“Há uma possibilidade forte” de o Parlamento Europeu “dar uma pedrada no charco” e chumbar, na próxima semana, o nome de Ursula von der Leyen para a presidência da Comissão Europeia, garante o ex-eurodeputado Rui Tavares. O nome da alemã, que foi proposto por um Conselho da UE “mal dormido, cansado”, não deve ser aprovado pelos eurodeputados, defende o historiador, porque se trata de alguém que não participou na campanha eleitoral, para que pudesse ser avaliado pelos eleitores. Além disso, a escolha de alguém que não Frans Timmermans, que foi o segundo nome proposto depois de Manfred Weber, vai dar força às “democracias iliberais” como a Hungria e a Polónia e, assim, “acelerar a degradação do Estado de Direito na União Europeia”.

As declarações de Rui Tavares foram feitas numa conferência na Culturgest, em Lisboa, um evento organizado na sexta-feira pela Caixa Geral de Depósitos e o Instituto Europeu. O historiador falou na mesma mesa-redonda em que estava outro ex-eurodeputado, Diogo Feio. Apesar de os dois virem de quadrantes ideológicos distintos, concordaram que este processo de nomeação por parte do Conselho Europeu foi uma imagem do pior que existe no funcionamento da União Europeia. A diferença é que, ao passo que Rui Tavares tem esperança que o Parlamento Europeu dê “uma pedrada no charco” (ao chumbar o nome proposto), Diogo Feio mostrou-se pessimista: “Este processo vai ser mau, vai ser longo e vai ter um mau resultado“, afirmou o ex-eurodeputado ligado ao CDS-PP.

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Na conferência “Que União Europeia é esta?”, Diogo Feio deixou claro que, se ainda estivesse no Parlamento Europeu, votaria desfavoravelmente nesta nomeação. “Não porque tenha alguma coisa de especial contra ela mas porque acho que as coisas não se podem fazer assim”, afirma o ex-eurodeputado, numa alusão ao longo e complexo processo que passou pelos chumbos a Manfred Weber (líder da família política europeia mais votada) e a Frans Timmermans (vindo da área socialista, que teve a pasta do respeito pelo Estado de direito na comissão Juncker) e acabou com a nomeação de uma mulher que, para a maioria dos europeus, era uma desconhecida: Ursula von der Leyen.

“Há uma lição que eu não percebo como é que os políticos não aprendem. Não se pode prometer uma coisa e no segundo a seguir fazer outra. Isso só leva ao descrédito — e foi o que aconteceu neste processo”, lamenta Diogo Feio, acrescentando que esta nomeação veio de um autêntico “cenário de horror, em que houve umas combinações entre alguns primeiros-ministros, com outros primeiros-ministros que não sabiam de nada, um caldo de combinações de nomes, formando-se um puzzle que foi sendo composto…  não podia dar em outra coisa que não num disparate”.

“Este processo vai ser mau, vai ser longo e vai ter um mau resultado”, prevê Diogo Feio

Rui Tavares argumenta que, caso seja confirmado o nome de Ursula von der Leyen, isso dará força a países como a Hungria e a Polónia — do chamado “Grupo de Visegrado” — que querem afirmar-se na União Europeia como “democracias iliberais”. “É essencial não deixar a Hungria e a Polónia ganharem este braço de ferro“, afirma o ex-eurodeputado, ligado ao partido Livre, que se insurge contra o “bloqueio” a Frans Timmermans, que, na sua opinião, foi chumbado por ter sido o rosto das reprimendas lançadas contra países que tiveram iniciativas legislativas internas que desafiam os valores fundamentais da União Europeia.

É essencial garantir que só porque um comissário teve a pasta do Estado de Direito, enterrou a sua carreira política por ter feito aquilo que lhe era pedido. Sim, porque é esta a mensagem que passa. Desta forma, o próximo comissário que tiver essa pasta, se não quiser que lhe aconteça o mesmo, vai deixar a Hungria e a Polónia em paz, o que vai acelerar a degradação do Estado de Direito na UE”.

Rui Tavares avisa que a Europa vive um momento delicado, à entrada numa década decisiva. É, na sua opinião, uma Europa que se divide entre “países pequenos e países que ainda não perceberam que são pequenos — daqui a umas décadas nenhum estará no G8”.

Ora, o historiador alerta que “em 2010 tivemos a Hungria, um país cujo governo mostrou desde logo que queria deliberadamente afastar-se da linha europeia com a criação de uma espécie de ‘democracia iliberal’, em que a Constituição do país mudava de cada vez que o governo queria”. E, ao olhar para a História europeia, é possível detetar um padrão preocupante: “É, de certa forma, o recapitular de uma crise do Estado de Direito como aconteceu no período entre guerras”, onde várias democracias que existiam na Europa deixaram de o ser — e “muito porque a Sociedade das Nações (um percursor da ONU mas, também, da UE) se descredibilizou porque não soube fazer face ao surgimento de forças anti-democráticas em vários países europeus, como na Alemanha e em Itália”.

