Há uma particularidade no contrato assinado entre a sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, o famoso saco azul do Grupo Espírito Santo (GES),  e o antigo gestor da PT, Zeinal Bava, para justificar os 25 milhões de euros que o primeiro transferiu para o segundo. No documento que ambos garantem ter assinado em dezembro de 2010, o Bilhete de Identidade de Zeinal Bava é descrito na minuta como tendo sido emitido em 2014, quatro anos depois. A defesa de Bava diz que houve um “lapso de escrita” e que o documento foi emitido em 2004 com data de validade de dezembro de 2014.

Este pormenor foi detetado pelo juiz Ivo Rosa que conduz a instrução do processo que nasceu da Operação Marquês. Num despacho assinado esta terça-feira pela sua mão, e a que o Observador teve acesso, o juiz dá conta desse pormenor que terá escapado ao próprio Ministério Público. Ainda assim, dá oportunidade a Zeinal Bava para apresentar ao processo um documento comprovativo, não vá este pormenor tratar-se de “um lapso de escrita” que faz coincidir o contrato com a data que consta na acusação.

A defesa de Zeinal Bava, a cargo do advogado José António Barreiros, respondeu imediatamente e confirma que existiu mesmo um “lapso de escrita” da parte de quem elaborou a minuta.

Segundo Ivo Rosa, o contrato que ambos dizem ter celebrado tem o dia 20-12-2010 como sendo a data de assinatura dos dois arguidos e que o Ministério Público diz ser ter sido falsificado. Em sede de instrução ambos confirmaram que esse contrato, escrito em inglês e com o nome de agreement, destinado à aquisição de ações da PT, tinha sido celebrado nesse mês de dezembro de 2010 — contrariando, assim, a tese da acusação que diz que foi celebrado depois de novembro de 2014, quando o ex-primeiro-ministro José Sócrates foi detido, porque Salgado teria ficado “receoso” de ser descoberto.

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Um “lapso de escrita” ou uma arma para o Ministério Público?

O juiz, que tem nas mãos a decisão de mandar ou não o processo para julgamento, lembra que a acusação do Ministério Público dita, então, que a celebração do contrato terá sido feita a 25 de fevereiro de 2015, porque também Bava ficou receoso que viessem a ser detetados os pagamentos com origem em Salgado, depois de ser ouvido na Comissão Parlamentar de Inquérito aos BES.

Ivo Rosa percebeu agora que, ao ler esse contrato, na parte relativa à identificação de Bava aparece uma identificação emitida a 16 de dezembro de 2014.

Daqui decorre, tendo em conta a data 16-12-2014, uma discrepância quanto ao momento de celebração do contrato. Com efeito não faz sentido que um contrato feito e assinado em 2010 contenha a referência a um documento de identificação com a data de 16-12-2014″, lê-se no despacho.

Ainda assim, Ivo Rosa dá o benefício da dúvida: podendo ser um mero “lapso de escrita”, o juiz pede que o arguido junte ao processo dados sobre o seu Cartão de Cidadão (que afinal é ainda um bilhete de identidade) para confirmar a data em que foi emitido, renovado e a sua validade desde 2010. Caso não seja possível, que solicite aos serviços centrais de identificação civil.

No mesmo despacho, o juiz admitiu o recurso do Ministério Público relativamente à sua decisão de não tomar em consideração as declarações de Ricardo Salgado feitas noutro processo no caso Marquês.

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Defesa confirma “lapso de escrita”: documento tinha validade até dezembro de 2014

Notificado esta quarta-feira do despacho de Ivo Rosa, o advogado de Zeinal Bava respondeu de imediato:

Trata-se de um lapso de escrita, pois onde se refere que o documento de identificação foi ‘issued on 16DEC2014 [emitido em 16DEZ2014]’ quereria dizer-se ‘valid until 16DEC2014 [válido até 16DEZ2014]”, lê-se no requerimento enviado por José António Barreiros a que o Observador teve acesso.

Segundo Barreiros, “o bilhete de identidade do ora requerente havia sido emitido a 16 de Dezembro de 2004 — e em face da legislação em vigor até à data e alterado em 2017 — tinha um prazo de validade de dez anos, ou seja, até 16 de Dezembro de 2014 — pelo que, aquando da outorga do contrato de alocação fiduciária, a minuta deveria ter assinalado esta data como sendo a da validade, mas, por lapso que não foi então revelado, aludiu a tal data como sendo de emissão.”

O advogado de Bava fez ainda questão de juntar cópia do BI que Bava terá usado em 2010 para assinar o contrato com a ES Enterprises, onde é possível constatar que no espaço da “validade” está inscrita a data de “16/12/2014”.

Texto alterado às 20h38 com a correção da expressão cartão do cidadão e introdução do requerimento que a defesa de Zeinal Bava enviou para o juiz Ivo Rosa.