As questões sociais, do emprego à saúde, dominaram a campanha para as eleições legislativas antecipadas de domingo no Kosovo, mas a “batata quente” de um eventual acordo com a Sérvia vai permanecer o principal desafio.

Pela primeira vez desde a autoproclamação da independência do Kosovo em 2008, os temas sociais obtiveram primazia sobre as eternas “questões nacionais”. A sombra do diálogo com a Sérvia planou sobre a campanha, mas o emprego, a corrupção, o direito à educação e saúde dominaram os discursos, sugerindo à população que, 20 anos após o fim dos combates, é possível uma mudança.

No total, 1.068 candidatos disputam os 120 lugares do parlamento do Kosovo (20 reservados às “minorias”), num país com menos de dois milhões de habitantes, mas uma importante diáspora.

“Existem 1.937.869 nomes nos cadernos eleitorais, incluindo mais 200.000 eleitores que os residentes [permanentes]”, informou Valdete Daka, presidente da Comissão eleitoral central (CCE), sugerindo que as listas de eleitores permanecem desatualizadas.

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Do lado dos albaneses kosovares, quatro listas disputam o primeiro lugar: a Liga democrática do Kosovo (LDK), o Partido democrático do Kosovo (PDK), o movimento Vetëvendosje! (VV, Autodeterminação!) e a coligação formada entre a Aliança para o futuro do Kosovo (AAK) de Ramush Haradinaj e o Partido social-democrata (PSD).

A “mudança” foi outro desafio que se instalou nos discursos, pela eventualidade de o PDK perder finalmente o poder, já que os seus três principais adversários manifestarem total indisponibilidade para qualquer aliança pós-eleitoral com a formação do Presidente Hashim Thaçi, que domina a vida política kosovar desde o final da guerra em 1999.

De acordo com as sondagens, o escrutínio de domingo pode provocar outra situação inédita: Vjosa Osmani, primeira candidata pelo LDK (centro-direita), poderá tornar-se na primeira mulher a dirigir o Kosovo, onde os homens são hegemónicos nos postos de liderança.

A LDK tem surgido à frente das sondagens e caso vença, o presidente Hashim Thaçi deverá confiar a esta jurista de 38 anos a tarefa de formar uma coligação. Caso obtenha sucesso, será a nova primeira-ministra. Deputada desde 2011, Vjosa Osmani, que estudou nos Estados Unidos, referiu à agência noticiosa AFP que tem resistido à “animosidade” de uma classe política que demonstrou “não estar à altura de garantir a prosperidade” aos 1,8 milhões de habitantes do Kosovo e “traiu o povo”.

A situação económica do Kosovo permanece preocupante e milhares de pessoas, sobretudo jovens, continuam a abandonar a região devido à ausência de perspetivas, diariamente confirmadas pela persistência de um desemprego endémico. Perante este cenário, é possível admitir que o PDK seja afastado do poder, após se ter tornado para setores importantes da população no símbolo da corrupção e do crime organizado.

Este partido apresenta como cabeça de lista Kadri Veseli, na liderança desde 2016, ex-presidente do parlamento e antigo chefe dos Shik, os serviços secretos do exercito de libertação do Kosovo (UÇK). E voltou a apostar na cartada patriótica, utilizando ainda as suas ligações clientelistas na administração pública e grandes empresas.

O ex-primeiro-ministro Ramush Haradinaj, antigo comandante do UÇK e que liderava uma ampla coligação governamental, também joga a sua sobrevivência política.

Haradinaj demitiu-se em 19 de julho, após ser convocado pelo Tribunal especial para o Kosovo, com sede em Haia, como suspeito de crimes de guerra no decurso da “guerra do Kosovo” (1998-99), o último conflito na ex-Jugoslávia.

No campo oposto, a “batalha” entre os sérvios kosovares decorreu sobretudo a nível interno, com dois campos opostos: os apoiantes do homem forte da Sérvia, o Presidente Aleksandar Vucic, reunidos em torno da Lista Srpska, e uma candidatura comum de dissidentes, unidos para propor uma alternativa menos submissa a Belgrado.

Apesar de quase ausente na campanha, por permanecer uma “batata quente”, a conclusão de um acordo definitivo com Belgrado para garantir o reconhecimento da independência da sua antiga província do sul permanece a principal questão para os dirigentes de Pristina.

“Um governo que não tenha uma abordagem positiva do diálogo com a Sérvia não será tolerado pelos ocidentais”, assinalou o analista político Arton Muhaxhiri, interrogado pela agência noticiosa AFP.

O futuro primeiro-ministro será alguém que seja capaz de se alinhar com o presidente Thaçi para concluir um eventual acordo com a Sérvia… Se possível antes das eleições na Sérvia e nos Estados Unidos, no próximo ano”, admitiu um diplomata sob anonimato.

Os EUA designaram um emissário especial para o Kosovo com o objetivo de alcançar este acordo, e responsáveis europeus têm intensificado as deslocações a Belgrado e Pristina.

A questão do radicalismo religioso foi outro tema pouco abordado, mas que permanece latente quando no Kosovo têm surgido sinais de um reforço de práticas religiosas mais rigorosas.

Cerca de 90% dos habitantes, na larga maioria albaneses, declaram-se muçulmanos e praticam na maioria um “islão liberal”, com tradição nos Balcãs.

No entanto, o radicalismo tem-se propagado, em particular através de imãs que se deslocaram à Arábia Saudita, que também financiou a construção de várias mesquitas.

Mais de 400 kosovares juntaram-se às fileiras jihadistas, em proporção a percentagem mais elevada em toda a Europa. Cerca de 70 foram mortos, 200 regressaram e perto de 50 foram julgados por terrorismo, incluindo uma dezena de imãs.

As autoridades têm reafirmado o seu empenho no combate à radicalização. E apesar das acusações de islamofobia, têm mantido a interdição do véu para as funcionárias estatais e para as alunas das escolas públicas.