Em Mimesis, um dos mais importantes livros que a crítica literária deu ao século XX, Auerbach defende que a literatura ocidental, ao contrário do que é dito habitualmente, depende muito mais da Bíblia do que da Odisseia. O modelo narrativo da Odisseia, explica Auerbach, é muito mais distante do ponto de vista natural do que o modelo bíblico. Enquanto a Odisseia aposta num mapeamento completo do espaço, mesmo que para isso tenha de suspender a ação, a Bíblia, e sobretudo o Pentateuco, privilegia o tempo, mesmo que este dê uma perceção fragmentária do que o rodeia; enquanto as personagens da Odisseia são sólidas, das da Bíblia só temos vislumbres; a Odisseia é um monumento, mas a Bíblia acabou por fazer mais escola.

Ora, não é de estranhar, portanto, que Harold Bloom, o mais famoso crítico literário dos últimos anos, combine um fortíssimo interesse literário pelo Pentateuco com uma vontade de realçar constantemente os méritos do cânone literário do Ocidente. É certo que, do ponto de vista histórico, a batalha pelo cânone tem uma oportunidade a que é difícil escapar. Um académico americano como Bloom, professor de literatura, terá passado os últimos anos do século com uma contestação permanente ao valor do cânone; seja pelas hermenêuticas ou estruturalismos mais rebarbativos, que condenam a autoria à quase irrelevância, seja pelo neo-marxismo universitário que olha para o indivíduo como um rasto burguês, seja pelos novos grupos identitários que reclamam do “eurocentrismo” do cânone ou da falta de representatividade das minorias na História da Literatura, a verdade é que o modelo tradicional da literatura, ou pelo menos de estudar literatura, foi ultra contestado desde meados do século vinte.

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A obra de Bloom, embora tenha fases bem vincadas, pode sempre ser vista como uma defesa pouco canónica do cânone tradicional. Os seus primeiros livros são estudos monográficos sobre Shelley e Yeats, numa espécie de combate em duas frentes. O estudo monográfico sobre um autor, já o vemos, seria por si só uma espécie de provocação ao estruturalismo militante. Enquanto Edward Said, para citar um exemplo Americano, escreve sobre grandes campos ou temas literários, Bloom escreve sobre indivíduos; mas os livros de Bloom são também uma resposta a uma polémica que chega atrasada aos Estados Unidos. No princípio do século XX, há em França uma grande polémica entre Clássicos e Românticos que é, no fundo, uma polémica sobre a ordem.

Há uma tese sobre o Romantismo — de que Teófilo Braga nos dá um cheirinho no seu Romantismo em Portugal – que olha para este movimento como a recuperação daquilo que é próprio de cada povo, e que estaria abafado pelo cesarismo Romano.

Maurras, por outro lado, apontaria a forma Clássica (que, para ele, era também a forma Romana) como o modelo ideal para o surgimento da obra de arte. A ordem é que permite ao espírito tornar-se compreensível; não é possível haver originalidade no caos, porque tudo está no mesmo plano, o do nada; só a hierarquia e a submissão a um cânone é que permitem que o espírito se meça com aquilo que há. Esta polémica teve a particularidade de inverter os lados de uma contenda mais antiga; se o Romantismo foi, durante muito tempo, visto como a reação ao iluminismo e, por isso, como uma espécie de bastião católico, chefiado por Chateaubriand, o polemista de O Génio do Cristianismo, com a polémica Maurras inverteu a ordem: o modelo de Roma é o modelo clássico. A famosa afirmação de Eliot de que era clássico em literatura, monárquico em política e católico em religião percebe-se à luz desta polémica. Eliot é clássico por oposição aos românticos e, coerentemente, é católico, porque o modelo católico já não é o romântico, mas o clássico.

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Ora, é pela influência de Eliot que esta polémica chega aos Estados Unidos, com os lados definidos da mesma forma. Bloom, com as suas defesas de Shelley ou Yeats, está no centro de um furacão. A literatura romântica – que tem a sua defesa do papel do indivíduo nos Heróis, de Carlyle – é atacada por um lado pela corrente clássica católica, por outro pela corrente progressista anti-individualista e anti-canónica.

Bloom faz uma defesa do cânone que, como acontecerá mais tarde com os seus livros de História da Literatura (Génio e O Cânone Ocidental), não interpreta o cânone de uma maneira muito canónica.

Isto, aliás, é bastante claro no modo como Bloom se interessa pela Bíblia. O interesse de um judeu pelo Pentateuco e pelos livros sapienciais poderia indicar o regresso a uma certa ortodoxia, a um modo de olhar para a literatura como mais uma manifestação da obra Divina; no entanto, cada livro de Bloom é mais polémico do que o outro. Desde o famoso Livro de J, que aventa a possibilidade de o escritor do Pentateuco ser uma mulher, a Jesus e Yahweh, em que se trata de uma espécie de parricídio ideológico em que a figura teológica de Jesus absorve um Yahweh de características muito diferentes, a posição de Bloom é muito clara: a riqueza da tradição e dos grandes livros sapienciais está na perda que há entre o texto e o leitor. Nunca se ultrapassa o cânone, porque o cânone não é feito de soma e de leituras completas atrás de leituras completas; os livros que tornaram Bloom mais famoso, apesar de serem vistos como uma defesa do cânone ocidental, são obviamente releituras do cânone. O que interessa em Génio e em O Cânone Ocidental é precisamente a leitura não canónica do cânone; aquilo que a sua doutoranda Camille Paglia fez em Personas Sexuais – a reorganização da ideia de sexualidade através de tipos diferentes de personalidade – vem daquilo que Bloom fez com a literatura. A sua organização dos grandes autores pelo tipo de génio, em que se pode associar Freud ao livro de Job e Boswell a Thomas Mann, tem o interesse de olhar para o Cânone, não no sentido histórico, mas na intemporalidade dos espíritos e das ideias de cada autor.

A escrita de Bloom tinha o encanto reverente de quem olha para a literatura como uma coisa quase sagrada e o interesse de despertar, pelas associações imprevisíveis, o interesse na justificação de cada ligação. Nem todas serão claras, nem todas serão as mais acertadas; mas, pelo menos, mostram que, de facto, o cânone nunca é uma prisão, mas só uma forma mais rica de atingir a originalidade.