Tinham sido convidados para estarem presentes na cerimónia, mas optaram por ficar à porta, em protesto. Os motoristas da Sociedade de Transportes Coletivos do Porto (STCP) dizem que não estão a ser respeitados e receberam o Governo com essa mensagem. Uma reunião agendada para o início da manhã poderia ter travado o protesto, mas os trabalhadores recusaram. Assistiram, assim, da rua, em frente ao Museu do Carro Elétrico, à entrada e saída dos convidados que participaram na assinatura do memorando de entendimento para a intermunicipalização da STCP, que poderá avançar já em janeiro do próximo ano.

Os primeiros motoristas da empresa chegaram por volta das 10h30, meia hora antes da chegada do primeiro-ministro, António Costa, e Matos Fernandes, ministro do Ambiente. Muitos vinham fardados com o habitual fato azul e a gravata com o logótipo da STCP, outros elementos eram dirigentes sindicais e, por isso, aparecerem mais descontraídos. “Foi tudo marcado à última hora, só os que não estão a trabalhar puderam vir”, disse à chegada Pedro Silva, representante dos trabalhadores, ao Observador.

Cerca de 30 homens foram-se juntando gradualmente à porta do museu segurando uma faixa onde se podia ler: “E nós não somos ouvidos? Exigimos respeito!”. O grupo não tinha gritos de guerra, mas mostrava o desagrado pelo facto de não ter sido ouvido e envolvido neste momento de mudança.

“Não podemos aceitar um convite para estar nas festas quando no que realmente é importante, que é o nosso futuro, não somos ouvidos”, afirmou Pedro Silva ao Observador. O motorista acrescentou que os funcionários “não têm sido tidos nem achados” na negociação do memorando, lamentando que os órgãos representativos dos trabalhadores (ORT) “não tenham tido acesso oficial ao documento” que hoje é assinado. “Queremos ser ouvidos. Há muitas preocupações que temos de partilhar com o Governo. Exigimos saber se os direitos dos trabalhadores vão ser garantidos com esta passagem da empresa para as câmaras. Sentimos que nem estas estão unidas e em consonância, e isso é preocupante”, partilhou.

Durante o processo, os trabalhadores afirmam terem solicitado junto do ministro do Ambiente como do primeiro-ministro “vários pedidos de reunião”, mas ficaram sempre sem resposta. No entanto, a comunicação do protesto no dia anterior, terça-feira, “já tinha surtido efeito”. João Matos Fernandes convocou uma reunião com os trabalhadores para as 10h na Câmara Municipal do Porto, mas o coletivo declinou-a por entender que “não poderia ser uma reunião séria”, uma vez que “era muito em cima da hora”. O encontro ficou então agendado para a próxima segunda-feira, às 12h, no Porto. “Não puderam ou não quiseram antes e agora, só para não estarmos aqui, já podiam”, explicou Pedro Silva.

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Pizarro cumprimentou, Matos Fernandes falou… ao longe

Um dos primeiros a chegar foi Manuel Pizarro, o único político que cumprimentou o grupo de trabalhadores. “Veio cá só para a fotografia, mas deve ter-se arrependido”, confidenciou Pedro Silva ao Observador. Logo a seguir surge João Pedro Matos Fernandes, que, depois de cumprimentar Pizarro com um abraço, ainda foi solicitado para algumas selfies.

Antes de entrar no museu, e sem ter qualquer contacto com os trabalhadores, o ministro do Ambiente disse aos jornalistas que “só recebeu as dúvidas e as preocupações dos trabalhadores na ontem [terça-feira] à noite e “nada têm a ver com este memorando”. “Falam de questões sobre os limites dos transportadores privados ou sobre investimento e isso tem a ver com a autoridade de transportes. Este memorando não tem consequências na vida dos trabalhadores e o decreto-lei até tem garantias em matéria laboral que vão muito além da municipalização.”

Sobre a garantia dos direitos dos trabalhadores, Matos Fernandes explicou que “este passo defende em absoluto os direitos dos trabalhadores. Até o reforça. O estatuto remuneratório manter-se-á inalterado e a liberdade de contratação será muito maior”.

A conta-gotas iam chegando os autarcas das câmaras do Porto, Gaia, Matosinhos, Maia, Gondomar e Valongo, os seis municípios da Área Metropolitana do Porto que a partir de janeiro de 2020 passam a deter na totalidade a STCP. Assim que saiam do carro, cumprimentavam-se e aguardavam por Costa no exterior do edifício. O primeiro-ministro aparece à hora marcada, 11h30, e apesar do seu carro ter estacionado a poucos metros do grupo de trabalhadores silenciosos, não houve qualquer interação com eles, nem declarações aos jornalistas.

