Título: A Justiça de Yerney
Autor: Ivan Cankar
Editora: Cavalo de Ferro
Páginas: 96
Preço: 12,69€

A novela foi editada pela primeira vez pela Cavalo de Ferro em 2004. A segunda edição saiu em junho de 2019

Ivan Cankar não é um escritor qualquer. Nascido em 1876, na localidade eslovena de Vrhnika, então parte do Império Austro-Húngaro, bebeu influência das correntes realista e naturalista, mas também do decadentismo e simbolismo (o seu primeiro livro, a coletânea de poesia Erotika, tinha ligações ao decadentismo, o que fez com que fosse destruída por ordem do bispo de Ljubljana, Anton Bonaventura Jeglič), compondo uma obra de grande originalidade e variedade de géneros. Considerado um dos escritores mais importantes de língua eslovena e um dos responsáveis pelo arranque do modernismo na sua literatura, é um autor tão fundamental que é apontado como responsável pelo desenvolvimento do romance psicológico, do drama simbólico e da sátira moderna no seu país de origem. Fora da Eslovénia, há quem o descreva como um dos escritores europeus mais importantes do fin de siècle.

Embora os seus trabalhos mais originais se enquadrem dentro do movimento modernista, a obra de Cankar encontra-se profundamente marcada por uma série de questões sociais, morais e políticas importantes para a Europa do início do século XX, mais típicas do realismo. Ativista político, foi membro do Partido Social-Democrata Jugoslavo, austromarxista, que funcionava nas chamadas terras eslovenas e na Ístria. Foi enquanto candidato deste grupo partidário que participou nas primeiras eleições do Parlamento austríaco, em 1907, como representante do distrito eleitoral de Zagorje-Litija, em Carnovia, acabando por perder contra o Partido Popular. Mais tarde, acabou por se distanciar do partido por não concordar com a defesa que este fazia da criação de uma nação jugoslava com uma mesma língua e cultura. Pelo contrário — o autor defendia a diversidade linguística de todos os eslovenos. Ivan Cankar morreu em 1918, de pneumonia, uma complicação da gripe espanhola, que então assolava o território.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Entre as obras mais famosas do escritor conta-se a novela A Justiça de Yerney (1907), publicada pela primeira vez pela Cavalo de Ferro em 2004 e reeditada no mês passado em Portugal pela mesma editora. Livro pequeno, com menos de 100 páginas, conta a triste história de Yerney, homem simples do campo que dedicou a sua vida à quinta do “velho Sitar”, o patrão atencioso que o deixou construir uma casa nos limites da sua propriedade. É nessa habitação que o feitor se encontra no início da novela, sentado num banco junto à janela, lamentando a morte de Sitar — “todos temos de partir; eu serei o próximo”, afirma.

Debilitado por quatro décadas de trabalho no campo e uma idade já avançada, Yerney espera poder passar calmamente os anos que lhe restam na terra que ama e rodeado pelos seus familiares. As expectativas que guarda são subitamente destruídas pelo filho de Sitar, o orgulhoso Tony, que vê no feitor uma ameaça à sua autoridade. No dia do funeral do pai, Tony decide expulsar o camponês da propriedade, dizendo-lhe que já não há lugar para ele na sua quinta. “Procura outro patrão”, diz-lhe, apoiado pelos familiares de Yerney, que se viram contra ele por temerem serem sujeitos à mesma sorte. “O que fizeste, Patrão, com as tuas palavras ásperas, o que fizeste ao velhote?”, interroga o feitor, que, depois de 40 anos de dedicação, se vê de repente sem casa, sem nada. “Porque te empenhaste em o humilhar, em o atormentar na sua velhice, ele que nunca conhecera a mágoa, nem na Primavera da sua vida, nem anteriormente ou na idade adulta?”

A expulsão de Yerney da quinta do “velho Sitar” serve de ponto de partida a uma longa e dura viagem em busca de justiça e daquilo que acredita ser seu por direito. Durante este percurso, o feitor começa por visitar o presidente da Câmara Municipal, a quem diz:

“O Yerney trabalhou durante quarenta longos anos. Deus abençoou o seu trabalho, que produziu frutos maravilhosos. De quem é a labuta, de quem são os frutos? Agora diz-me: que lei humana é essa, que divinos mandamentos são esses, que eu nem sei onde descansar a cabeça, apesar de ter ceifado feno suficiente para fazer uma pilha tão alta como a montanha além? E não tenho nem uma côdea de pão, eu que enchi celeiros enormes com trigo, trigo mourisco e centeio?”.

A resposta que recebe é aquela que vai receber sempre ao longo da sua difícil jornada, que o leva até Viena, capital do império, em busca de um Imperador que se esconde do seu povo e não atende a quem mais precisa — não tem direito a nada, nem àquilo que construiu, porque tudo pertence ao patrão, e o patrão é agora Tony, que herdou tudo depois da morte do pai. Não há nada que o presidente da Câmara, os magistrados, os padres ou os sábios possam fazer por Yerney (em frente dos quais repete sempre a mesma ladainha, aproximando-se o texto nestas passagens da literatura oral) porque Yerney não tem nada de seu. Mas o feitor não desiste, e continua o seu caminho sem nunca perder a fé em Deus, criador de todas as leis justas, apesar das dificuldades que é obrigado a enfrentar — a humilhação, o escárnio, os maus-tratos e a prisão. “Procurá-la-ei [a Justiça] ainda que esteja enterrada na terra tão funda quanto o meu suor; usarei uma pá, escavarei e removerei a terra até onde as minhas forças me deixarem…”, anuncia num tribunal.

Só no fim — depois de ter sido ouvido vários especialistas, de ter sido levado perante vários juízes e até de ter sido apedrejado por crianças — é que Yerney é capaz de concluir, com grande tristeza, que a Justiça não pode ser encontrada à face da Terra. “Vagueei pelo mundo, andei de polícias para juízes, de juízes para o Imperador. Não há justiça abaixo do Poder Supremo (…). Foi enterrada a uma profundidade de cem metros e foi colocada uma pedra pesada sobre ela. Não procurarei durante mais tempo a justiça neste mundo”, declara, por fim, ao padre da sua aldeia, pedindo-lhe que o julgue segundo a justiça divina. Este, porém, e tal como todos os outros, nega-lha. Esta derradeira recusa leva Yerney finalmente ao limite das suas forças, renunciado a tudo em que até aqui acreditava e pondo em causa a própria existência de Deus. Sem fé ou esperança no seu coração, o feitor já não tem nada a perder. Resta-lhe a vingança.

“Dizei a palavra pela qual tenho esperado tanto tempo: existe justiça? Existe Deus?”, pergunta Yerney ao padre.

É muito fácil criar empatia com Yerney e com a sua triste história. A sua ingenuidade comove e a injustiça de que é alvo revolta. Ao ler as páginas de A Justiça de Yerney, é difícil não ter vontade de fazer alguma coisa para mudar o destino do velho camponês, trabalhador e temente a Deus, símbolo de uma classe sem direitos, numa altura em que a servidão continuava a existir. Porque o destino de Yerney era o destino de todos os trabalhadores que, chegados ao final da vida sem qualquer préstimo, eram empurrados porta fora sem direito a levarem sequer o seu cachimbo. Cankar expôs essa crua realidade com grande mestria e através da criação de uma personagem inesquecível.