A História
Vítor Sobral dispensa apresentações mas mesmo assim nunca é demais relembrar que é um dos nomes maiores da gastronomia portuguesa, um cozinheiro que conseguiu impor-se numa altura em que o mundo da restauração em Portugal ainda era demasiado conservador e o papel dos cozinheiros não era encarado com respeito. Foi um dos primeiros chefs a começar o processo de modernização que deu origem a muitos aspetos da cozinha contemporânea que reconhecemos atualmente. De alguma forma fez arrancar uma revolução culinária em Portugal que hoje se materializa no autêntico império de restaurantes que tem espalhado por Portugal e Brasil. Primeiro veio a Tasca, depois a Peixaria, a Padaria, o Balcão e agora há o Talho — tudo sempre “da Esquina”.
Apesar de todas as polémicas que recentemente têm questionado o consumo de carne, a de vaca especialmente, nunca houve tantos restaurantes a assumirem-se como inteiramente dedicados à proteína de origem animal (e curiosamente também continuam, cada vez mais, a abrir restaurantes vegetarianos, em contra-ponto). Apesar desta realidade ser inquestionável a verdade é que Sobral não se rendeu a uma moda ao querer apostar neste seu novo projeto, pelo menos foi isso que contou ao Observador num dos primeiros dias de funcionamento desta casa. “A minha ideia era fazer tudo aquilo que fosse português, uma coisa sobre as nossas formas de comer carne. Fazia-me confusão, por exemplo, ir a um restaurante de carnes e não terem porco. Ou frango, até! Mas afinal o que é que é o churrasco para nós?”
Sem papas na língua e direto ao assunto, Vítor Sobral resumiu nessas frases toda a motivação por trás deste novo projeto que sofreu os habituais atrasos na data de abertura mas que já está em pleno funcionamento.
O Espaço
Simplicidade. Minimalismo, quase, até. Esta é a melhor forma para descrever o espaço onde mora este Talho da Esquina, a fachada de um prédio antigo virado para a Assembleia da República. Como o que aqui mais interessa é a carne, sejamos diretos, é ela que assume todo o protagonismo, basta ver que logo à entrada mora a câmara onde repousam os enormes nacos de carne que minutos depois vão poder ir parar ao seu prato. Fora isso há uma divisão na forma de um “L”, quase, onde imperam cores neutras como o branco, o cinzento, a madeira clara o mosaico hidráulico e ainda uma obra do street artist Bordallo II, que irá morar na parede mais ao fundo desta divisão.
Há uma zona de balcão “enfeitada” com enormes recipientes com pickles caseiros, muito coloridos, e é atrás deste sítio (tudo o que o rodeia são mesas e cadeiras normais) que mora uma das zonas de cozinha do espaço. Nessa área acontecem as preparações menos complexas enquanto no andar de baixo existe uma cozinha maior, mais virada para a preparação dos ingredientes. Este piso inferior não tem apenas uma área de confeção: a fazer-lhe companhia há uma sala privada, que pode ser reservada para comemorações ou refeições de negócios e trabalho (com a vizinhança política que tem é algo que pode vir a dar muito jeito).
A Comida
À primeira vista, falar sobre a comida deste novo restaurante é simples — é de carne. Pensar assim, porém, não podia ser mais enganador e Vítor Sobral é rápido a desfazer essa ideia. De um ponto de vista mais geral podemos dizer que existem dois tipos de vaca: “As que são produzidas para carne e outras que são para trabalho [as leiteiras são um bom exemplo].” O que diferencia umas das outras? A resposta para esta questão está na forma como são tratadas após o abate, é nesse momento que do ponto de vista alimentar começam a surgir as diferenças.
Sentado à mesa com o Observador enquanto se prova um dos pratos da carta, a entrada de moelas grelhadas com pimentão da horta e piri-piri (8,50€), Sobral começa a explicar: “Um novilho criado para trabalho normalmente entre 22 meses e 2 anos, na nossa gíria dizemos que é uma carne verde. Por lei, quando um animal é abatido tem de passar 15 dias pendurado no matadouro, não pode sair antes. Há produtores que as deixam mais outros 15 dias mas mesmo assim, apesar desse tempo, ela não e considerada uma carne maturada.”
