A experiência é muita. Aliada à boa forma e a um entusiasmo pela música que não esmorece com os anos, só poderia dar nisto. Mesmo a coincidir com o concerto dos Primal Scream no palco principal, Johnny Marr tornou o palco Sagres pequeno para o magnetismo das canções dos The Smiths, a inigualável banda de que foi guitarrista — passou pelo rock, pela disco, também por canções suas como a recente e magnífica “Hi Hello”, acolheu discos pedidos e acabou a ouvir o coro de Algés gritar-lhe em uníssono: “To die by your side / Well, the pleasure, the privilege is mine”.

Chegámos pouco depois do início do concerto, estava Marr a deixar quem enchia o palco Sagres (não tanto, ainda assim, como no dia anterior, no concerto de Jorja Smith, onde era impossível acercar-se sequer das imediações) em ebulição. O motivo? “Bigmouth Strikes Again”, o primeiro ponto alto de um alinhamento equilibrado, que misturou grandes canções-karaoke como essa, resgatada ao álbum The Queen is Dead dos The Smiths (editado em 1986 e considerado um dos mais importantes dos anos 1980), e pérolas mais obscuras.

[O ambiente no segundo dia de NOS Alive:]

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Estava integralmente vestido de preto, o que mudaria em poucos minutos — não demorou muito a tirar o casaco e expor a camisa azul, com padrões brancos. A pose era de rock star que não envelhece, o ecrã atrás de si tinha apenas o seu nome escrito, o alinhamento sofreria logo uma ligeira guinada, com a passagem do primeiro clássico dos anos 1980 para uma canção fresquinha, acabada de lançar este ano: “Armatopia”, com os seus sintetizadores lustrosos, baixista e teclista a ajudar nos coros, Marr a aproximar-se de um falsete tanto quanto o ouviremos fazer por estes dias.

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Poucos metros à nossa frente, enquanto se dançava “Armatopia”, uma rapariga, garantidamente com menos de 30 anos, ia abanando uma pequena ovelha de peluche, que cederia depois ao rapaz do lado, o segundo incumbido da missão. Como vinha aí uma canção que Marr dedicava a “alguém que vocês amem”, chegou “Hi Hello”, tema que ouvido às escuras muitos arriscariam ser dos The Smiths. É a incursão mais próxima de Johnny Marr pelo rock poético-melancólico britânico que a banda (que o juntou a Morrissey, criando-se ali uma dupla que o mundo precisava de ouvir) notabilizou e é uma grande canção, com os acordes certos e a dose adequada de força: suficiente para provocar air guitar e meneares de cabeça, controlada o suficiente para não tirar importância aos versos e refrão memoráveis que Marr canta.

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A partir daqui o concerto estava ganho, já se viam rapazes e raparigas que nasceram depois dos The Smiths ganharem fama às cavalitas uns dos outros. “How Soon Is Now?”, mais um êxito resgatado aos anos 1980 (ao álbum Meat is Murder, de 1985), foi interpretada com o tom certo e uma voz de frontman natural, dando sequência à festa. O público que enchia o palco Sagres respondeu a rigor, afinado na arte de acompanhar com palmas.

Seguiu-se uma incursão pela música de dança. “Isto é uma canção disco de Manchester, Inglaterra”. Marr levou a Algés “Getting Away With It”, um tema de 1989 dos Electronic, banda de que o guitarrista e cantor formou com Bernard Sumner, dos New Order. O ritmo dançante segurou o espírito dos anos 1980 — mas com mais bolas de espelhos cool a que Morrissey possivelmente torceria o nariz — e antecipou “Walk Into the Sea”, que abrandou o ritmo trazendo dança mais lânguida.

Também houve discos pedidos: Johnny Marr perguntou ao público o que queria ouvir e, se a resposta foi impercetível, ninguém ficou desiludido com a sua escolha seguinte, “Get the Message”, também recuperada ao repertório dos Electronic mas já do início dos anos 1990. Acabou ovacionado, mas o melhor ainda estava para ouvir: em “Easy Money”, canção que lançou no segundo álbum a solo (Playland, de 2014), não vimos uma única pessoa que não estivesse a dançar.

Faltava terminar em beleza, como habitual e ainda bem, faltava “There Is A Light That Never Goes Out”. Marr nem precisava de a cantar, aqui e ali até se calou para que o público se pudesse ouvir a si mesmo, telemóveis levantados por todo o lado e gente dos 20 aos 50 de sorriso na cara e coração cheio. Finalmente conseguiam ouvir o hino tocado ao vivo, ao invés de cantado por uma banda de covers ou usado para fechar a madrugada de um bar-discoteca.

No palco adjacente, o Clubbing, que esta sexta-feira teve programação delineada pela agência portuguesa de artistas Bridgetown, ainda Johnny Marr não tinha terminado a atuação quando o rapper e cantor português Plutonio subiu ao palco. Foi impressionante a afluência do público, que impediu que quem ali chegava com o concerto a decorrer conseguisse entrar na tenda. Numa atuação de um profissionalismo exemplar, desfilou uma sequência de êxitos que o público sabia de cor: “1 de abril”, “Iminente” (tema gravado com Papillon, que na véspera participara no concerto do brasileiro Emicida mas desta feita esteve ausente), “África Minha” — canção que gravou com Bonga —, “Não Vales Nada” e a recente “Dramas e Dilemas”, onde confessa erros passados e deixa uma mensagem: “Foi preciso dramas e dilemas para chegar aqui”. No mesmo palco, durante o dia, atuaram ainda o rapper Dillaz (também com muitos adolescentes e jovens presentes a ouvi-lo) e o norte-americano Trace Nova, que apresentou as canções do seu primeiro álbum acabado de editar e que chamou a palco Mishlawi, entre outros.

