O abraço nem sempre é imediato. Quando o Grupo Rosas Periféricas — companhia teatral fundada em 2008 pelo artistas Michele Araújo, Gabriela Cerqueira e Paulo Reis — se instalou no bairro do Parque de São Rafael, a duas horas do centro de São Paulo, houve quem chamasse a polícia devido ao barulho que faziam nas suas animações de rua. A tal impossibilidade de agradar a todos por igual foi sendo reduzida pelo trabalho que foram desenvolvendo junto desta comunidade, de tal forma que, em 2016, nasceu o primeiro equipamento cultural da história do Parque de São Rafael, patrocinado pela Secretaria da Cultura de São Paulo, numa iniciativa dos moradores, por certo empurrados pela arte e impacto cultural que as Rosas Periféricas tiveram nestas ruas.

Falamos, obviamente, de um teatro periférico, marginal, feito para quem nunca teve acesso a manifestações artísticas. É essa realidade — nomeadamente o espetáculo final da trilogia em torno da história do bairro onde se inscrevem, Labirinto Selvático, para ver no próximo dia 30 de agosto, às 19h, no Ginásio da Escola Secundária Sebastião da Gama –  que passará pela XXI Festa do Teatro — Festival Internacional de Teatro de Setúbal que vai decorrer a partir desta quinta-feira até dia 1 de setembro em vários espaços da cidade.

Rodando os dados lá para trás, para a génese da companhia, os três amigos eram colegas de turma na Faculdade de Artes Cénicas de São Paulo. Mais uma história de estrutura que nasceu agregada à ideia de partilha de pensamento em quadros escritos a giz e post-its coloridos em livros. Só que estas três pessoas sempre foram da periferia, sempre percorreram a cidade para ir estudar e sempre voltaram com vontade de falar com os seus, as pessoas para quem o centro são avenidas elitistas onde não se vive, só se trabalha. Os professores foram alertando para a importância de se unirem enquanto artistas e eles foram gostando de pensar nessa importância.

A primeira parte do espetáculo que o grupo vai apresentar em Setúbal, Narrativas Submersas, estreou em 2014. A peça fala sobre a história do bairro onde os Rosas nasceram

Em 2008, começaram a ensaiar uma peça que viriam a estrear em 2009 e que se chama Vénus de Aluguel, de um autor periférico — e também programador e dramaturgo brasileiro — Walner Danziger. O espetáculo fazia uma analogia àquilo que passavam agora nas suas vidas — uma atriz negra que se licencia na melhor universidade de teatro e que não arranja trabalho por ser mulher e por ser negra. Os elementos do grupo até chegaram a trabalhar com outras companhias, no circuito mais mediático e tradicional de São Paulo, mas não fazia muito sentido. Era apenas um trabalho que tinha que ser feito e viver em teatro assim não é coisa para durar muito, pelo menos para eles:

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“Chegámos a trabalhar noutras companhias, mas todos os integrantes do grupo são periféricos, todo o mundo nasceu nas bordas da cidade. A gente sempre fazia esse percurso de ir para o centro, mas aquilo que a gente queria falar tinha que ver com a realidade que a gente vivia, onde a gente nasceu. Quem quer saber da nossa narrativa é quem está nas bordas, as pessoas que estão no centro não fazem esse trajeto, não atravessam a ponte para cá, para ver o que acontece”, explicou Michele Araújo, numa chamada por WhatsApp antes de rumar a Portugal.

Como é que se financia uma estrutura marginal como esta? Nos primeiros tempos, garantiu-nos Michele, venderam rifas e trufas, trabalharam simultaneamente como operadores de telemarketing. Gradualmente, lá foram arrepiando caminho. Mais tarde, instalaram-se no Parque de São Rafael, de onde Gabriela Cerqueira é nativa. A sua sala de estar foi, ao início, sala de ensaios, sala de figurinos e adereços, depositário de discussões e pensamentos. Em 2014, receberam o primeiro apoio municipal, uma luta dos artistas da periferia de São Paulo que, com as suas próprias mãos, escreveram uma lei aprovada pelos governantes que os reconheceu como sendo parte do tecido artístico da cidade com maior densidade populacional do Brasil.

Uma parte importante do trabalho desenvolvido pelo Grupo Rosas Periféricas são as intervenções feitas nas ruas, junto das pessoas

“Estamos a viver um momento político no Brasil muito complicado. Todas as esferas — federal, estadual, municipal — estão cortando não só na cultura, mas também noutras áreas — na saúde, na educação, no transporte. Só que o povo brasileiro é muito artístico. Em qualquer estado, tem arte. Tem muita gente produzido, só que não tem esse incentivo. Hoje estamos a ser punidos. Mesmo os grupos mais centrais estão sofrendo porque a verba não está saindo, não está sendo liberada e não há uma justificativa plausível. É sempre: ‘Tenho que cortar’”, enquadrou Michele.