Mencionar este tipo de ingrediente não é por acaso. Como qualquer boa casa de carne dos tempos de hoje, o Talho da Esquina serve carnes maturadas, veja-se o T-bone/costeleta Arouquesa com 45 dias de maturação (a 95€/Kg), que pode vir acompanhado com um creme de manteiga e alho (3€) e uma simples porção de batata frita (4,80€). Sobral não quer confusões e explica que não é o simples facto de uma “carne passar um mês no frio” que a torna maturada, o processo é muito mais complexo — é preciso uma temperatura controlada entre dois graus positivos e três negativos, sempre com uma humidade a rondar os 80%, por exemplo — e específico para certas raças. O chef dá como exemplo as vacas de leite, por exemplo, que por normalmente terem vários anos de idade ficam com a sua carne mais rija e dai precisarem de alguma maturação para ficarem mais tenras — “Quanto mais longa a maturação, mais tenra a carne”, remata. Em termos de sabor também há diferenças, Sobral esclarece que a tal carne verde “tem um sabor… a carne”, enquanto a “maturada tem uma coisa mais amanteigada” e intensa.
Passando da generalidade ao específico convém ressalvar que nesta casa, no que diz respeito à carne maturada (há “fresa”, também) é possível encontrar peças com “45 a 200 dias” de maturação, existindo a hipótese de ocasionalmente haver de 300 dias. Talvez até carne de boi castrado, “que têm imensa gordura e é delicioso”. Toda ela é de produção nacional — “compro-a ao Lopes, em Guimarães” — e chega ao restaurante já maturada.
Como um dos propósitos desta casa é precisamente mostrar outros tipos de proteína animal para lá da bovina convém destacar que existem alternativas como a mão de cabrito e batata assada (28€); a empada de pato, rúcula, chutney de abacaxi e laranja (9,50€); as asas de galo grelhadas com limão, gengibre e mel (8,50€); o focinho de porco grelhado com creme de coentros, cebola avinagrada e azeite de trufa (13,50€) ou até a entremeada de porco grelhada com creme de alho e vinagrete de tomate assado (9,80€). Os vegetarianos não foram ostracizados, podendo escolher pratos como a lasanha de legumes (14,50€) ou a “paella da terra” (12,50€), e no capitulo das guloseimas há a tradicional (e deliciosa) baba de camelo (5€) e o pudim de mel e laranja (6€).
Numa época onde o consumo da carne é cada vez mais demonizado vale a pena ir além da espuma dos dias e dedicar alguma leitura ao tema. No seu livro “A Defesa do Consumidor”, por exemplo, o investigador norte-americano Michael Pollan explica que a dieta ideal de um ser humano deve ser variada, com mais enfoque nos vegetais e menos carne — não “sem carne”. Se se evitar a carne produzida em modo industrial em detrimento daquela que provém de pequenos produtores locais o impacto ambiental pode muito bem decrescer. Passa a haver menos carne disponível, já que a que existe é produzida a um ritmo menos intenso, ela será mais cara (justamente, porque o criar de forma livre e ética implica custos mais elevados), logo comeremos menos e tudo ficará mais saudável.
O que interessa saber
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Nome: Talho da Esquina
Abriu em: Setembro de 2019
Onde fica: Rua Correia Garção, 15, Lisboa
O que é: Mais uma “esquina” para o chef Vítor Sobral juntar ao seu império de restaurantes que se dedica em exclusivo ao melhor da carne portuguesa.
Quem manda: O grupo Vítor Sobral
Quanto custa: Preço médio entre os 30 e os 35 euros
Contacto: 213 900 997
Horário: De terça-feira a sábado, das 12h30 às 15h30 e das 19h30 às 23h30; segunda-feira das 19h30 às 23h30 (fecha domingo)
Links importantes: Facebook, Site
“Cuidado, está quente” é uma rubrica do Observador onde se dão a conhecer novos restaurantes.