A hegemonia de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi na última década do futebol europeu e mundial tornou difícil e quase impossível o elogio a qualquer outro jogador. De repente, dizer que um avançado era letal, que um médio era mágico, que um defesa era implacável e que um guarda-redes era fulcral tornava-se pouco e quase irrisório quando havia tanto para falar sobre o português e o argentino. Nós, os privilegiados que andam há mais de dez anos a assistir diariamente às maravilhas e aos melhores momentos de dois dos jogadores mais importantes da história do futebol, esquecemo-nos de que Ronaldo e Messi não são os únicos a ter nascido com as linhas do relvado bem traçadas no destino.

Ainda assim, esta tendência tem-se esbatido nos últimos anos. Luka Modric foi coroado o melhor jogador do mundo na temporada passada, Van Dijk parece seguir-lhe os passos esta época e tem existido espaço para elogiar Neymar, Mbappé, Griezmann, Agüero e Salah. Pelo meio, parece sempre aparecer um nome cujo talento é inegável, cuja qualidade é inequívoca e cujo sucesso está à vista de todos — um sucesso sempre global, sempre coletivo, dificilmente extrapolado para um sucesso individual que já merece alguma atenção. Raheem Sterling, o avançado do Manchester City, é titular dos bicampeões ingleses, titular da seleção inglesa que chegou às meias-finais do último Mundial e um dos jogadores mais regulares das últimas épocas. A cumprir mais de 40 jogos por temporada há cinco anos consecutivos, o jogador inglês marcou mais de 80 golos nesse mesmo período e registou no ano passado a época mais bem sucedida da carreira, ao assinar 25 golos pela equipa de Pep Guardiola e conquistar Premier League, Taça de Inglaterra e Taça da Liga.

A forma atípica de correr do jogador inglês tem-lhe valido comparações com um dinossauro

Esta temporada, já leva seis golos pelo Manchester City. Mas tem sido ao serviço da seleção inglesa que Sterling tem saltado para as capas dos jornais e para a opinião pública: o avançado inglês marcou em todos os jogos de Inglaterra na qualificação para o Euro 2020, incluindo um hat-trick contra a República Checa, e esta terça-feira voltou a ser decisivo na vitória surpreendentemente difícil perante o Kosovo. A seleção orientada por Gareth Southgate sofreu três golos graças a notórios erros defensivos e acabou por ser Sterling, que depois de marcar assistiu três vezes, a criar de raiz mais uma vitória inglesa. O jogador que nasceu na Jamaica e foi viver para os arredores de Wembley ainda criança tem-se tornado a figura maior de uma seleção que vivia de e para Harry Kane — um paradigma que parece estar cada vez mais no passado. Esta quarta-feira, depois do jogo frente ao Kosovo, o Telegraph escreve sem grandes pudores que “Raheem Sterling está a mostrar a Harry Kane que ele é que deve ser o protagonista de Inglaterra”, numa opinião que parece ser transversal às edições do dia dos principais jornais ingleses.

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O percurso de Sterling, aliás, torna-se ainda mais relevante quando percebemos que o avançado tem apenas 24 anos — e quando nos apercebemos de que anda pela alta roda do futebol europeu há várias épocas. Depois de começar a jogar nas camadas jovens do Queens Park Rangers, ingressou na formação do Liverpool, por onde andou até se estrear na equipa principal em março de 2012, com apenas 17 anos, tornando-se o terceiro jogador mais novo de sempre a representar os reds. O período em Anfield, porém, terminou de uma forma pouco feliz: depois de avanços e recuos entre jogador e clube para tentar chegar a um acordo de renovação de contrato, Sterling forçou uma saída para o Manchester City depois de o Liverpool ter recusado duas propostas iniciais e saiu para o Etihad por quase 50 milhões de libras (tornando-se, à altura, o jogador   inglês mais caro de sempre).

O jogador tem formado uma dupla de sucesso com Bernardo Silva em Manchester

No City, descobriu uma parceria com Agüero, um entendimento acima da média com Bernardo Silva e De Bruyne e David Silva, que o servem de olhos fechados. A forma atípica como corre, com as costas muito direitas, o peito para fora e os braços dobrados, tem-lhe valido várias brincadeiras e piadas, com muitos adeptos do Manchester City a referirem que Sterling corre como um T-Rex. O traço impossível de confundir, porém, é de família: em fevereiro do ano passado, o jogador deu uma entrevista onde revelou que a mãe corria exatamente da mesma forma, algo que só descobriu há pouco tempo quando assistiu a uma cassete antiga. “Vi os movimentos e disse ‘ok, foi aqui que eu fui buscar isto’. Nunca a tinha visto correr”, contou. E parece que o hábito já passou para a geração seguinte.

“Ela é do Liverpool. Anda a correr pelos corredores — e eu juro por Deus que ela corre exatamente como o pai. Peito para fora, costas arqueadas, a mão a abanar um bocadinho. Anda a correr pelos corredores como o Raheem Sterling e sabem o que é que canta? ‘Mo Salah, Mo Salah, Mo Salah!'”, escreveu o inglês no texto que assinou no The Players’ Tribune, onde revelou que a filha é adepta do Liverpool e não do Manchester City. A correr ou não como um T-Rex, Sterling tem-se tornado nos últimos anos um autêntico ativista e uma das vozes mais poderosas na luta contra o racismo no desporto, um problema que o afetou diretamente várias vezes no passado. Depois de emigrar da Jamaica para Inglaterra, de ser um de vários filhos de uma mãe solteira que tinha vários empregos para garantir que todos continuavam na escola, de ver o arco de Wembley da janela do quarto e sonhar em jogar no mítico estádio de Londres, luta agora por todos os miúdos que estão em condições semelhantes. E não esconde que ainda continua a ser o miúdo dos subúrbios da capital inglesa.

Esta terça-feira, depois de ser o melhor jogador da seleção inglesa, contra o Kosovo, Sterling dirigiu-se às bancadas para espalhar autógrafos e oferecer a camisola. Um dos cartazes que lhe eram endereçados, porém, tinha um pedido pouco usual: pedia as chuteiras do jogador. Depois de assinar camisolas e cachecóis, de oferecer selfies e sorrisos, Raheem Sterling descalçou as chuteiras e entregou-as a um jovem adepto. Porque entre Liverpool e Manchester City, Wembley e Liga dos Campeões, T-Rex e ativismo, Raheem Sterling continua a ser aquele jovem adepto.