O Hospital do Espírito Santo de Évora nomeou técnicos superiores para exercerem cargos de administradores hospitalares para aumentar os seus salários. Estas nomeações valeram aos funcionários em causa um aumento de cerca de 1.200 euros por mês, representando para o hospital um encargo de mais de 64 mil euros em remunerações.

A conclusão é de uma auditoria concluída pelo Tribunal de Contas (TdC) em setembro, feita com o objetivo  “verificar a legalidade e regularidade da nomeação e atribuição de suplementos a pessoal dirigente” no Hospital de Évora “no período de 2015 a 2018“. No relatório, os juízes dizem também que o Hospital de Évora gastou quase 86 mil euros em suplementos remuneratórios indevidos, nos quatro anos analisados. Em causa estão suplementos atribuídos a médicos por exercerem funções de direção, chefia ou coordenação, que foram pagos a 14 meses e não a 12, como está previsto na lei.

Nomeações feitas sem procedimentos para escolher o melhor candidato

O Conselho de Administração (CA) do Hospital do Espírito Santo de Évora (HESE) nomeou, em 2017, seis funcionários da carreira de técnico superior e da carreira de assistente técnico para administradores hospitalares e para chefias intermédias — isto é, diretor de serviço e chefes de divisão. Questionado pelo TdC, o hospital argumentou que estas escolhas foram feitas “no âmbito da competência gestionária do órgão e no processo de reorganização dos serviços (…) por necessidade de adequar a estrutura orgânica com o disposto no Regulamento Interno do HESE”.

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O TdC considerou, contudo, que estas nomeações “não foram precedidas de procedimentos prévios de seleção” para que fosse escolhido o “candidato melhor posicionado” para desempenhar estas funções e de forma a assegurar “os princípios da igualdade de oportunidades, imparcialidade e participação que devem nortear a nomeação para cargos de direção”. Não pondo em causa, ainda assim, a competência dos nomeados para os cargos.

Sem embargo do mérito ou demérito das capacidades técnicas dos nomeados em questão e de todos eles evidenciarem experiância na área para que foram nomeados, o que está em causa é a observância dos princípios intrínsecos ao recrutamento e seleção do pessoal, como sejam os princípios da igualdade e da imparcialidade (…), que visam escolha do(a) candidato(a) melhor posicionado num leque alargado de potenciais candidatos ao lugar”, lê-se no relatório da auditoria.

A Presidente do Conselho de Administração, citada pelo TdC, adiantou que as nomeações “resultaram de uma opção gestionária, ponderada, racional e a única economicamente mais adequada à situação financeira da Instituição” e justifica não ter dado início a um “procedimento para recrutamento e seleção profissional externo” com o facto do hospital estar “em sérias dificuldades de «sobrevivência» financeira e economicamente doentes”.

Ainda que pudesse ter sido feito um “procedimento interno”, o CA diz que “sabia, à partida que, as pessoas que acabou por nomear eram as adequadas às funções a desenvolver, não só pelo trabalho que já desenvolviam nos respetivos serviços, como pela experiência que acumularam ao longo dos anos”.

Ainda assim, o Conselho de Administração diz ao TdC que reconhece que, daqui para a frente, “deverá desenvolver procedimento de recrutamento e seleção, abrindo o leque de escolha dos nomeados a escolher para os lugares, o que fará”.

Técnicos nomeados administradores hospitalares para aumentar salários, diz TdC

Entre os seis novos administradores hospitalares, o TdC não tem dúvidas de que dois técnicos superiores foram nomeados para aquelas funções com o único objetivo de incremento salarial.

Cada um destes funcionários, com a nomeação, passou a ganhar mais cerca de mil euros por mês (1.240,72 euros), o que se traduziu num aumento de cerca de 53% no encargo da remuneração mensal de cada um. Em 2017, o encargo para o hospital foi de 12.407,20 euros. No ano seguinte, a despesa subiu para 34.740,16 euros e, em 2019, foram 17.370,08 euros. Ou seja, um total de mais de 64 mil euros (64.517,44 euros), que o TdC considera “uma despesa ilegal por violação das normas (…) configurando um eventual pagamento indevido nos termos do definido no n.o 4 do art.o 59.º da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (LOPTC), incorrendo os responsáveis pelo seu pagamento em responsabilidade financeira reintegratória e sancionatória “. Tudo isto, segundo o TdC, para “funções que já desempenhavam e maioritariamente tarefas que executavam”.

