Aos 16 anos, Eve Wiley descobriu que tinha sido concebida através de inseminação artificial. A mãe contou-lhe que, segundo o que o médico especialista tinha revelado na altura, em 1987, o seu pai seria um dador de esperma da Califórnia. Agora, com 32 anos, soube que o seu pai não é um dador anónimo californiano mas sim o médico a quem a sua mãe recorreu para engravidar através de inseminação artificial, o doutor Kim McMorries.

Este é um dos vários casos, que ultrapassam a centena, que o The New York Times revelou numa grande investigação publicada esta semana que encontrou exemplos em vários estados dos EUA mas também na África do Sul ou em países europeus, como o Reino Unido, a Holanda e a Alemanha.

Ouvido pelo jornal norte-americano, Dov Fox, especialista em bioética da Universidade de San Diego, salienta que estes casos se assemelham mais a uma prática generalizada destes profissionais do que a uns maus exemplos pontuais. “Pelo número de médicos envolvidos não se pode dizer que se tratavam de algumas maçãs podres. É mais uma prática generalizada de fraude, até agora escondida e encoberta pela baixa tecnologia e pelo alto estigma”, disse.

Foi precisamente um avanço tecnológico disponibilizado ao cidadão comum nos Estados Unidos que permitiu que estes casos se tornassem conhecidos. Em 2017 e 2018 houve uma grande proliferação de testes de ADN ao domicílio que permitiu que vários cidadãos anónimos ficassem a conhecer as suas raízes e antepassados longínquos mas também que conhecessem os seus progenitores.

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Foi deste modo que Eve Wiley descobriu que o seu pai era o médico especialista em fertilidade que tinha ajudado a sua mãe a engravidar e não um dador de esperma da Califórnia. Mas não é caso único.

Jody Madeira é uma professora universitária da Universidade do Indiana especializada em direito que acompanha vinte casos destes, nos Estados Unidos mas também noutros países. Questionada pelo “New York Times”, explica que a maioria dos médicos pode utilizado o seu próprio esperma por acreditar que “era o melhor para o negócio”, já que nem sempre tinham esperma de outros dadores acessível. Mas não descarta a hipótese de haver motivações mais sombrias, “relacionadas com a sensação de poder, narcisismo ou perturbações psicológicas ou  simplesmente porque os médicos se sentiam atraídos pelas suas pacientes”.

Na Holanda, o médico Jan Karbaat, que morreu em 2017 com 89 anos, inseminou artificialmente com o seu próprio esperma 56 pacientes que recorreram à sua clínica de fertilidade. Um caso que pode ter tido motivações promiscuas na base mas cuja imputabilidade se torna complexa, como explicou o advogado holandês J.P. Vandervoodt ao jornal norte-americano. “Há 30 anos as pessoas olhavam para as coisas de maneira muito diferente. O dr. Karbaat até pode ter sido um dador anónimo. Não sabemos. Não havia esse sistema de registo na altura”, lembra o advogado.

Mas é nos Estados Unidos, em Indianapolis, que se encontra um dos casos mais complexos. O médico especialista em fertilidade Donald Cline foi investigado por ter utilizado o seu próprio esperma em mais de 30 inseminações artificiais. Um número que aumentou para 61 depois de vários filhos de dadores terem recorrido aos testes de ADN e terem descoberto que Cline era o seu pai.

Os casos deste médico do estado de Indiana datam das décadas de 70 e 80 do século passado. Donald Cline, que se reformou em 2009, chegou a ser condenado mas apenas a um ano de suspensão e à entrega da sua licença médica por ter mentido à justiça durante a investigação. Os procuradores não conseguiram ir mais longe porque, na época em que o caso foi julgado, não havia lei que proibissem ou criminalizassem esta prática no estado do Indiana — à semelhança do que acontece na maioria dos estados, de resto.

Foi apenas em maio deste ano que aquele estado fez aprovar uma lei para condenar esta prática. Hoje em dia trata-se de um crime e as vítimas têm o direito de processar os médicos que o façam. As pacientes podem evitar o estatuto de limitações nestes casos, já que a ação legal pode ser desencadeada até cinco anos após a descoberta da fraude — e não cinco anos depois de ela ter de facto ocorrido.

No Texas, de onde é originária Eve Wiley, a lei também só foi alterada recentemente e em parte por pressão da própria, que reuniu com os deputados que representam o estado no Congresso. De todas, é a que vai mais longe, equiparando a utilização de esperma errado no processo de inseminação artificial ao crime de abuso sexual.

“É uma história muito comovente e cada vez vemos mais e mais casos de reprodução assistida fraudulenta”, disse Stephanie Klick, representante republicana do estado do Texas. “Precisamos ter certeza de que o que aconteceu não vai voltar a acontecer no futuro”, conclui.