O primeiro-ministro Boris Johnson esteve na Câmara dos Comuns um dia depois de o Supremo Tribunal ter decretado como ilegal a suspensão do Parlamento e aproveitou para, uma vez mais, insistir na realização de eleições antecipadas. Desta vez, porém, apresentou um twist: se o Partido Trabalhista se recusa a deitar o Governo abaixo, Johnson lançou o desafio aos outros partidos da oposição, nomeadamente os nacionalistas escoceses do SNP e os liberais-democratas. No final da noite, ninguém tinha mordido o isco e tudo se mantinha na mesma. Pelo meio, contudo, ficou uma sessão marcada por três horas de intensas perguntas ao primeiro-ministro, insultos, evocações da deputada Jo Cox (morta por um ativista de extrema-direita) e lágrimas.
“Têm até ao fim desta sessão para apresentar uma moção de censura a este Governo e podemos votá-la amanhã”, afirmou Boris aos deputados da oposição, dirigindo-se ao Labour. E, de seguida, virando-se para os liberais-democratas e o SNP: “Ou os outros partidos, os mais pequenos, se quiserem dar uma voltinha, apresentem essa moção e nós daremos tempo para ser votada. Irão ter a coragem de o fazer ou recusarão assumir responsabilidades?“, questionou o primeiro-ministro.
Mais uma vez, o primeiro-ministro sublinhou que as eleições são, no seu entender, o único caminho para lidar com um Parlamento “bloqueado e paralisado”. E aproveitou para atacar o líder da oposição, Jeremy Corbyn, por hesitar em avançar para esse cenário: “Quer mesmo ser primeiro-ministro? Ele diz que eu devia ir a Bruxelas a 17 de outubro para negociar outro adiamento sem sentido, mas não quer ser ele a ir. E mesmo que fosse, os colegas dele não querem que seja ele a ir, encolhem-se só com a ideia”, atirou.
A proposta de Boris Johnson foi feita e, pouco depois, uma fonte do Número 10 de Downing Street garantia à Sky News que, se não for proposta uma moção de censura, o Governo considera suspender novamente o Parlamento. Questionado sobre essa possibilidade mais tarde no Parlamento, o primeiro-ministro não a excluiu: “Acho que precisamos de um discurso da Rainha”, avisou. “Informarei a senhora deputada, bem como o resto da Câmara, sobre o que iremos fazer assim que tivermos avaliado o sentido da decisão [do Supremo] na sua totalidade”.
Oposição quer Boris fora, mas continua a rejeitar eleições antes do adiamento do Brexit
Na resposta, Corbyn classificou a intervenção de Johnson como “dez minutos de fanfarronice” por parte de um homem “que não é digno do cargo”. O líder da oposição aproveitou para se concentrar na decisão do Supremo Tribunal, acusando o primeiro-ministro de ter “tentado quebrar a lei”. “Depois da decisão de ontem, o primeiro-ministro devia ter feito a coisa honrada e demitir-se”, afirmou.
Sobre a decisão de ir ou não a eleições, Corbyn sublinhou que também as quer mas, uma vez mais, só depois de ser garantido um adiamento do Brexit: “Se o primeiro-ministro quer uma eleição, peça um adiamento e teremos uma eleição.” Antes disso, tinha dito: “Pelo bem do país, ele tem de sair.”
Em resposta, Boris atirou a matar contra o Labour e o seu líder, dizendo ter ouvido dizer que Corbyn estava disposto a aceitar eleições imediatamente mas foi impedido pelo seu ministro-sombra das Finanças, John McDonell, apelidado de “Stasi” por Boris Johnson no Parlamento. “Está a ser feito refém”, atirou o primeiro-ministro a Corbyn, antes de gritar para que “libertem o tipo de Islington!”, referindo-se ao círculo eleitoral de Londres pelo qual o líder trabalhista é eleito há anos. Depois atirou-se ao líder do Labour: “Está refém e agora quer fazer refém um parlamento zombie e uma oposição zombie e quer fazer do país refém também.”
Boris Johnson says Jeremy Corbyn is being "held captive" by his shadow cabinet.
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— Sky News (@SkyNews) September 25, 2019
A intervenção foi longamente aplaudida por vários deputados conservadores, apesar de estarem proibidos de o fazer pelas regras do Parlamento.
Na resposta dos escoceses do SNP, veio um “nim” à proposta de Boris, que deixa o Labour numa situação delicada. O líder parlamentar Ian Blackford sublinhou que o resultado que preferia era o da demissão do primeiro-ministro. “Mas se ele não o fizer, sim, a oposição devia unir-se para aprovar uma moção de censura. Ao fazê-lo, garantimos que a lei Benn é honrada e que retiramos um no deal de cima da mesa com um líder interino escolhido por nós”, resumiu.
A imprensa britânica, contudo, está a ser cautelosa em interpretar isto como um aceitar do desafio de Johnson. Os partidos da oposição continuarão, certamente, a negociar nos bastidores uma posição concertada para os próximos dias.
As “baboseiras” sobre a “linguagem” do PM e a memória de Jo Cox evocada por todos
A noite contou ainda com momentos de alta tensão. Depois de a trabalhista Paula Sherriff ter pedido ao primeiro-ministro que “moderasse a sua linguagem” ao classificar a lei Benn como “lei da rendição” ou “lei da humilhação”, invocando as ameaças de morte que vários deputados recebem e a morte da deputada Jo Cox em vésperas do referendo (morta por um ativista de extrema-direita), Boris Johnson respondeu ter ouvido apenas “baboseiras”. Mais tarde — e depois de várias perguntas e críticas sobre o tema —, Boris questionou se os deputados gostariam também de eliminar a palavra Brexit e disse que a melhor forma de “honrar a memória de Jo Cox” seria conseguindo o Brexit.
O marido de Jo Cox, Brendan Cox, reagiu à troca de argumentos invocando o nome da sua mulher, dizendo-se “um pouco enojado”. “A melhor forma de honrar a Jo é que todos nós (independentemente das nossas opiniões) defendamos aquilo em que acreditamos, com paixão e determinação. Mas nunca demonizando o outro lado”, escreveu.
Feel a bit sick at Jo’s name being used in this way. The best way to honour Jo is for all of us (no matter our views) to stand up for what we believe in, passionately and with determination. But never to demonise the other side and always hold onto what we have in common.
— Brendan Cox (@MrBrendanCox) September 25, 2019
Boris Johnson acabou por abandonar o Parlamento ao fim de mais de três horas de perguntas, sem interrupções. O presidente da Câmara, John Bercow, disse-lhe que seria “cortês” que ficasse para ouvir as considerações finais, mas o primeiro-ministro, depois de uma ligeira hesitação, saiu da Câmara sem olhar para trás. Na sua ausência, os deputados lamentaram a “linguagem divisiva” alimentada pelo primeiro-ministro e deixaram promessas de tentar combater o extremismo, o racismo e o sexismo na Câmara dos Comuns.
“Ela foi assassinada por aquilo em que acreditava, pelos valores que tinha e pela sua eficácia em fazer campanha por aquilo em que acreditava. Não queremos, em nenhumas circunstâncias, alguma vez ver uma repetição daquilo”, afirmou o presidente da Câmara, John Bercow.