Jesús Gil y Gil morreu em maio de 2004. Nessa altura, há mais de 15 anos, já não era autarca em Marbella e já não era presidente do Atl. Madrid: o primeiro cargo abandonou-o dois anos antes, após ter sido condenado pelo Supremo Tribunal por desvio de fundos públicos e prevaricação; o segundo, que ocupava desde 1987, deixou-o cerca de um ano antes de morrer. 15 anos depois, Gil y Gil voltou a estar em todas as esquinas de Madrid.

A HBO decidiu fazer uma série documental sobre a vida de Jesús Gil y Gil, histórico presidente do Atl. Madrid, histórico autarca em Marbella, histórico presidiário em três períodos distintos. A enorme publicidade à série, que tem com título “O Pioneiro”, está espalhada em cartazes, outdoors e autocarros um pouco por toda a capital espanhola: de repente, Gil y Gil voltou à ribalta e às conversas do dia a dia. Mas nem sequer foi só por agora ser protagonista daquela que será, com certeza, uma das sérias mais faladas do ano.

Presidente, político, presidiário. A vida de Gil y Gil deu uma série documental

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A chegada de Gil y Gil à liderança do Atl. Madrid está intrinsecamente ligada à chegada de Paulo Futre ao mesmo clube – nem que seja pela mítica história do Porsche amarelo que ofereceu ao jogador português. Mas há mais: a contratação de Futre ao FC Porto, que tinha acabado de conquistar a Taça dos Campeões Europeus de 1987 ao vencer o Bayern Munique, foi a maior e mais engenhosa manobra de campanha que Gil y Gil aplicou para vencer as eleições para a presidência do Atl. Madrid.

O clube da capital espanhola atravessava nesse verão, há mais de 30 anos, um período de instabilidade que se arrastava desde a morte de Vicente Calderón. Javier Castedo, então vice-presidente, liderou os destinos do Atl. Madrid até ao ato eleitoral, ao qual se apresentaram quatro candidatos: Salvador Santos Campano, que tinha sido vice-presidente de Calderón durante muitos anos; Agustín Cotorruelo, antigo ministro do Comércio que já tinha integrado uma Comissão de Gestão dos colchoneros; Enrique Sánchez de León, antigo ministro da Saúde e da Segurança Social; e Jesús Gil y Gil, empresário sem quaisquer antecedentes no dirigismo desportivo e ex-presidiário, já que tinha passado cinco anos preso depois de o restaurante do seu mais recente complexo residencial na província de Segóvia colapsar durante um banquete, provocando a morte a 58 pessoas e ferindo outras 150. Não é difícil adivinhar quem partia com alguma desvantagem.

O jogador português chegou a Madrid em 1987, saiu em 1993 e voltou em 1997 para a penúltima temporada da carreira

Uma desvantagem, porém, que se foi esbatendo à medida que a campanha foi avançado e que se evaporou de vez na noite antes das eleições. Face às constantes promessas dos outros candidatos, que envolviam sempre contratações de jogadores e largos investimentos, Gil y Gil convocou alguns adeptos à discoteca Sala Jácara, no centro de Madrid. Quando apareceu, trazia consigo Paulo Futre: apresentou o jogador como reforço do Atl. Madrid caso ganhasse as eleições e mostrou, conforme referiu anos mais tarde, que enquanto uns falavam, ele agia. Horas depois, foi eleito presidente dos colchoneros com quase mais dois mil votos do que Sánchez de León e viajou já enquanto líder do clube à final da Taça do Rei que o Atl. Madrid disputou (e perdeu) nessa temporada com a Real Sociedad.

Esta segunda-feira, mais de 30 anos de ser apresentado de forma muito pouco ortodoxa numa discoteca enquanto trunfo de campanha, Paulo Futre estava na primeira fila do auditório do Wanda Metropolitano a assistir à apresentação de João Félix. Em Madrid, apesar de só ter conquistado duas Taças do Rei ao longo de sete anos (seis na primeira passagem pelo clube, um na segunda), Futre tornou-se uma das figuras mais queridas dos adeptos e é até hoje um dos grandes embaixadores do clube. Em comum com Félix, que abraçou assim que o jovem jogador entrou na sala para ser apresentado, tem o facto de ter sido na altura o jogador mais valioso do futebol português (custou, na altura, uns agora absurdos 850 mil euros), mas também o de ter sido contratado para liderar um projeto e uma estrutura, para lá de uma equipa.

A gratidão ao Benfica, as comparações com Ronaldo, o lugar ao lado de Futre: os cinco pontos chave da apresentação de João Félix

João Félix foi o eleito para substituir Griezmann e ser a nova figura de proa do Atl. Madrid. Paulo Futre foi o escolhido para encabeçar a liderança de Gil y Gil e ser o nome maior de uma nova era nos colchoneros. A ligação entre os dois, por muito que exista de forma literal, tem sido explorada e avivada pelo próprio Atl. Madrid, que parece querer que Félix seja o novo el portugués em Madrid. “É um menino de ouro. Não tenho dúvidas de que vai ser melhor do que eu. Vai conseguir aguentar a pressão do Wanda Metropolitano, o que não é fácil. Apesar dos 19 anos, está preparado para a luta, para a guerra”, garantiu Futre na apresentação de Félix. Os dados estão lançados e o legado não é propriamente leve de carregar.