Aos 81 anos, o cantor e compositor Martinho da Vila, um dos ícones do samba e do Carnaval no Brasil, disse desejar ver o ex-Presidente Luiz Inácio da Silva fora da prisão, com sua dignidade restituída, mas fora da política.

“Gostaria de ver o Lula [da Silva] solto. Porque ele não merece estar preso. É um preso político, o motivo da prisão dele já foi cumprido então não tem por que estar preso. Eu gostaria de vê-lo fora da política, como uma referência”, disse, em entrevista à agência Lusa.

“Com o Lula [da Silva] todo mundo sonhou ‘poxa, meu filho também pode ser Presidente, pode chegar lá’. É isto que eu espero, que ele seja solto e [tenha] sua dignidade restituída (…) Se ele [Lula da Silva] abandonasse a política e pudesse ver a coisa de outra forma, as pessoas que não gostam dele por causa da política iriam pensar de outra maneira”, acrescentou.

Martinho da Vila falou à Lusa durante a Festa Literária do Pelourinho (Flipelô), realizada entre 7 e 11 de agosto, em Salvador, onde participou num debate com a escritora Helena Theodoro, no qual abordou o seu último livro — “2018 crónicas de um ano atípico” –, publicado pela editora Kapulana, no Brasil, no início do ano, e ainda sem previsão de lançamento em Portugal.

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O livro traz um texto sobre a prisão de Lula da Silva com o título “A Justiça e o Carnaval”, no qual o autor cita a tristeza de parte dos brasileiros com a prisão do ex-Presidente, e faz reflexões sobre igualdade, presunção de inocência e necessidade de imparcialidade nos julgamentos dos órgãos de Justiça, ideias consolidadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

No mesmo texto, Martinho da Vila fez uma alusão a um ‘samba-enredo’ de 1989, apresentado pelos Unidos de Vila Isabel, “Direito é Direito”, que acabou em quarto lugar no Carnaval ‘carioca’, porque um jurado teria descontado, de forma injusta, pontos da ‘Comissão de Frente’ da escola, composta, na altura, por 14 mulheres grávidas, que representavam o direito à vida.

A ‘Comissão de Frente’ corresponde a um grupo de pessoas das escolas de samba, que têm por missão saudar o público, sendo obrigatória a sua passagem em frente às cabines do júri.

Martinho da Vila, com sorriso fácil e jogo de cintura para escapar de perguntas a respeito de temas mais polémicos, contou à Lusa que teve a ideia de escrever um livro, porque completou 80 anos em 2018.

“Minha ideia inicial era fazer uns registos de coisas pessoais, coisas que eu fiz no ano de 2018. Como se fosse um semanário (…) Mas a criação começa de um jeito e acaba tomando outro caminho. Na primeira semana do ano [passado] eu li as manchetes dos jornais e resolvi falar sobre aqueles assuntos, e [o projeto] acabou virando o que é este livro”, contou.

“Foi um ano atípico porque fiz 80 anos, é uma coisa atípica, nunca pensei em chegar aos 80 anos (…). Também foi atípico pelos acontecimentos que estão no próprio livro”, acrescentou o sambista.

Além da prisão de Lula da Silva, as “crónicas de um ano atípico” abordam também o assassínio da ativista dos direitos humanos Marielle Franco, a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência do Brasil, a polarização política, histórias do Rio de Janeiro e sobre pessoas do convívio do sambista.

Bolsonaro é tema de duas crónicas: “Um grande sonho”, que retrata a véspera da eleição e enumera discursos e ideias polémicas do chefe de Estado; e outra chamada “Tem que dar certo”, que retrata o discurso inicial do novo governante.

Questionado a respeito do Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, Martinho da Vila evitou declarações fortes, porque disse ser uma pessoa otimista.

“Nada do que ele [Bolsonaro] falou na diplomação [ato antes da posse em que é reconhecida a eleição de um candidato no Brasil] está se confirmando. Foi um discurso bem democrático, mas as ações dele são contrárias, são diferentes”, disse.

“Eu não sou um crítico neste sentido [de fazer críticas destrutivas], sou um ‘cara’ que cria e que faz. Não sou uma pessoa que faz julgamentos (…) Fiz [a crónica] ‘A esperança não morre’, no sentido positivo. Sou um positivista. Tem de ter sempre esperança. As mudanças que aconteceram no mundo foram sempre feitas pelos otimistas”, completou.

O sambista concluiu frisando que “os otimistas vão à luta, os pessimistas têm a má impressão e se recolhem”. “O otimista acredita e corre atrás”.

Além de “2018 crónicas de um ano atípico” a bibliografia de Martinho da Vila inclui cerca de uma dúzia de títulos, muitos dedicados à música, como “Fantasias, Crenças e Crendices”, “O Nascimento do Samba” ou a obra de caráter autobiográfico “Kizombas, andanças e festanças”

Martinho da Vila, porém, também escreveu para crianças (“Vamos Brincar de Política?”, “A Rosa Vermelha e o Cravo Branco”, “A Rainha da Bateria”) e obras de ficção como “Joana e Joanes, Um Romance Fluminense”, “Ópera Negra” e “Os Lusófonos”.

Na música soma cerca de meia centena de álbuns, desde “Nem Todo o Crioulo É Doido” e “Martinho da Vila”, publicados em 1968/1969, a outros mais recentes, como “De Bem com a Vida”, lançado em vésperas dos 80 anos do músico, e “Bandeira da fé”, do ano passado, que assinala meio século de carreira — e que apresentou em concerto, em Portugal, nos Coliseus de Lisboa e do Porto, no passado mês de maio.

“Casa de Bamba”, “O Pequeno Burguês”, “Quem é Do Mar Não Enjoa”, “Prá Quê Dinheiro”, “Tom Maior” são algumas das suas mais conhecidas canções, a par de outras mais recentes como “Fado das Perguntas”, sobre a comunidade brasileira em Portugal, “O Sonho Continua”, que toma a luta de Martin Luther King por referência, ou “Não Digo Amém”, do mais recente álbum, publicado pouco antes da segunda volta das presidenciais brasileiras, que deram a vitória a Jair Bolsonaro.