Um conjunto de textos autobiográficos da escritora norte-americana Lucia Berlin, nos quais estava a trabalhar antes de morrer, foi compilado com fotografias e cartas da sua vida privada, compondo um livro de memórias inédito que chega agora a Portugal.

“Bem-vinda a casa (Memórias)”, editado este mês pela Alfaguara, é o resultado do trabalho de Jeff Berlin, filho da escritora, que ao livro de textos autobiográficos, em que a mãe estava a trabalhar antes de morrer, e a que dera o título que agora se apresenta nesta edição, juntou um conjunto de fotografias e cartas dos primeiros 29 anos da vida da autora. As histórias e contos que povoam este livro são autobiográficos, porque Lucia Berlin inspirava-se na própria vida – preenchida, trágica e romântica – para rechear a sua ficção, como explica Jeff no prefácio.

Em “Anoitecer no Paraíso”, coletânea de contos que correm sobre o fio biográfico da autora, editado em 2018, Mark Berlin, outro dos seus quatro filhos, referia isso mesmo: “A mãe escrevia histórias verdadeiras; não necessariamente autobiográficas, mas bastante perto disso. As histórias e memórias da nossa família têm sido lentamente moldadas, embelezadas e editadas ao ponto de eu já não ter a certeza do que aconteceu realmente o tempo todo. A Lucia dizia que isso não interessava: a história é que conta”.

Jeff Berlin tem uma perceção semelhante e conta que as memórias mais antigas que tem são de andar com o irmão Mark de triciclo pela casa, “enquanto a mãe martelava as teclas da sua máquina de escrever ‘Olympia’”, e aquilo que eles julgavam ser apenas cartas, eram também histórias, histórias de vida, mas na altura ainda não o sabiam. As crianças cresceram a ouvir as histórias da mãe, contadas à noite, antes de adormecerem: as suas aventuras com o melhor amigo, o urso que os manteve reféns quando foram acampar, a cabana com as paredes forradas a páginas de revistas, a tia Tiny em cima do telhado, ou o puma de estimação do tio John.

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Mas foi só mais tarde que Jeff descobriu que a mãe escrevia estas histórias, quando encontrou por acaso uma delas no estojo de uma máquina de escrever, dentro de um armário. Lucia contou então ao filho que anos antes publicara alguns textos em revistas e mostrou-lhos, mas não o deixou ler os que estava a escrever, prometendo que o faria quando os acabasse.

Passaram mais sete ou oito anos e, nessa altura, a vida de Lucia Berlin era um caos – tinha tido mais dois filhos (David e Dan), divorciara-se do terceiro marido, mudara de cidade e ganhava a vida com dificuldade, como professora num pequeno colégio particular -, mas foi também a época em que “escreveu mais do que nunca”.

Depois do jantar e do programa de televisão preferido, sentava-se à mesa da cozinha com um copo de bourbon e começava a escrever, amiúde até de madrugada, geralmente à mão com uma esferográfica em cadernos de espiral.

Ocasionalmente, os filhos eram acordados a meio da noite “com o barulho da máquina de datilografar, muitas vezes abafada pela sua música preferida do momento, a tocar vezes sem conta na aparelhagem”, conta Jeff Berlin.

Os primeiros contos que terminou por aquela altura foram os que começara a escrever em Nova Iorque, antes de se mudar, mas em breve estes deram lugar a histórias mais pessoais, fruto de más situações e tragédias íntimas, resultantes do seu alcoolismo cada vez mais grave.

Depois de perder o emprego como professora, fez uma série de trabalhos – empregada de limpeza, telefonista, rececionista hospitalar – que, tal como o tempo que passou em celas para bêbedos e centros de desintoxicação, lhe forneceram uma abundância de material para novos contos, recorda Jeff.

Passados anos, a última coisa que leu ao filho foi uma versão inicial de “Bem-vinda a casa”, uma série de reminiscências dos lugares que considerava a sua casa e que tencionava que fossem esboços de lugares, sem personagens nem diálogos.

Eram as histórias de infância que contara aos filhos em pequenos, mas que agora se apresentavam por ordem e sem se fazerem passar por ficção.

O tempo esgotou-se e a derradeira versão do manuscrito termina em 1965, com a última frase inacabada. Lucia Berlin morreu em 2005 e só dez anos depois, com a publicação de “Manual para mulheres de limpeza”, foi aclamada como uma das grandes contistas americanas e uma das mais importantes redescobertas literárias do século.

Estas histórias que evocam memórias da autora, ancoradas nos lugares por onde passou e viveu, percorrem os anos da sua vida desde o nascimento, em 1936, no Alasca, até ao último registo escrito antes da morte.

A importância para Lucia Berlin, que teve uma vida itinerante, de um lugar a que chamasse lar fica patente no excerto de uma entrevista que deu em 2003: “Já vivi em tantos lugares que chega a ser absurdo… e, como mudei de casa tantas vezes, a noção de lugar é muito, muito importante para mim. Ando sempre à procura… à procura de casa”.

A autora de “Manual para Mulheres de Limpeza” e “Anoitecer no Paraíso” morreu na Califórnia, em 12 em novembro de 2004, o dia em que completava 68 anos.