João Félix tornou-se esta semana o 17.º jogador português a assinar pelo Atl. Madrid. Entre muito entusiasmo e antecipação, principalmente por se tratar do negócio mais valioso do futebol português e da contratação mais cara da história do clube espanhol, o jovem formado no Benfica foi apresentado como a imagem da próxima era dos colchoneros. Foi o assunto da semana no que à imprensa desportiva diz respeito — mas João Félix está longe de ser o único a falar português nos corredores do Atl. Madrid.

No início da temporada passada, quando Félix ainda sonhava com uma aventura na equipa principal do Benfica, Dolores Silva trocou o Sp. Braga pelo Atl. Madrid e integrou as fileiras daquele que era, na altura, o bicampeão espanhol de futebol feminino. A jogadora de 27 anos, natural de Queluz, começou a carreira no 1.º Dezembro, um dos grandes impulsionadores do futebol feminino em Portugal, e mudou-se em 2011 para a Alemanha, onde representou o Duisburg e o Jena. Foi a época sólida que realizou no regresso a casa, quando aceitou o convite do Sp. Braga, que chamou a atenção dos colchoneros.

“Comecei a querer jogar à bola muito nova, com uns cinco ou seis anos, andava sempre com uma bola atrás. E também era muito incentivada pelo meu pai, que foi quem me inspirou mais. Andava sempre comigo a jogar, sempre que tinha um tempo antes ou depois do trabalho. Foi ele que me ajudou a ir para uma equipa de rapazes”, começa por contar Dolores, que na temporada passada ajudou o Atl. Madrid a sagrar-se tricampeão espanhol e a chegar à final da Taça da Rainha. Esses primeiros anos nas camadas jovens dos clubes, quando as equipas ainda são mistas e a possibilidade de algum dia jogar só com raparigas, de igual para igual, acabam por provocar muitas desistências e abandonos de jogadoras. Não foi o caso de Dolores.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Nunca pensei em desistir. Claro que passei por momentos difíceis, todos temos momentos difíceis e ainda existe muita desigualdade, mas nunca pensei. Acho que o mais importante foi a paixão. Mesmo com as dificuldades todas nunca pensei em deixar ou fazer outra coisa”, explica a internacional portuguesa, que ainda assim reconhece que existiu uma espécie de momento de revelação. “Acho que a primeira vez que pensei que isto podia mesmo resultar foi quando passei para a equipa sénior do 1.º Dezembro, nessa altura de transição. A treinadora era a Helena Costa. Era muito nova, tinha só 15 anos mas já jogava com muitas internacionais, porque nessa altura a equipa do 1.º Dezembro era quase a equipa da Seleção Nacional. Foi aí que pensei que podia chegar mais longe, alcançar os meus sonhos, chegar à Seleção”, recorda Dolores, que já leva mais de 100 internacionalizações por Portugal (é a sexta mais internacional de sempre e a quarta em atividade, atrás de Carla Couto, Edite, Cláudia Neto, Ana Borges e Carole Costa).

Menos de uma semana depois do final do Mundial de futebol feminino, conquistado pelos Estados Unidos, as ondas de choque daquele que foi considerado logo à partida o Campeonato do Mundo mais importante de sempre continuam a fazer-se sentir. Ada Hegerberg não foi por estar incompatibilizada com a federação norueguesa, Marta protestou contra a desigualdade entre homens e mulheres no futebol e Megan Rapinoe foi a protagonista do Mundial — dentro e fora dos relvados –, entrando até numa disputa verbal com Donald Trump. À parte tudo isto, foram batidos recordes de assistência e recordes de espectadores de forma consecutiva, tornando-se este o Mundial com maior impacto mediático global.

“Acho que finalmente as pessoas deram o ‘clique’ para o futebol feminino. A maior visibilidade levou obrigatoriamente a uma mudança de mentalidade e até a mais respeito pelo nosso trabalho. A partir daqui só temos de tentar conseguir mais coisas. Aquilo que mais queremos é ver o nosso trabalho reconhecido”, garante a jogadora do Atl. Madrid, que explica depois por que é que defende que o futebol feminino português pode começar a sonhar com conquistas internacionais. “Acho que estamos a viver uma fase de evolução. É preciso continuar a fazer o trabalho que está a ser feito. As condições melhoraram muito quando os clubes profissionais apostaram no futebol feminino e agora existe formação, é um processo que acompanha as jogadoras desde muito novas até às equipas principais e que faz com que cheguem mais preparadas à Seleção. Portugal tem muito talento, já conseguiu estar num Europeu [em 2017] e pode um dia estar presente numa fase final de um Mundial”, acrescenta Dolores.

Dolores cumpriu a primeira internacionalização pela Seleção Nacional em 2007, há 12 anos

Na temporada passada, Dolores Silva juntou-se a um grupo de jogadoras portuguesas que jogam no estrangeiro e que é encabeçado por Cláudia Neto, capitã da Seleção Nacional que representa os alemães do Wolfsburgo há dois anos. Já este verão, esse mesmo conjunto foi engrossado por Matilde Fidalgo, que trocou o Sp. Braga pelo Manchester City, e subiu de nível com Jéssica Silva, que deixou os espanhóis do Levante para se juntar ao tetracampeão europeu Lyon. “Mostra que Portugal tem talento e que pode competir com os melhores. É um enorme orgulho para todos e dá um certo ânimo às jogadoras mais novas que estão a começar a carreira”, indica Dolores, que adianta depois que continua a sentir-se “privilegiada” por poder fazer aquilo de que gosta todos os dias. “Quantas pessoas é que não davam tudo para poder fazer aquilo que adoram todos os dias? Seja em que área for, na música, na arte, noutra coisa qualquer. Faço aquilo que é a minha paixão todos os dias e por isso sou privilegiada. Claro que há dificuldades mas não podemos deitar-nos e só pensar nas coisas más”, defende a jogadora do Atl. Madrid.

“Jogava à bola com as laranjas quando ia ao quintal”. Jéssica Silva sobre o passado, o futuro e o presente na melhor equipa do mundo

Dolores, que na próxima temporada vai tentar ajudar o Atl. Madrid a chegar ao tetracampeonato espanhol e o mais longe possível na Liga dos Campeões, é então a outra portuguesa a brilhar nos colchoneros. Conselhos para João Félix, tem alguns mas garante que o jovem jogador não precisa: “Vai conseguir ter sorte. Só tem de ser ele mesmo. Parece ter a cabeça no lugar. Tem de acreditar e trabalhar e fazer aquilo que disse, que é seguir o caminho dele”.