O primeiro dia de qualquer festival de música, sobretudo para quem o visita pela primeira vez, mete sempre burocracia e organização. A dinâmica das pulseiras; antes disso garantir que vai tudo, nomeadamente o carregador de telefone e do computador; e garantir que também vamos. Entramos em Cem Soldos, ouvimos gente a tocar instrumentos e seguimos-lhe o rasto. Estamos naquilo a que se chama o Palco Garagem, um palco sem programação, onde espontaneamente público pode agarrar na bateria, guitarra e baixo ali à disposição e fazer das suas. Por agora, dois amigos dão-nos uma jam entre o stoner e o xamânico. A seguir paramos na barraca da Hardcore Fofo, uma marca de bordados que tinha tote-bags com frases como “bagagem emocional” ou panos de loiça com a inscrição “que se foda a loiça”. Durante os quatro dias do Bons Sons não lhe metemos a roupa ao pelo, isso é certinho. São 13 anos e dez edições de um dos mais particulares festivais do país, que este ano volta a oferecer uma grande amostra de música exclusivamente nacional e que durará até domingo.

De seguida, rumamos ao espaço da Adega Poças, no início da zona que desagua no novo Palco Zeca Afonso, que se pode definir como debaixo do chaparro, debaixo da bananeira, num declive que cria um anfiteatro natural belo e onde por esta hora, às 18h15, a Orquestra Filarmónica Gafanhense recebe as ordens do maestro para o concerto que começará às 20h e que revisitará temas idos e que também são parte da história do Bons Sons. Ao fundo, em perspetiva, adivinham-se planaltos por plantar, para que não nos esqueçamos de onde estamos. Isto mais as duas oliveiras em cima do Palco Zeca Afonso, que dão uma certa pinta a esta tela. Ali ao lado, na Adega Poças, há quem nos convide para um copo de vinho à janela, numa parede com um mural que Mariana Miserável começou na terça-feira.

Vira a dança. Vamos à descoberta do palco António Variações, que se estreia em 2019 nestas bandas e que por esta altura é lugar de pasto, gente esticada, os X-Wife em momento de relaxe e fotos. Prova de que o Bons Sons tem muita gente, mas também espaços para tudo, para o estado que queremos viver no momento. E agora, depois do jantar, o que queremos viver é este concerto da Orquestra Gafanhense, que além de estar num sítio bastante interessante, que já descrevemos acima, é mais um sinal que o Bons Sons é um festival raro: é que um concerto de orquestra num festival não é propriamente uma coisa abundante – aquele beijo para o Avante, que todos os anos nos dá uma proposta deste género. É ver um mar de gente e instrumentos e gravatas em palco a tocar coisas como o “Grândola Vila Morena”.

Quando começou, o Bons Sons tinha “tudo para dar errado”. À décima edição é a festa que se vê

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Veem-se miúdos a atar cordas a redes para melhor percorrer o desnível da encosta onde fica o palco, mais bebés de auscultadores que parecem gostar do que sai das colunas, gente sorridente, gente divertida. Depois o panorama fica mais do amor, assim que a Orquestra nos dá uma bela versão de “Meninas Estás à Janela”, mais valsas e menos danças por conta própria, no fundo. Estamos à boleia dos intuitos da Gafanhense e estamos muito bem.

Mais tarde: “Bora Joana! Andou comigo na primária, ela”, ouve-se ao lado, e portanto é este o estatuto de estrela da pop nacional que Joana Espadinha hoje detém. Apresenta-se com Benjamim, produtor do seu disco O material tem sempre razão, editado lá para o fim de 2018. E esta é assim a primeira grande multidão humana do Bons Sons 2019, dança-se, sabem-se as letras, tudo afinado. Tudo que é como quem diz, o rapaz que andou na primária com Joana Espadinha é profissional do bitaites: “Ó Benjamim: beija-me aqui”, grita. Luís Nunes relembra que em 2015, quando tocou no Bons Sons, só tinha uma canção que passava na rádio: “Os teus passos”. E o povo canta. Seguramente, um dos momentos mais animados desta primeira noite de festival.

Largamos a pop de Portugal e rumamos a África, onde nos encontramos com os Fogo Fogo, que depressa incendeiam o Palco Lopes-Graça com a sua tradição de alta temperatura. Vimo-los crescer na Casa Independente e agora, mesmo que o espaço seja maior, continuamos a imaginar Cabo Verde e uma festa de fogueira com funaná. E subitamente, o Largo do Rossio, epicentro de Cem Soldos, vira uma pista de danças diversas em todos os seus cantos. Amanhã vamos rogar pragas ao estado das nossas pernas.

Bom, o Bons Sons também pode significar uma viagem longa, dos trópicos vamos para as teclas dos já míticos X-Wife, turma que parece continuar a fazer todo o sentido para o público português, sempre pronto para ajeitar a anca, reajustar o jeito com que continua a saborear Cem Soldos. Ao lado ouve-se “adoro isto”. Mas o que aqui – e de resto um pouco por todo o país – se parece adorar muito é Diabo na Cruz. Agora já sem cruz, ou seja, sem Jorge Cruz, vocalista e líder da banda que decidiu sair, tendo os restantes elementos da banda decidido continuar o resto da tour com datas já marcadas e com Sérgio Pires (anterior guitarrista) a ser o homem escolhido para a voz. A sua legião de fãs veio ao Bons Sons despedir-se. E logo aqui, local tão familiar, uma aldeia que encerra para festejar, para ser quem é. Detalhe que não acontece todos os dias. E olhe, estimado leitor, isto foi só o primeiro dia. Esta sexta voltaremos a ser aldeãos.