“As relações desportivas são uma coisa, as relações pessoais são outra. Houve uma guerra dos mind games [com Rui Vitória] que era muito moda dos treinadores portugueses, que é outra situação que para mim vai acabar. Aprendi que importa é respeitar o futebol e as pessoas, mesmo tendo em conta que com os mind games não se deixa de respeitar as pessoas, continuas a respeitá-las. Agora, há interesses de um lado e de outro, em Portugal fala-se muito antes dos jogos, pressiona-se muito antes dos jogos e vou tentar que da minha parte seja mais pressão dentro do campo, que ganhem os melhores dentro do campo, quem for melhor treinador e quem tenha os melhores jogadores que ganhe dentro do campo e quero menos bla bla bla“. Jorge Jesus, fevereiro de 2019.

Durante muito tempo, Jorge Jesus chegou até a ser apelidado de mestre dos mind games. E ainda hoje dirigentes (ou antigos dirigentes) dos últimos dois clubes em que passou em Portugal comentam, com a devida distância no tempo, como o treinador acabado de chegar ao Sporting conseguiu mexer com o homólogo Rui Vitória e o próprio Benfica – ganhando os primeiros três dérbis do ano – antes de esticar um pouco mais a corda e unir o rival Benfica sem que conseguisse a seguir travar a série vitoriosa até à vitória no Campeonato. A passagem pelo Al Hilal, da Arábia Saudita, mudou esse lado, segundo o próprio. Mais do que deixar esses jogos psicológicos, quis centrar-se apenas no que se passava no relvado mas nem por isso os mind games lhe perderam o rasto.

Uma vitória. Duas, três, quatro. Após o surpreendente desaire com o Bahia (3-0) quando nada o fazia prever, já depois de ter superado um período inicial onde se sentiu alguma contestação aos adeptos pela eliminação na Taça do Brasil nas grandes penalidades, um empate a um em Porto Alegre foi suficiente para Jorge Jesus ter o primeiro grande marco no Flamengo, ao levar a equipa às meias-finais da Taça dos Libertadores 35 anos depois. E vieram depois mais cinco triunfos consecutivos, que marcaram novo recorde neste caso do Campeonato (a equipa do Rio de Janeiro nunca tinha ganho sete partidas seguidas na prova). O empate sem golos no último sábado com o São Paulo acabou por não ter efeito direto na liderança depois da igualdade do Palmeiras mas a verdade é que os olhos já estavam centrados no encontro frente ao Grémio. Que começou bem antes do apito inicial.

“Concordo que o Flamengo está a jogar o melhor futebol do Brasil em conjunto com o Grémio mas o Jorge Jesus só ganhou dois ou três títulos em Portugal. Saiu de Portugal e foi para a Arábia Saudita. Ele nunca treinou fora de Portugal um grande clube na Europa. Nunca conquistou nada e está com 65 anos”, atirou há uma semana e meia Renato Gaúcho, treinador da formação de Porto Alegre. “Ele está com uma seleção nas mãos, é obrigado a fazer exatamente o que está fazer: colocar o Flamengo jogar bem. Vamos saber se ele tem capacidade, se é um grande treinador e vai ser se ganhar títulos no final”, acrescentou. Já Jorge Jesus, versão pós-Al Hilal, mantinha-se fiel ao jogo dentro do relvado e admitia a maior experiência do homólogo na prova: “Vamos passo a passo”.

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Desde que chegou ao Brasil, Jorge Jesus já elogiou e criticou. Já foi elogiado e criticado. Sobretudo, nunca passou ao lado, da conferência de apresentação ao primeiro treino, da estreia oficial à série de triunfos consecutivos. Com os passar das semanas, o que mudou foi apenas a densidade do foco em cima do treinador português – que tem vindo a aumentar de forma gradual para picos de popularidade onde chegou a superar em sondagens humorísticas Jair Bolsonaro como presidente do país. A forma como vive os encontros, muitas vezes fora da área técnica, pegou de estaca logo a abrir mas Jesus soube integrar-se no meio em que estava inserido, como se viu por exemplo com a dedicatória via TV para um grupo de surdos mudos que tinha visitado o Ninho do Urubu, na Gávea. Tudo a correr de feição até ao grande momento da época, com a primeira mão das meias da Libertadores.

