A jornalista Fernanda Câncio acusou o rapper português Valete de a ter ameaçado, na sequência de um artigo que escreveu sobre ele. Câncio, que tinha publicado no Diário de Notícias um texto intitulado Valete. O rapper, a adúltera, a caçadeira e a ‘pide feminista‘”, revelou esta quinta-feira, no blogue Jugular, mensagens recebidas em que Valete lhe terá dito “garanto-te que não queres comprar esta guerra”, “estás avisada, Fernanda, não te vou avisar segunda vez” e “se vacilares vou-te provar bem rápido que não ameaço em vão”.

Ao Observador, Valete confirmou a veracidade destas mensagens mas negou que, ao contrário do que a jornalista chega a colocar como hipótese, tivesse tido alguma vez atos de violência física em mente. A “guerra” a que se referia nas SMS é somente de palavras e de tomadas de posição públicas, garantiu ainda o rapper, que prometeu lançar um vídeo já esta sexta-feira a propósito da discussão. “Se a Fernanda quer guerra, vai ter guerra”, disse.

No texto que publicou esta quinta-feira no blogue Jugular, Fernanda Câncio menciona ainda alegadas ameaças de violência física feitas por “alguém que aparentemente é Valete” a outra pessoa, através das redes sociais. O rapper nega ter enviado as mensagens em causa, garantindo ao Observador que “são inteiramente falsas” e que nunca as escreveu. “Está a querer passar a imagem de que o Valete vai andar aí a espancar pessoas. É patético”, afirma o músico.

A polémica teve origem num texto que Fernando Câncio escreveu a propósito do single “BFF”, recentemente revelado pelo rapper. Quer na canção quer no teledisco que acompanhou a publicação do tema no YouTube, é narrada a história de um homem que, ao descobrir que foi traído pela namorada com o melhor amigo, sonha assassinar os dois. O vídeo com o tema, que soma já 876 mil visualizações só no YouTube, dividiu os ouvintes na caixa de comentários, tendo sido elogiado por uns e, por outros, acusado de normalizar e legitimar a violência (não só, mas também, sobre mulheres, num país onde a violência doméstica já matou 20 mulheres em 2019).

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No texto que Fernanda Câncio publicou no DN, a jornalista citava ouvintes que deram a sua opinião em caixas de comentários, artistas como Sónia Tavares (a primeira personalidade pública e do meio musical a tecer críticas ao tema, na conta oficial de Instagram de Valete) e Blaya e o próprio Valete, que negava estar a reforçar estereótipos de género (a mulher que vive às custas do namorado e que não é agradecida por isso) ou a legitimar atos de violência: “É [só] um cineasta e um novelista a contar uma história — não há mensagem. (…) Não estou a reiterar estereótipos. A história é aquela. O Valete nunca disse que não há machismo, que não há homicídio passional… A história aconteceu perto de mim. 90% do que estou a narrar ali é verídico. Não há ali juízo de valor”, referiu, dizendo ainda que “a maior parte das pessoas entendeu” o tema e que quem não o percebeu e criou a polémica foi “um grupo pequeno de feministas de classe média alta, que não ouvem rap” e “um grupo de machistas ignorantes que também não entendem” a gravidade da situação relatada em “BFF”.

As mensagens denunciadas pela jornalista

No texto que publicou esta quinta-feira no blogue Jugular, e que tem vindo a ser difundido ao longo do dia por utilizadores nas redes sociais, a jornalista conta a sua versão sobre o que aconteceu depois da publicação do texto: “No sábado 21 de setembro, às 00.37, recebi uma mensagem do rapper Valete, a quem entrevistara para o DN na terça-feira (publicando artigo na quarta) sobre a sua música mais recente. Nessa mensagem, Valete aconselhava-me a ‘conter-me’ no twitter onde, acusava, eu estava ‘numa intifada anti-valete’. E terminava dizendo: ‘Garanto-te que não queres comprar esta guerra’.”

Fernanda Câncio afirma que respondeu ao rapper dizendo que “nada do que escrevera no Twitter era novo em relação ao que lhe dissera pessoalmente: durante a conversa que tivemos dei-lhe a minha opinião sobre a música e o vídeo, tal como depois da publicação ele me disse que não tinha gostado do artigo. Toda a conversa até essa mensagem na madrugada de sábado tinha sido cordata, entre duas pessoas com opiniões diferentes mas que falam civilizadamente uma com a outra – o normal, portanto”.