“O teatro aqui ainda é um meio muito elitista, não é uma arte popular”, explicou. “É também esse o trabalho que a gente faz dentro do bairro onde é a nossa sede. Aquela conversa dos periféricos que não vão ao teatro porque não têm acesso, não é só isso. Eles não têm a formação base, a formação que começa na infância, então o teatro fica inacessível. Tentamos combater isso, bater na porta do vizinho para vir ver a peça, colocar carro de som na rua, palhaços na rua convidando, ir às escolas, ir aos postos de saúde. É essa formação de públicos que muito nos interessa. Foi muito tempo de omissão para estas pessoas.”

Parque de São Rafael em três partes

Vamos tentar, por agora, abandonar os meandros mais políticos (como se isso fosse possível) para nos concentrarmos na trilogia em que as Rosas Periféricas falam sobre o espaço que habitam, o Parque de São Rafael. O primeiro capítulo teve como base testemunhos recolhidos juntos dos habitantes do bairro, regressando à sua fundação nos anos 60 e criando um diálogo e eliminando a distância. “Um grupo não pode chegar de qualquer maneira, é preciso conhecer o território. Então criámos um espetáculo onde contávamos a narrativa da fundação do bairro, que se chama Narrativas Submersas. Fomos para as ruas conversar com os moradores, recolhemos os depoimentos e estreámos em 2014. O nome explica quase tudo: havia uma cidade no estado do Rio Grande do Norte chamada São Rafael que ficou submersa por causa de uma barragem e os seus moradores tiveram de ir para outras zonas do país. Então, na nossa narrativa, uma família do Rio Grande do Norte funda o Parque de São Rafael na periferia de São Paulo. E o Parque de São Rafael foi fundado por nordestinos, nos anos 60”, contou Michele ao Observador.

O segundo espetáculo da trilogia chama-se Lembranças do Quase Agora e persegue a ideia do quase-presente, de que o que vivemos agora não é só o que vivemos agora. E o terceiro, Labirinto Selvático, que a companhia de teatro vai levar a Setúbal, centra-se no futuro. É uma projeção. Para entender a peça, é preciso saber que o Parque de São Rafael se encontra lado a lado (ou costas com costas) com um polo petroquímico, algo profundamente preocupante e nocivo para quem lá vive, como explicou Michele Araújo. “No Labirinto Selvático, narramos o primeiro dia de uma explosão no pólo petroquímico. Muitos dos relatos dos moradores de São Rafael falavam do medo de uma explosão. O que é que aconteceria [se isso acontecesse]? A velha política iria continuar a mesma? As mulheres iriam continuar oprimidas? A reforma urbana iaacontecer? O que é que os periféricos tinham para fazerem uma revolução após acontecer algo apocalíptico?”, questionou.

O segundo espetáculo da trilogia iniciada em 2014, Lembranças do Quase Agora, passa-se entre o presente e o futuro do bairro Parque de São Rafael

Falamos de um complexo que foi inaugurado em 1954, antes até da formação do Parque de São Rafael, e que desde então amedronta e gera fantasmas nas populações que o rodeiam. Pertence, claro, à Petrobras e produz vários tipos de combustível que deviam estar bem distantes de habitações. Por isso, não podemos refugiar-nos nas políticas recentes de Jair Bolsonaro para encontrar um sentido. Temos de ir mais longe (ou mais atrás), à boleia de Michele Araújo: “Neste último capítulo avançamos 50 anos e há a ideia que de vai ficar tudo igual, ou seja, há uma projeção que prevê que vai ser bem difícil as coisas serem alteradas. A questão política e social do nosso país está muito enraizada, desde que os portugueses invadiram o Brasil, em 1500, desde o genocídio dos índios. Parece que alguns brasileiros ainda pensam como os colonizadores, e a periferia é quem mais sente isso, é onde não há uma educação de qualidade, nem transportes. Para ter uma ideia, há duas linhas de ônibus [autocarro] no Parque de São Rafael, só. Não tem trem [comboio] perto, não tem metro, não tem nada. O futuro não vai ser legal. Se a gente não se mexe agora…”.

O Grupo Rosas Periféricas está a tentar mexer-se agora. E isso deve ser mais do motivo para o levar à XXI Festa de Teatro de Setúbal. Este e outros, claro.