Um começo acidentado com Perry Farrell, auspicioso com os Primal Scream

O segundo dia do NOS Alive começou cedo, pelas 17h, com os madrilenos Izal e com um recinto pouco composto. O cenário não era muito diferente quando, mais ou menos uma hora depois, o vocalista dos Jame’s Addiction subiu ao palco principal do festival para dar um concerto que certamente encaixaria melhor num outro horário. Acompanhado por um duo de bailarinas-cantoras semi-nuas, que se passeou em saltos altos (e quase caiu) pelo público aparentemente pouco entusiasmado, e por uma garrafa de vinho, Perry Farrell tentou trazer alguma sensualidade para o Alive mas a única coisa que conseguiu foi transformar o palco principal do festival num strip club de quinta categoria.

De Farrell, transitou-se para os escoceses Primal Scream. A banda liderada por Bobby Gillespie, que fez questão de vestir o seu melhor fato cor-de-rosa, não passava por Portugal há algum tempo e o vocalista fez questão de dizer isso mesmo: “É ótimo estar em Lisboa outra vez. Passou demasiado tempo…”, declarou Gillespie.

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A banda, a terceira no alinhamento do palco principal, tem um novo álbum na bagagem — Maximum Rock ‘n’ Roll: The Singles, que reúne, em dois volumes, todos os singles desde 1986 até 2016 — e no concerto desta sexta-feira percorreu a sua já longa carreira com um bocadinho disto e daquilo. Durante cerca de uma hora, ouviram-se temas como “Movin’ On Up”, “Jailbird”, “Miss Lucifer”, “Higher Than the Sun” e “Kill All Hippies”. O concerto terminou com “Rocks”, música com mais de duas décadas que faz parte do álbum Give Out But Don’t Give Up, de 1994.

Depois dos Primal Scream, a festa continuou no palco NOS com o rock revivalista dos Greta Van Fleet e o indie-pop doce e rock (mais tempo doce do que rock, mas também com espaço para momentos mais vitaminados e jams instrumentais) dos Vampire Weekend. Depois, chegou um OVNI chamado Gossip.

Esqueçam os Led Zeppelin. Os Greta Van Fleet sabem brilhar sozinhos

Gossip, um erro de casting no palco principal

A fechar o palco principal, atuaram os Gossip de Beth Ditto. A banda norte-americana que em 2006 ganhou fama com o terceiro álbum, Standing in the Way of Control, transitou no final da última década para uma editora multinacional (a Columbia, divisão do grupo Sony Music Entertainment), mas foi ficando esquecida na Europa, surpreendendo até a sua escolha para um horário noturno do palco principal.

A hora tardia a que atuaram — começaram pouco depois da 1h — não justifica a debandada que aconteceu logo a seguir ao concerto anterior, dos Vampire Weekend, até porque os restantes palcos do festival continuaram a registar índices de afluência semelhantes aos que se viram durante o dia. Que o diga o português DJ Kamala, que substituiu a norte-americana (recém-vencedora de um prémio Grammy) H.E.R. no cartaz e que teve casa cheia durante a madrugada para a sua seleção de batidas de hip-hop.

Quanto aos Gossip, bem se esforçaram por contrariar a pouca afluência do público. Beth Ditto, a vocalista do grupo (e, na verdade, boa parte da razão do seu sucesso nos anos 2000), esteve faladora, repetindo insistentemente que tinha pena de não saber falar português, mas dizendo que sabia falar francês e dava uns toques de alemão e isso já lhe parecia muito a ela, uma “americana parva”. Haveria de fazer outras referências ao seu país de origem, desafiando Trump a fazer coisas a si próprio que ninguém quererá ver e lembrando que os seus conterrâneos dizem muito “go fuck yourself”, coisa que ela leva à letra: “Faço-o todos os dias, chama-se Pornhub. Não paguem pela subscrição!”

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“Isto é meio concerto, meio stand-up“, ouvíamos ao nosso lado, na enésima vez que Beth Ditto fez uma pausa entre canções para dizer alguma coisa: ou era para falar em hambúrgueres orgânicos, ou era para dizer (pelo menos duas vezes) que estava “calor como o raio”, ou era para perguntar quem era uma tal de Madonna que tinha ouvido dizer que morava em Portugal, ou era para perguntar como é que se dizia “brinde” em português, ou era para pedir ao operador de câmara para lhe traduzir uma frase com insatisfação sobre o calor, ou era para dedicar (pelo menos duas vezes) algumas palavras às “pessoas queer, homossexuais, feministas e todos os que os defendem”.

A música, essa foi tão pouco aborrecida — por vezes chegando a dar laivos de divertida — quanto irrelevante: uma espécie de disco tocada por uma banda que tem nos momentos em que a vocalista puxa pela voz, estilo exibição de atributos em talent shows, os únicos momentos de originalidade. As versões de hits em — “Psycho Killer” e afins — não chegaram para acrescentar interesse e o público ia-se dividindo: nas filas da frente, alguns conheciam as canções e tentavam dançá-las, mais atrás havia quem se sentasse no chão ou aproveitasse para pôr a conversa em dia, de metade do relvado para trás poucas almas se viam. No terceiro dia de concertos, tudo será diferente: o palco principal encerra, também já de madrugada, com os mais estimulantes The Chemical Brothers.