Em jeito de procissão, com Moreira e Costa à frente, os autarcas entraram no local, percorrem um corredor com vários veículos antigos sobre carris e chegam finalmente à sala, já devidamente decorada, para a tão aguardada cerimónia. Recorde-se que em 2016, precisamente no mesmo local, foi assinado um acordo que permitiria a participação das câmaras na gestão da empresa, uma situação intermédia e transitória, uma vez que o objetivo final, a intermunicipalização total da STCP, foi agora concretizado.

Um caminho com percalços, mas que acabou em consenso

Depois de Isabel Botelho Moniz, administradora da empresa, dar as boas-vindas, foi a vez de Rui Moreira, autarca do Porto, subir ao púlpito. O município do Porto será o maior acionista da empresa, com 53,69% do capital social, mas apesar desta posição maioritária, Moreira pretende trabalhar em conjunto. “Não será por isso que não nos entenderemos”, começou por dizer. Segundo este novo modelo de gestão, a STCP passa a ser a operadora interna dos seis municípios, que até 2023 vão investir pelos menos 58 milhões de euros.

“Neste momento estamos a definir o quadro para 2024, até lá teremos tempo para pensar o que pretendemos da STCP. Deverá ser alargada a outros municípios? Deverá reforçar a sua componente intermunicipalização? Tudo isso deveremos definir nos tempos mais próximos”, disse Moreira, acrescentando que “é uma sorte termos um primeiro-ministro que foi autarca”, porque compreende melhor aquilo que são “os anseios” do poder local.

Seguiu-se o discurso de Eduardo Vítor Rodrigues. O presidente da câmara de Gaia e presidente da Área Metropolitana do Porto relembrou que o processo que vem sendo trabalhado há mais de um ano, “sucede à decisão estratégica de impedir a concessão da STCP a privados” e assume “uma gestão de proximidade da empresa”, sinais que, acredita, “só terem beneficiado” a STCP.

O autarca sublinha que o trabalho foi “complexo” e que tudo “foi discutido ao limite”. Embora tenha resultado num consenso, o caminho teve alguns percalços. Em julho, José Manuel Ribeiro, autarca de Valongo, chegou mesmo a escrever uma carta aberta a António Costa pedindo que a empresa de transportes não tivesse o domínio portuense e não fosse partida em duas. No fim da história houve fumo branco e entendimento, um acordo que Matos Fernandes considera ser “um passo corajoso” das câmaras municipais e um “compromisso para o futuro”.

Já sobre investimentos atuais e futuros, o governante falou dos cerca de 700 autocarros “de alta performance” previstos para todo o país, dos quais 200 estão já em circulação, 86 na STCP, empresa que terá 110 até ao final do ano. E, em concurso, enumerou o ministro, está a aquisição de 14 unidades triplas para o metro de Lisboa, 18 carruagens para o metro do Porto, 10 navios para a Transtejo e a expansão dos metropolitanos de Lisboa e Porto, num total de 700 milhões de euros de investimento. “Estes investimentos serão decididos pela autoridade de transportes e daí a renovada importância das Áreas Metropolitanas”, concluiu o ministro.

STCP “não é um presente envenenado”

Protocolo assinado, com direito a muitos aplausos e à típica fotografia de família, entra em cena António Costa, que começa por sublinhar que o ato significa “concretização de duas prioridades políticas”, por um lado um as alterações climáticas e por outro lado a descentralização de competências.

“A descentralização que concretizamos com a passagem da propriedade e da gestão da STCP para seis municípios é um excelente exemplo de uma efetiva reforma do Estado. Este é um dia politicamente muito relevante porque podemos concretizar duas das nossas prioridades: a descentralização e o combate às alterações climáticas por via da descarbonização”, afirmou.

Destacando que o investimento no transporte público quadriplicou nos últimos quatro anos, o primeiro-ministro sublinhou que, em relação à STCP, o Estado “assume a dívida histórica”, entregando a empresa “estabilizada”, “não como um presente envenenado”. António Costa referiu que o Governo não “lava as mãos” nem descarta responsabilidades, já que mantém “o compromisso para a renovação da frota até 2023” e o Programa de Redução Tarifária (PART).

Uma gravata simbólica na despedida

Fim dos discursos, todos se levantam e mais ninguém presta declarações. Saem ordeiramente do edifício e da porta conseguem ver o grupo de trabalhadores que, silenciosos e com a faixa nas mãos, ainda permanece no local. São ignorados na hora das despedidas, onde muitos acendem o cigarro e outros tiram o telemóvel do bolso. Entre sorrisos e perguntas sobre as férias, antes de entrar no carro, João Matos Fernandes tira a gravata que tinha posta, com o logótipo da STCP, enrola-a e dá a Rui Moreira. “É sua”, diz entre a confusão.

O sol abriu e os trabalhadores já têm garrafas de águas nas mãos. “A reunião na segunda-feira não vai ser fácil”, ouve-se o desabafo numa rua onde já não há autarcas, ministros ou polícia. A faixa é enrolada e a questão que se segue é: “Onde vamos almoçar?”. Instalou-se a discussão, esta bem mais pacífica.