Porém no sábado tudo mudou. Depois de lhe responder à primeira mensagem da forma descrita, Valete retorquiu: ‘estás avisada, fernanda, não te vou avisar segunda vez.’ E como lhe tivesse respondido ser melhor não me avisar, e que os únicos avisos do género que recebera na vida vieram de pessoas com as quais supunha que ele não se quereria misturar, deixou ainda mais claro o seu intuito: ‘se vacilares vou-te provar bem rápido que não ameaço em vão. assunto encerrado.’

Depois desta mensagem, a jornalista garante que não voltou a falar com o rapper, que lhe enviou ainda, “na manhã de sábado, um link de um post no facebook em que alguém que se identifica como mulher acusava as mulheres como eu, que consideram que a música e o vídeo de Valete reiteram estereótipos de género e o discurso da misoginia (que aliás se encontra noutras criações dele, como “não te adaptes”) e banalizam a violência sobre as mulheres, de serem ‘pesudofeministas’. E fiquei a pensar no que deveria fazer”.

A jornalista e cronista do Diário de Notícias acrescenta não admitir “que alguém com esta dimensão pública, que é visto como um role model [modelo de comportamento] por muitos jovens e menos jovens, que passa por um ‘rapper consciente’ e com ‘preocupações sociais’ e até por um ‘intelectual’, ache que pode tentar reduzir pessoas ao silêncio com ameaças de mafioso enquanto faz de conta que é um grande defensor da liberdade de expressão e que os ‘censores’, ou ‘pides’ — usou a expressão ‘pide feminista’ — são os que se atrevem a criticá-lo”.

É certo que Valete não é o primeiro a ter esta ideia equivocada e perigosa da liberdade de expressão, que passa por se arrogar poder dizer e fazer tudo mas negar aos outros a liberdade de crítica, taxando-a de censura. Mas é com ele que a falácia da liberdade de expressão melhor se desmascara: é a falácia do opressor, que se arroga o direito a tudo, até à violência, para fazer imperar o seu discurso”, acusa ainda Câncio.

Um dos grandes pontos de divergência entre os dois, que terá levado Valete a fazer ameaças de uma “guerra” que diz ao Observador ser apenas verbal, parece estar na interpretação dos comentários feitos por Fernanda Câncio no Twitter. Um destes é um post feito pela jornalista, a 19 de setembro, no qual escrevia: “O que acharias se um certo skinhead desse em musico e fizesse um vídeo em que andava a insultar negros, a meter-lhe canos de caçadeira na boca, a dizer que vivem à conta dos ‘portugueses’ — enfim, o costume. E a seguir dissesse ‘é só uma história, não tem mensagem, aconteceu com um amigo‘.”

Num outro comentário, Câncio defendeu que “um feminista é alguém que nas suas canções não repete estereótipos de género”; e noutro ainda que “Valete não é exatamente um feminista e isso é visível no que fez antes”. Para a jornalista, trata-se de opiniões e interpretações das suas canções. Para Valete, trata-se de difamação.

Valete: “O hip hop está a perder a única coisa que não podia”

Independentemente da intenção das ameaças, Fernanda Câncio considera-as graves. “Como escrevi no texto, não sei qual é a concretização possível da ameaça. Sei que tem uma intenção, que é que me cale. Foi para isso que recebi as mensagens, para ficar calada. Isso em si é um problema. Se a concretização [ou consequência] seria violência física, outro tipo de violência ou outro tipo de concretização, não é explícito”, afirma a jornalista ao Observador, acrescentando que “ainda não decidiu” se agirá judicialmente contra o rapper e que não tem “muito mais a acrescentar além do que está no texto”.

Valete fala em “assassinato de caráter” e em “guerra” de palavras

Em declarações ao Observador, o rapper assume que “é verdade” que enviou as mensagens. E reitera: “Mantenho: a Fernanda querendo guerra, vai ter guerra. Não há nenhuma ameaça [de violência] aqui, há um assassinato de caráter ao Valete. Difamaram-me no Twitter”.