O Tribunal começa logo por considerar que se trata de uma “situação atípica”. Estes dois funcionários, ambos técnicos superiores, foram nomeados para exercerem cargos de administradores hospitalares no Gabinete de Planeamento e Controlo de Gestão (GPCG). Ora, não só o Regulamento Interno do hospital prevê que este gabinete seja coordenado por “um trabalhador da carreira de técnico superior”, como ambos funcionários já exerciam funções nesse mesmo gabinete. E mais: apesar de ambos os funcionários terem diplomas em administração hospitalar, “não detêm a condição para o exercício do cargo”, uma vez que não ingressaram na carreira como tal. Além disso, tal como nos outros quatro casos, a nomeação para administrador hospitalar prevê um concurso, o que não aconteceu.

A Presidente do CA explicou ao TdC que os objetivos destas nomeações foram “a criação de interlocutores entre o órgão de gestão e a classe médica dirigente”, “melhorar os resultados ao nível do desempenho das áreas da gestão” e “a implementação de um plano de recuperação de atividade para 2018”. O TdC, no entanto, argumenta que “se o legislador impôs, como condição de acesso à categoria de administrador hospitalar, a precedência de provimento em concurso, não se pode vir a reconhecer que pelo simples facto de exercer funções similares às de administrador hospitalar passe a deter essa categoria“.

Não se enquadrando as referidas nomeações nas normas legais aplicáveis, nem na estrutura orgânica do serviço, a nomeação dos dois técnicos superiores colocados no GPCG, para o cargo de administrador hospitalar de 3.ª classe, teve como finalidade, tão somente, a valorização remuneratória“, lê-se no relatório do TdC.

Aliás, o próprio contrato entre o hospital e estes funcionário refere que estes passam a receber “por equiparação ao estatuto remuneratório do pessoal dirigente da administração pública” quando, recorde-se, não eram necessários administradores hospitalares neste gabinete, segundo o TdC, de acordo com o regulamento interno.

Além disso, a única avaliação de desempenho destes dois nomeados data de 2011, quando o Regulamento Interno prevê que “a gestão e direção de serviços de apoio deve ser assegurada: ‘(…) por profissionais de reconhecido mérito profissional selecionados de entre os quadros do HESE (…)'”.

“Logo, não estando preenchidos os requisitos para o exercício do cargo de administrador hospitalar e uma vez que os nomeados mantiveram as mesmas funções que vinham exercendo, a nomeação apenas teve efeitos no aumento da despesa com remunerações“, acrescenta o relatório do TdC.

Apesar de a Presidente do CA contrariar o TdC, argumentando que os dois nomeados não exercem as mesmas funções porque têm outras áreas de responsabilidade, o Tribunal considerou que o facto de continuarem ligados ao Gabinete de Planeamento e Controlo de Gestão” em 2019 faz com que isto se trate de um “acréscimo das tarefas” e não “a uma alteração substancial das suas funções”.

Já os atuais e ex-membros do CA consideram que não houve “preocupação” por parte dos órgãos centrais “em abrir concurso para ingresso na carreira especial de administração hospitalar”, sublinhando que a última vez que isso aconteceu foi há 15 anos — em 2004. Para o TdC, isso não altera em nada as suas conclusões, por considerar que os membros do CA “não podem invocar o desconhecimento da lei nem descurar os deveres de diligência e de cuidado que lhe impendem relativos à entidade cuja gestão lhe está confiada“.

Assim, o TdC recomendou ao Conselho de Administração do Hospital de Évora que cesse “a comissão de serviço dos técnicos superiores nomeados para o exercício do cargo de administradores hospitalares”, que institua “procedimentos efetivos que assegurem o cumprimento do quadro legal e regulamentar na nomeação de cargos de dirigentes, de modo a garantir a transparência e igualdade de oportunidades” e que conclua a revisão do Regulamento Interno para o submeter “a homologação do membro do Governo responsável pela área da saúde”.

Os juízes conselheiros recomendam ainda ao hospital que garanta que “a renovação da comissão de serviço dos titulares de cargos de direção intermédia é precedida da análise de desempenho e de um relatório de demonstração das atividades prosseguidas e dos resultados obtidos pelo exercício das funções desempenhadas”. Isto porque o TdC concluiu que a renovação da comissão de serviço do diretor do Serviço de Aprovisionamento e Compras não foi fundamentada, isto é, “não foi acompanhada de uma análise do desempenho e dos resultados obtidos nem da demonstração das atividades prosseguidas no exercício das funções” — facto com que o CA do hospital concorda.

Hospital gastou 86 mil euros em suplementos indevidos

O relatório do TdC dá ainda conta de que, entre 2015 e 2018, foram pagos indevidamente suplementos remuneratórios a 47 médicos, que exercem funções de direção, chefia ou coordenação. Um valor que chega quase aos 86 mil euros (85.994,17 euros).

