O concerto no festival NOS Alive já estava quase a acabar quando Ezra Koenig, líder da grande trupe (ao vivo são mesmo uma catrefada de rapazes e raparigas) Vampire Weekend, disse que ia tocar a “Jokerman”. Como assim, a “Jokerman”? A “Jokerman” do Dylan? Mas que raio têm vocês na cabeça, miúdos? Está tudo certo com o pop-rock saltitão, indie e cool, ultimamente mais canção pop que rock-festa, mas o Dylan? Deixem-se disso que não têm vida, o homem já tinha mais de 40 anos quando gravou a “Jokerman” e vá-se lá saber quantos mais de vida tinha em cima. Não se mexe em património sagrado quando não se comeu pó suficiente, quando se tem o cabelo aprumado e a roupa bem engomada, os vossos pais não vos preparam para isso e a vida é mais dura do que o vos parece.

Se o cérebro funcionasse à velocidade que deveria era mais ou menos isto que nos tinha passado pela cabeça naqueles poucos segundos passados entre a declaração de intenções e a execução da ideia. Mas depois Ezra Koenig começou a tocar, boa parte do público do NOS Alive desinteressou-se do que estava a acontecer porque não é canção que se reconheça da rádio nem dava tão bem para dançar, geraram-se grupos de conversa para falar do fim-de-semana e disto do calor que se vai embora e é uma pena, mas foi aí que aconteceu magia.

Imune à apatia generalizada, o tipo de Nova Iorque que nos habituámos a ver como miúdo bem-comportado com jeito para as cantigas (e já tem 35 anos, caramba) começou a tocar “Jokerman”, começou a cantar aqueles versos que só poderiam ter sido escritos pelo Dylan dos anos 1980 (e pelo Dylan, ponto) e a banda acompanhou-o naquela loucura premeditada. De repente Dylan reencarnou em miúdo de classe média com morada fixa em Nova Iorque e desventuras que afinal eram só traquinices, tudo sem deixar de ser Dylan, de súbito Ezra Koenig reencarnou em Bob como quem lhe diz que a canção tem tudo certo, sim senhor, mas se fosse mais adocicada não perdia o acinte, se depois desaguasse em jam rock — com o guitarrista Brian Robert Jones a mostrar, ali e em todo o concerto, que é a melhor contratação recente de uma banda conhecida — também estava tudo bem. “It’s a shadowy world / skies are slippery gray”, e esta?

Brian Robert Jones, o guitarrista que os Vampire Weekend descobriram há pouco que faltava aos Vampire Weekend (@ ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR)

Não foi o final perfeito porque depois ainda se ouviram “Worship You” e “Ya Hey”, ainda andaram dois globos (semelhantes ao que esteve atrás dos Vampire Weekend todo o concerto, que esta música cada vez se circunscreve menos a geografias) a ser passado no ar pelo público de braço esticado em braço esticado, mas poderia ter sido. Foi um momento de confirmação de que os Vampire Weekend, ali alinhados em palco como se Ezra não fosse mais importante do que os outros, como se o baterista e percussionista Chris Tomson e o baixista e cantor Chris Baio não fossem mais membros do que os músicos de digressão, são cada vez mais uma banda que é difícil engavetar (é pop? é rock? é indie? é popular?). Isto está cada vez menos simples para quem os queria pôr no baú do pop-rock beto-polifónico.

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Se o NOS Alive foi parecendo algo despido de gente durante o dia e a noite — o que na verdade até é bom para quem circula, poderá não o ser tanto para quem tem de fazer contas —, a culpa não é dos Vampire Weekend, não é preciso sequer ser um acólito para perceber que são uma banda competente que foi a Algés num tempo que faz sentido: depois do lançamento de mais um álbum, depois da afirmação nas rádios comerciais, depois de seis anos sem qualquer atuação em Portugal. O problema poderia ser outro, nomeadamente a falta de companhia do mesmo nível no palco principal. Bastou ver a incapacidade dos Greta Van Fleet, antes, e dos Gossip, depois, para apelarem a uma multidão semelhante — e aqui nem está em causa o talento dos primeiros, se são mais ou menos promissores, ou a importância de Beth Ditto e de “Standing in the Way of Control”, que merece outras discussões — para perceber que com eles o entusiasmo foi muito maior. Maior até em demasiada.

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Não foi então estranho, dada a programação do palco principal neste segundo dia de concertos, que mal se tenham ouvido os acordes de “White Sky” tenha havido quem deixasse de lado a ideia de comprar cerveja ou ir à casa de banho para correr rumo às proximidades do palco. Os Vampire Weekend justificam-no, têm créditos no indie-rock, têm uma banda grande e competente ao vivo, têm um vocalista com tanta pinta quanto boa voz e uma capacidade de imaginar melodias e harmonias (inclusive através de coros) que até os críticos reconhecerão, a juntar a umas percussões e coros tribal-pop que confundem tudo.

O arranque foi mexido e as canções que se seguiram mantiveram a toada mas sem entusiasmar por aí além. Foi só quando o concerto chegou à metade que o público começou a dançar com mais vigor aquelas canções primaveris, despretensiosas, que fazem o mundo parecer mais cor-de-rosa do que é (talvez seja só desejo, oxalá). O ponto de viragem foi “This Life”, um dos singles do novo disco e mais uma canção que mostra — como as dos Ornatos Violeta provaram no ano anterior — que não há acordes mais importantes do que os primeiros e que não há versos cantados mais definidores do que os que iniciam uma canção. Se arranca bem ainda pode encarrilar, se começa mal está tudo estragado, e quando Ezra Koenig principiou a cantar com doçura “Baby, I know pain is as natural as the rain / I just thought it didn’t rain in California”, roubou mais uns corações, fez as conversas travarem por um momento para darem lugar à dança.

A partir de “This Life”, nada mais foi o mesmo: ouviu-se uma sucessão demolidora com “Harmony Hall”, “Diane Young”, “Cousins” e “A-Punk” — uma sucessão que começou calma, versos memoráveis para reter nas paredes, “uh” “uhs” a puxarem pelos saltos enquanto Koenig canta que não quer viver mais assim mas também não quer morrer, para daí se entrar depois numa máquina do tempo, aterrar em Brooklyn em 2008 e atirar cerveja sem querer para cima de alguém com um sorriso e a pingar de suor.

O ritmo acalmaria, uma carreira ainda em construção não permite por ora um concerto de uma hora e meia só à base de hits, mas o nível manteve-se virtuoso. Houve “Campus” e “Oxford Comma”, houve ainda “Hannah Hunt” (dedicada a uma pessoa que lhes fez saber, via Instagram, “que queria muito esta canção, não sei o teu nome mas esta é para ti”). Isto antes de os Vampire Weekend provarem que estão crescidos e prontos para enfrentar o mundo já fora das saias das mães recorrendo ao homem joker. Informado de tudo isto que se anda a passar em Portugal, algures num canto recôndito dos Estados Unidos da América, com o seu bourbon e o sobrolho levantado, Bob Dylan há-de ter soltado entredentes, quase impercetivelmente: “Raio dos miúdos… Bom, podiam ser piores”.

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