As autoridades francesas falharam gravemente na resposta ao incêndio de maio deste ano na catedral parisiense de Notre-Dame, podendo ter colocado em risco, por negligência, a saúde de adultos e sobretudo de crianças. Essa é a grande conclusão de uma extensa investigação do jornal norte-americano The New York Times (NYT), publicada este fim-de-semana.

A investigação do NYT teve acesso a documentos confidenciais e a relatos, sob condição de anonimato, de fontes do governo francês e trabalhadores envolvidos na recuperação da catedral. Tudo somado, é possível concluir que as autoridades terão mesmo ignorado e desvalorizado durante demasiado tempo um possível problema sério de saúde pública, resultante do incêndio — mais especificamente, da contaminação de espaços e edifícios próximos (de praças e ruas a creches, casas, cafés e escritórios) com partículas de chumbo profundamente nocivas à saúde.

Os documentos, tal como o conjunto de entrevistas feitas, tornam claro que as 48 horas depois do incêndio as autoridades francesas [já] tinham indicações de que a exposição a chumbo poderia ser um problema grave. No entanto, foi preciso um mês para que se fizessem os primeiros testes de exposição a chumbo numa escola próxima da [catedral de] Notre-Dame. Mesmo hoje, os oficiais de saúde da região e da cidade ainda não fizeram testes em todas as escolas próximas da catedral”, aponta o jornal norte-americano.

Os testes que já foram feitos tiveram resultados preocupantes: o The New York Times avança que em pelo menos 18 creches, estabelecimentos de ensino pré-escolar e escolas primárias, foram detetados “níveis de poeira com chumbo acima dos padrões definidos [como não nocivos] pela lei”. Outro motivo de críticas é o tratamento diferenciado de membros de grupos de risco — o mais vulnerável dos quais, crianças — consoante a sua origem e família: segundo o jornal norte-americano, foram fechadas com prontidão duas creches localizadas na rua contrária à catedral destinadas a filhos de agentes de segurança, mas outras crianças continuaram “durante semanas ou meses” a brincar em pátios de escola e a estudar em salas de aula cujas superfícies estavam contaminadas.

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Já em espaços públicos como “praças e ruas”, as autoridades terão detetados níveis de contaminação 60 vezes superiores ao permitido. “A contaminação do solo em parques públicos poderá mesmo estar entre os grandes motivos de preocupação”, aponta ainda o jornal, que vinca que “os níveis mais altos de contaminação” foram detetados “em diferentes sítios no, ou próximos do local da catedral”.

Nuvem tóxica com chumbo contaminou vizinhança do Notre Dame após o incêndio. Governo ocultou dados

Além de terem retardado em excesso os testes — corroboram especialistas de saúde ao The New York Times — as autoridades “falharam” na limpeza dos locais mais afetados pelas partículas de chumbo resultantes do incêndio. E falharam a ponto de terem precisado de quatro meses para “terminar uma descontaminação [completa] dos arredores” da catedral.

Os especialistas de saúde acreditam ainda que a poeira com chumbo que se terá libertado após o incêndio — o telhado da catedral tinha telhas em chumbo — poderá não só ter caído sobre praças, parques e espaços públicos como poderá também ter entrado em edifícios com janelas abertas, em condutas de ar condicionado e em outros sistemas de ventilação de estruturas próximas.

Também a saúde dos trabalhadores envolvidos nas obras de recuperação da catedral terá sido negligenciada. O NYT avança que o ministério da Cultura francês “não prestou atenção a avisos de inspetores do trabalho de que existiam medidas de segurança que não estavam a ser seguidas por trabalhadores, que estavam a ser expostos a níveis alarmantes de chumbo”. Representantes do ministério terão mesmo “minimizado riscos” numa reunião tida em maio, o que o ministério nega, segundo o NYT.

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As autoridades de saúde do país recusaram-se, por agora, a divulgar quaisquer resultados de testes sanguíneos feitos a trabalhadores que passaram horas em zona altamente contaminadas após o incêndio, defendendo-se com a necessidade de preservar a confidencialidade dos registos médicos. Mas as mesmas autoridades terão optado por não avançar com testes sanguíneos obrigatórios às “milhares de crianças que vivem na área ou que vão a escolas próximas”, o que as poderá ter colocadas em risco.

Das 400 crianças testadas, 8,5% terão evidenciado nos seus testes sanguíneos níveis de contaminação nos limiares de risco ou acima dos valores de risco, apurou inclusivamente a Agência de Saúde Regional francesa.

A quem for a Paris nas próximas semanas e a quem por lá viver, alguns especialistas de saúde passaram mensagens tranquilizadoras q.b.: não há motivos para alarme ou pânico generalizado e comer ou beber em cafés e restaurantes próximos dificilmente resultará em contaminação por chumbo. No entanto, é recomendável — sobretudo a crianças com menos de 6 anos — manter alguma distância da catedral parcialmente consumida pelo fogo em abril. Aos pais, os especialistas sugerem ainda que garantam que os filhos lavam bem e regularmente as mãos, de modo a não levarem poeira à boca, e a ter dietas com doses elevadas de ferro e cálcio, que podem ajudar a minimizar o efeito de um eventual chumbo com que os mais novos possam ser contaminados.

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