dele próprio.

Ficámos a saber, por exemplo que Tom não gosta de cantar (ele que tem um timbre muito próximo do do pai), mas que acabou por fazê-lo com uma canção com a sua assinatura. Tocou-a como se apresenta: de perna cruzada e pé descalço. A certa altura levantou-se para dançar. Aliás, quase todos deram o seu pé de dança. Só Zeca Veloso, o estreante,  o mais sério do grupo, sempre descontente com o desenho das músicas e da sua interpretação, não sambou.

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Se a paternidade é uma evidência do espectáculo, é oferecido um espaço generoso para a maternidade. O momento mais alto é aquele em que esse mesmo Zeca Veloso, o filho do meio, interpreta, com a sua voz de falsete, uma canção de sua autoria chamada “Todo Homem”. A canção transporta no ventre um verso singelo e potente: “Todo homem precisa de uma mãe”. O cenário, esse, é atravessado por um cordão umbilical.

De resto, “Ofertório”, acústico, é levado por aquelas canções – como “Alegria, Alegria”, “Boas vindas”, “Trem das Cores”, – que celebram o Sol e os melhores sentimentos. E “Um Passo à Frente” – que Caetano escreveu sobre Santo Amaro, território baiano de onde veio. E até se ouviu “O Leãozinho”, anunciado com terna ironia, apresentado como uma oferta para o pai. “Não sabemos todas as músicas dele. Então tivemos de aprender”, disse Moreno, provocando riso na plateia.

A atitude, o que perpassa para os espectadores, fica condensada no tema “How Beautiful Could a Being Be”, composição que Moreno já havia escrito com termos, diremos, semelhantes aos nove anos. Os dois, os únicos que já haviam estado em palco noutro espectáculo, levantam-se e ficam lado a lado, com baiano balanço. Coisa bonita de se ver.

Nessa altura, o público, diga-se, também se podia levantado. Preferiu ficar a assistir a um tipo raro de felicidade familiar. Descontraído, doce, cúmplice. E saiu do Teatro Micaelense de sorriso nos lábios, o mesmo sorriso com que Caetano canta e nos inspira.