Raptada aos 10 anos, justamente no primeiro dia em que a mãe lhe deu autorização para percorrer sozinha o caminho até à escola, Natascha Kampusch tinha 18 quando finalmente conseguiu fugir de Wolfgang Priklopil, o homem 26 anos mais velho que a manteve durante todo esse tempo presa numa cave insonorizada com menos de 5 metros quadrados num subúrbio de Viena.

Quando na manhã de 23 de Agosto de 2006 o viu distraído ao telemóvel e aproveitou finalmente para fugir, Natascha não fazia ideia de que o raptor ia atirar-se para baixo de um comboio, mas sabia que o mais certo era que se suicidasse. Mesmo assim, não hesitou e correu, pondo fim a oito anos, descreveria depois em inúmeras entrevistas aos meios de comunicação austríacos e do mundo inteiro, de espancamento, fome e abusos sexuais e psicológicos.

O que Natascha Kampusch, hoje com 31 anos, nunca poderia ter imaginado é que o seu inferno não iria chegar ao fim com a morte de Priklopil, contou agora em “Cyberneider: Diskriminierung im Internet”, o novo livro que escreveu, a denunciar o assédio de que tem sido alvo através da internet.

“Fiz inúmeras denúncias mas nunca aconteceu nada porque os relatórios diziam sempre que estava numa área cinzenta. Por exemplo, quando alguém me dizia “Morre!”, a polícia dizia que era apenas uma sugestão e não uma ameaça direta. A certa altura, fartei-me de lhes pedir ajuda”, contou a austríaca ao alemão Bild, numa entrevista de promoção ao livro. “O assédio online tornou-se parte da minha rotina. Houve dias em que não saí de casa porque tudo era muito difícil”, acrescentou, para depois revelar outra das ofensas mais comuns: “Devias ter ficado na cave”.

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“Cyberneider” é o terceiro livro que Natascha Kampusch escreve desde que saiu da cave de Priklopil em Strasshof, nos arredores da capital austríaca. Há apenas três anos publicou “Dez Anos de Liberdade” e no lançamento, em Berlim, explicou que a vida à superfície não é bem como tinha imaginado: “Fugi de um inimigo e de repente tinha dezenas de inimigos, milhares até em alguns fóruns da Internet”.

Muitos deles ter-se-ão revoltado contra ela justamente depois de lerem a sua primeira obra, “3096 Dias”, onde recorda os horrores por que passou ao longo dos anos de cativeiro — Priklopil humilhava-a, batia-lhe e, desde o dia em que fez 12 anos, abusou dela sexualmente —, mas também os momentos menos maus — tinha 14 anos quando o homem mergulhou com ela na piscina dos vizinhos do lado e 17 quando o acompanhou numa viagem à neve.

Outros não lhe terão perdoado outro tipo de ofensas, como o aval que deu à realização de um filme com a sua história, o facto de ter recebido uma indemnização do estado austríaco ou de ter aceitado ficar com a casa onde foi mantida em cativeiro, à laia de compensação extra pelos danos sofridos.

Mais intolerável para o público só mesmo o facto de Natascha Kampusch nunca ter sido capaz de se referir a Wolfgang Priklopil como um monstro. “Claro, o raptor roubou-me a minha juventude, trancou-me e atormentou-me – mas durante estes anos essenciais para a minha vida, entre os 11 e os 18, ele foi a única figura a que me pude apegar. Ao escapar libertei-me do meu tormento, mas também perdi uma pessoa que era, por força das circunstâncias, próxima de mim”, escreveu em “3096 Dias”. Treze anos depois, continua presa.

Ouça aqui o Jet-Lag, de Filomena Martins, que passou esta manhã na Rádio Observador, sobre esta história:

O novo inferno de Natascha Kampusch