Com apenas uma vitória na maior competição sul-americana (1981, nos tempos áureos de Zico), o troféu começou a tornar-se uma obsessão para o Flamengo. Para o clube, para os dirigentes, para os adeptos, para Jorge Jesus. E a forma como quis dar o primeiro passo para uma presença no jogo decisivo acabou por marcar, e muito, a primeira parte do encontro: deixando para trás a parte estatística do Mengão em Porto Alegre frente ao Grémio (apenas quatro vitórias em 42 partidas, a última em 2004), o português montou uma estratégia de risco mas bem conseguida que lhe permitiu dominar por completo a primeira parte onde nem golos faltaram… mas anulados.

Com zonas de pressão altas e que chegaram a colocar todos os jogadores menos o guarda-redes Diego Alves no meio-campo do Grémio, o Flamengo conseguiu criar três oportunidades em seis minutos ainda no primeiro quarto de hora do jogo: primeiro foi Arrascaeta a receber um passe atrasado de Filipe Luís para rematar cruzado a rasar o poste (9′); logo a seguir Bruno Henrique ganhou a bola no corredor central, viu que tinha espaço e arriscou um tiro de fora da área que ainda bateu no poste de Paulo Victor (10′); e Gabriel Barbosa, após diagonal na área, recebeu de forma orientada mas atirou outra vez ao lado da baliza do Grémio (15′). Pelo meio, Alisson teve uma tentativa por cima da baliza do conjunto do Rio de Janeiro e pouco mais.

Era o Flamengo que brilhava, ia ser o VAR a brilhar: Éverton Ribeiro, numa remate à entrada da área após mau desvio de Paulo Victor a soco, marcou mas houve uma falta antes de Gabriel Barbosa (21′); depois, Gabriel Barbosa beneficiou de uma má abordagem do guarda-redes para voltar a marcar, neste caso um lance anulado por fora de jogo que deixou muitas dúvidas (23′). Jorge Jesus, que já tinha celebrado o primeiro lance como se fosse mesmo contar, bem que tentou agitar os braços e apontar para o árbitro assistente e para a bancada antes de fixar no ecrã gigante do estádio mas o nulo mantinha-se, sendo que a próxima intervenção do VAR, sobre um possível vermelho a Michel por entrada duríssima sobre Gerson, voltou a ser “desfavorável”. Com o triplo dos passes (mais de 220), uma posse de 67% e três chances claras contra nenhuma do adversário, chegou o intervalo.

Renato Gaúcho saiu disparado para os balneários, visivelmente irritado com o Grémio tinha feito (ou não tinha feito) na primeira parte, enquanto Jorge Jesus não perdeu a oportunidade para garantir que todos os jogadores saíam enquanto deixava umas palavras ao árbitro assistente que tinha anulado os dois golos. O Flamengo esteve sempre melhor mas o conjunto de Porto Alegre iria conseguir alterar essa tendência com mais bola e cantos ainda que sem oportunidades, ao contrário dos visitantes que viram Gabriel Barbosa rematar à entrada da área a rasar o poste (60′). Faltava Diego Alves brilhar e conseguiu-o em dose dupla, primeiro com uma intervenção fantástica a remate de Everton (63′) e depois com Matheus Oliveira a ver a tentativa travada para canto (65′).

Jesus pedia para o meio-campo, sobretudo Arão e Gerson, andarem mais juntos, ao mesmo tempo que chamava a atenção dos avançados para terem mais bola caso não conseguissem sair nas habituais transições rápidas. Pouco depois, foi dessa forma que o Flamengo chegou mesmo à vantagem: momento de posse entre Éverton Ribeiro, Rafinha, Arão e Arrascaeta, entrada de Gerson (que sairia lesionado pouco depois) para fazer a diferença no espaço entre linhas, cruzamento de Arrascaeta ao segundo poste e cabeceamento de Bruno Henrique (68′). Gabriel Barbosa voltaria a marcar ainda antes do final, em mais um golo anulado por fora de jogo (80′) mas seria o Grémio a empatar num último forcing, com Pepê, entrado pouco ante, a encos.