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À luz dessa memória histórica, neste momento, é claro na opinião de Rui Tavares que “se a UE falhar perante a deriva anti-democrática na Hungria, outros governos, noutros Estados da UE, tentarão ir até onde virem que [Viktor] Órban consegue ir“. Já houve, lembra o ex-eurodeputado, tentativas “iliberais” na Polónia, na Eslováquia, na Roménia, em Malta, lembra Rui Tavares: esta é uma crise “contagiosa”.

E a União Europeia está mal equipada para conter esta ameaça, já que “o problema do ponto de vista europeu é que é possível penalizar um Estado que viola os valores fundamentais, como o Estado de Direito, a liberdade, o respeito pelos direitos humanos — mas se forem dois, já não se consegue”.

Porquê? Porque se “pode agir contra um Estado prevaricador, mas por defeito dos tratados não é possível agir contra dois”, já que é preciso unanimidade (excetuando o Estado em questão) para avançar com medidas. Ou seja, se houver pelo menos dois Estados prevaricadores, podem gerar-se vetos cruzados para se salvarem um ao outro — “e a Polónia e a Hungria já reconheceram que o fizeram”.

É para colocar um travão a este movimento, e para “baralhar e dar de novo”, que o Parlamento Europeu deve dar um “gesto de maturidade democrática europeia” e chumbar a proposta do Conselho. E este não é apenas um desejo de Rui Tavares — é, também, algo que, do ponto de vista analítico, pode acontecer, dado que “o Parlamento Europeu tem aproveitado, nos últimos anos, todas as oportunidades que teve para ganhar poder, e esta é uma oportunidade clara para o fazer”.

Se o chumbo a Ursula von der Leyen se confirmar, Rui Tavares reconhece que “estaremos perante uma crise constitucional europeia, em que vamos ter um braço de ferro entre o Parlamento Europeu e o Conselho Europeu — mas essa não é uma crise que o parlamento tenha escolhido”.

Um chumbo seria uma forma de deixar claro, perante os cidadãos europeus, que esta não é a forma de escolher um líder”, sublinha Rui Tavares.

Diogo Feio concorda que este é um caso que demonstra a importância dos processos democráticos. “Os cabeças de lista foram apresentados como candidatos à presidência da Comissão Europeia e, agora, como o Conselho bloqueou, vai apresentar-se uma pessoa que não esteve presente como cabeça de lista, nem sequer como candidata”, diz.

Decisões como esta só descredibilizam a democracia e os atos eleitorais. “É muito estranho que estejamos a dizer sistematicamente uma coisa aos eleitores e depois nos espantemos que os níveis de participação sejam os que são”, lamenta Diogo Feio, que parece um pouco mais confiante de que Ursula von der Leyen irá ser aprovada como próxima presidente da Comissão Europeia.

Mas, se isso acontecer, não será o fim dos problemas — muito pelo contrário. Ursula von der Leyen “até pode ser aprovada mas depois vamos ter o maior dos problemas naquilo que tem a ver com os comissários”, afiança Diogo Feio. “Não vejo como é que a Itália ou Hungria vão apresentar um candidato a comissário que seja aceite pelas grandes famílias políticas”, diz o ex-eurodeputado, que teme que “este processo vá ser mau, vá ser longo e vá ter um mau resultado”.

Vamos ter uma comissão ainda mais fraca do que a comissão anterior, que não foi capaz de avançar em matérias importantes como a União Bancária.”

E, assim, lamenta Diogo Feio, “cada vez mais a Europa é um fantasma” e cada vez mais a Europa “está a definhar, no plano económico e no plano político”. Desde logo porque os partidos políticos europeus, incluindo o Partido Popular Europeu (família que Diogo Feio representou),”não estão a tratar bem” o problema das “democracias iliberais” que existem no seio da UE.

“Há um problema sério de democracias iliberais no plano político dentro da UE”, reconheceu, acrescentando que não acha “aceitável que um primeiro-ministro que não respeita a separação de poderes, como o poder judicial, que só quer é controlar os meios de comunicação social, esteja sentado à mesma mesa no Conselho Europeu que os outros primeiros-ministros”.

E porque é que isto acontece? Diogo Feio diz que não se confronta líderes como Viktor Órban porque, “enfim, as pessoas conhecem-se, têm simpatias”, e “porque é difícil dizer as coisas cara a cara”. Além disso, alguns advogam a tese de que não é bom confrontar Viktor Órban porque esse era o seu objetivo. Diogo Feio critica duramente esta perspetiva: “Bem, não sei como é que estas pessoas, que pensam assim, educam os seus filhos, mas não vejo como é que uma postura dessas pode dar bons resultados”.

O pior sintoma, ou consequência, de tudo isto, lamenta Diogo Feio, é que “o cidadão assiste a tudo isto e cada vez vai votando menos“.