A lei prevê que estes suplementos devem ser pagos a 12 meses, mas o Hospital de Évora pagou-os a 14 meses, uma situação que configura “um eventual pagamento indevido, incorrendo os responsáveis pelo seu pagamento em responsabilidade reintegratória e sancionatória”, dizem os juízes.

O CA confirmou esta situação ao TdC, mas sublinhou que tinha questionado a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) sobre se estes suplementos deveriam ser pagos a 12 ou a 14 meses, aguardando ainda resposta do organismo.

A questão dos suplementos entrou em vigor em 2015, estando estipulada no Decreto-Lei n.º 25, de 6 de fevereiro. Antes disso, nem o “regime da carreira médica”, nem a “lei que regula o vínculo de trabalho em funções públicas”, nem o Código de Trabalho definiam o número de meses em que os suplementos deveriam ser pagos. Além disso, uma circular da ACSS, de abril de 2019, apenas dava “orientações relativas à norma aplicável para efeitos de cálculo” dos suplementos.

Assim, a ACSS emitiu uma nova Circular Informativa, que data de 26 de julho, a esclarecer que os suplementos devem ser pagos a 12 meses. Por causa deste caso, o TdC deixa uma recomendação ao Ministério da Saúde: que assegure que os hospitais do SNS adotam procedimentos adequados ao que diz a lei [de 2015] no que toca ao pagamento de suplementos remuneratórios e ao Conselho Diretivo da ACSS que promova e monitorize “o cumprimento” nos hospitais “do regime jurídico aplicável ao pagamento de suplementos remuneratórios (…), clarificado através da Circular Informativa n.o 13/2019/ACSS, de 26 de julho.”

O Tribunal de Contas considera ainda que esses pagamentos adicionais indevidos devem ser devolvidos pelos médicos. No relatório da auditoria, os juízes recomendam ao Conselho de Administração do Hospital de Évora que acione os “mecanismo legais” para que sejam restituídos os “2 meses/ano de suplementos remuneratórios pagos ilegalmente aos profissionais médicos que exerceram funções de direção, chefia ou coordenação”.

O Conselho de Administração adiantou ao TdC que irá “notificar os médicos” que receberam indevidamente estes suplementos “com vista à reposição dos 13º e 14º meses, auferidos nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018”. Ainda assim, a Presidente do CA considera que reposição destes oito prestações “é uma verdadeira agressão, não só patrimonial, como, sobretudo, moral”, que “prejudica tanto quem pagou indevidamente, mas no uso de boa-fé, como quem recebeu indevidamente e de boa-fé, sem nunca o ter solicitado”.

Tudo isto porque, segundo a Presidente do CA, “a ACSS, organismo central com competência para o efeito, não procedeu, em 2015, à alteração da plataforma que gere os recursos humanos e vencimentos de todas as instituições integradas no SNS, nem o fez até à presente data (…)”, algo que vem sendo pedido desde 2017.

O mesmo argumentam os atuais e ex-membros do CA: “(…) o RHV mantém a parametrização para o pagamento a 14 (…) meses, com opção manual de pagamento a 12 (…) meses, o que, com o devido respeito se afigura inadmissível porque permite (ainda que, por omissão), que alguns possam continuar a abonar e a receber os suplementos a 14(…) meses. Se outra fosse a intenção, certamente que a ACSS teria imediatamente parametrizado a plataforma para pagamento apenas a 12 (…) meses para todas as Instituições do SNS, sabendo-se que, evidentemente, todas estão obrigadas ao cumprimento dos mesmos normativos legais.”.”

Relativamente a este argumento, o TdC até admite que alterar a “parametrização do sistema de processamento de remunerações (RHV) possa prevenir a ocorrência de pagamentos indevidos”, mas a “responsabilidade pelo processamento e pagamento das remunerações é do CA ou Conselho Diretivo de cada unidade hospitalar”. Aliás, outras instituições do SNS com o mesmo RHV disseram que pagaram os suplementos a 12 meses ao ano, refere ainda o relatório do TdC.

A partir do momento em que receberem este relatório, a Ministra da Saúde, o Presidente do Conselho Diretivo da ACSS e a Presidente do CA do HESE têm três meses para responderem “por escrito” ao TdC “com a inclusão dos respetivos documentos comprovativos” do cumprimentos dado às recomendações. O Observador questionou o Hospital de Évora para perceber se tinham cessado “a comissão de serviço” dos nomeados para administradores hospitalares e em que ponto estava a restituição dos suplementos remuneratórios, mas não obteve resposta até à publicação do artigo.

A auditoria seguirá também para o Ministério Público.