Segundo o rapper, o seu desagrado deve-se ao que considera ser “um texto completamente tendencioso” que a jornalista publicou no DN. Valete afirma que Câncio lhe ligou “porque queria fazer um artigo sobre o meu tema, ‘BFF’. Avisei a Fernanda: vou dar-te umas declarações se fizeres o artigo de forma imparcial. Garantiu-me isso. Falámos muito, muito mesmo. O que ela fez depois foi dilacerar completamente o que lhe disse, montou um puzzle que me fazia parecer um maluquinho”.

Ligou-me a [dizer que queria] tentar perceber qual era a ideia do criador [do tema]. Na obra, não há nenhuma declaração do Valete, que fez uma ficção e criou três personagens que têm vida própria. O criador não opina sobre nada”, reitera.

Valete não gostou de ler o texto: “Disse-lhe logo: Fernanda, foste tendenciosa, não gostei nada desse artigo”. Referiu ainda que o descreveu como “um golpe baixo” e que “já era expectável” que fosse tendencioso, “só pôs o que lhe interessou”. Seguiu-se o que acusa de ser “uma intifada contra o Valete no Twitter” e afirma que “a pessoa que vi no Twitter não é a mesma que me entrevistou”.

Assumindo assim que usou, de facto, a expressão “guerra”, mantém as mensagens que enviou e as ameaças que “não são em vão”. Mas o que tem em mente, garante, não são, “obviamente”, ações violentas, mas sim críticas “a um ataque ao Valete de um feminismo burguês, que tem como uma das líderes a Fernanda Câncio”, garante. “Há décadas que tenho muito a dizer sobre o feminismo burguês em Portugal e agora estão a dar-me espaço para isso”, diz ainda, mencionando então o “vídeo que estará na internet amanhã”.

Os próximos capítulos deverão envolver críticas e ataques de Valete a Fernanda Câncio: “Há muitos adolescentes que não estão muito ligados às notícias e que não sabem quem é a Fernanda Câncio, ou o papel que teve no momento em que o Sócrates era um dos maiores criminosos de Portugal. Então, quando falo em guerra é: vamos falar dessas coisas, dessas feministas pop star que estão-se a marimbar para a luta das mulheres e o que querem é visibilidade para poderem criar momentos, ventos, vivendo à custa de dinheiros públicos”.

As promessas de sangue que Valete nega: “Falsas”

Na internet tem sido difundida uma troca de mensagens a que Fernanda Câncio se refere no texto que publicou esta quinta-feira e cuja veracidade Valete nega. Numa mensagem “dirigida a um homem”, alguém que “aparentemente é Valete” — segundo Câncio e vários utilizadores das redes sociais — , “através da sua conta de Instagram”, ameaça com atos de violência física: “‘Tás [sic] avisado. Vou-te dar duas cabeçadas pa [sic] aprenderes a não ser espertinho. Que a minha mãe morra se eu não te deixar ensanguentado”.

Além desta primeira ameaça, “foi também enviada uma mensagem, da mesma conta, para a mulher do homem ameaçado”, relata Câncio. Esta teria a seguinte mensagem: “Só para avisar que o teu marido foi desrespeitoso em relação a mim. Ainda esta semana vou ter com ele e vou-lhe dar nos cornos. Só para ele aprender que isto não é m**** de putos a brincar aos telemóveis”. O alegado recetor da mensagem terá falado com Câncio, segundo esta escreve no seu texto: “Disse-me que está a ponderar apresentar queixa. E viu-se obrigado a mudar o nome da sua conta no instagram, cadeá-la e distorcer a foto que o identificava”.

No blogue Jugular, Fernanda Câncio acusava ainda Valete de ter “a violência” como “reação ao que considera um ‘desrespeito’ ou simples contrariedade” e apontava não saber como Valete tencionava concretizar as ameaças que lhe fizera. O que também afirmou não saber é “como integrar esta atitude na pessoa com quem estive horas a falar de forma cordata e com quem até tinha simpatizado”.

O rapper negou ter sido o autor das alegadas mensagens que ameaçavam explicitamente um crítico seu com violência física: “É uma patetice. As mensagens que estão a circular no Twitter, que dizem que são minhas, são falsas. É até muito grave”, refere, admitindo “denunciar pessoas que estão a partilhar essas mensagens”.