A mensagem repete-se, propaga-se e contagia. A moda, vista numa perspetiva de futuro, é um produto e um processo diferente do que temos conhecido até agora. Da mesma forma que a tão almejada sustentabilidade ambiental, antes de assumir uma escala planetária, é uma cadeia de pequenas escolhas, pelo menos, no que toca à realidade portuguesa.

Katty Xiomara, uma veterana da moda portuguesa de autor, sacrifica o próprio estilo, mantendo a identidade, em prol de uma maior eficiência. Na coleção do próximo verão, que já tinha sido apresentada em Paris, no mês passado, a designer pensou em peças versáteis e multifuncionais — uma saia que pode também ser usada como vestido é apenas um dos exemplos –, mas também num design mais limpo com o objetivo de conseguir uma moda mais intemporal. Por outro lado, a criadora privilegiou o desperdício zero, reaproveitou peças de outros desfiles e, entre os vários materiais utilizados na coleção, recorreu ao poliéster reciclado.

Katty Xiomara junto às manequins que protagonizaram a performance de quarta-feira à noite, no hotel Tipografia do Conto © Cristóvão Costa/Observador

“Há quase 20 anos que faço coleções. Há coisas que ficam paradas, que se vão acumulando e acumulando. É difícil gerir isso, não só por ser uma acumulação, mas porque começamos a ver que a roupa é, praticamente, lixo”, afirma a designer. A nova vida dada às velhas peças é apenas uma peça do plano de ecodesign e sustentabilidade agora em marcha. Não é uma tendência sazonal, Katty Xiomara defende a nova metodologia como algo a manter daqui para a frente, juntado-a ao mote slow fashion que sempre pautou a marca.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Não é preciso termos muita roupa para nos vestirmos bem”, admite. O alerta assumiu também a forma de um livro, apresentado em simultâneo com a nova coleção, no hotel Tipografia do Conto, no centro da cidade. Escrito, planeado e desenhado por Xiomara, “Reflexo” é um guia prático de estilo, com quase 100 páginas de conselhos e truques para retirar um maior aproveitamento das peças que já estão no armário, e à medida de cada silhueta.

Bloom Upload: o desfile quatro em um

A 45ª edição do Portugal Fashion arrancou esta quarta-feira na Alfândega do Porto. Sem convites e à exceção da apresentação de Katty Xiomara que encerrou o dia, o calendário ficou por conta da plataforma Bloom. Os habituais desfiles das escolas de moda aqueceram a passerelle ao início da tarde. No total, foram apresentadas oito coleções, em representação de seis escolas nacionais do setor — Modatex, Cenatex, ESAD, EMP, ESART e FAUL.

Carolina Sobral e Arieiv © Ugo Camera

O percurso de um designer de moda é composto por níveis e eis que os alunos abriram alas para os que estão no patamar acima. Num único desfile — o do Bloom Upload — quatro criadores portugueses deram provas de talento. O que têm em comum? Já não são completamente principiantes, ao mesmo que a consistência do trabalho e a dimensão das coleções encaixa na perfeição no formato de uma apresentação coletiva. Carolina Sobral foi a primeira a pisar a sala, apresentando um guarda-roupa feminino predominantemente clássico e leve. José Vieira, que dá pelo nome de Arieiv, trouxe drama e teatralidade a partir de uma premissa satânica: “O amor mata-nos e devolve a nossa alma a uma imensidão de escuridão”, segundo escreveu no descritivo da coleção. Como é que traduziu tanto sentimento? Através do exagero de ombros e saias, da mistura caótica de materiais — correntes, tule e estampados florais. No final, cada um dos seis coordenados parecia definir seis personagens de uma tragicomédia futurista.

0.9 Virus é a marca criada por Filipe Ferreira. Para o desfile desta quarta-feira, trouxe um menswear bem construído. Sem inventar nada de novo, mas com uma base conceptual suficientemente sólida, conseguiu dar uma volta ao clássico bomber e reenquadrar elementos de workwear. Aos mesmo tempo, destacou-se na utilização de matérias orgânicas, materiais técnicos defendidos como sustentáveis, processos de tingimento manual, nomeadamente o método japonês shibori. À semelhança dos primeiros três, João Sousa também não é um estreante. Para a sua segunda passagem pelo Portugal Fashion preparou um safari, onde não conseguiu fugir ao uso de estampados animais. Numa micro coleção inspirada na savana africana e nos seus felinos, o jovem designer apostou ainda em elementos das típicas fardas de expedição, dando-lhes um toque citadino.

0.9 Virus e João Sousa © Ugo Camera

O Portugal Fashion prepara-se para retomar a dinâmica de concurso. Em parceria com a Sonae Fashion, há um novo processo de candidaturas a decorrer até 4 de novembro. Depois de uma primeiro fase, da qual 12 propostas serão selecionadas, oito finalistas serão convidados a participar num desfile que terá lugar na edição de março de 2020. Apenas dois vão sagrar-se vencedores, distinguidos com um estágio remunerado nas marcas do grupo e com um prémio de 4.000, que se destina a apoiar a conceção e produção de duas coleções, com apresentação garantida no calendário do Portugal Fashion.

Rita Sá, Unflower e Maria Meira: o Bloom no feminino

O desfile da Unflower marcou a estreia de Joana Braga e Ana Sousa na passerelle do Portugal Fashion, mas só mesmo enquanto dupla. A primeira já tinha apresentado outras coleções em nome individual, no âmbito do Bloom. A segunda já tinha passado pelo alinhamento de desfiles na pele de finalista da ESAD. Em maio deste ano, juntaram-se para criar uma marca a quatro mãos. Sem as pretensões que normalmente pairam sobre a moda de autor, a Unflower é um pronto-a-vestir fresco, alojado no Instagram e pensado para crescer à medida de duas designers em início de carreira.

“Já tinha a minha marca no Portugal Fashion, mas não estava a gostar da sensação de ter de lidar com toda a pressão sozinha. Além de não me estar a identificar com o que estava a fazer”, admite Joana. “Mas não planeámos nada disto. Criámos uma marca online e só queríamos que as pessoas gostassem, comprassem e que andassem com as nossas peças”, completa. A falta de ambição acabou por sortir o efeito contrário. Foram convidadas a apresentar a terceira coleção do Bloom, embora este registo se distancie da moda de autor. Em alternativa, quiseram criar algo mais acessível, produzido em fábrica, ainda que com uma base conceptual e materiais de qualidade.

Unflower © Cristóvão Costa/Observador

“Joyride” exibe um estilo quase adolescente. Os elásticos, as pérolas, as contas de plástico, as aplicações sobre a roupa fizeram desta coleção a mais divertida deste primeiro dia de Portugal Fashion. Por outro lado, o uso da cor denotou o balanço entre o passado infantil e o futuro contemporâneo (o ponto de partida foi a obra “La tristesse du roi”, de Henri Matisse) — com o preto e o branco a servirem de tela ao rosa choque e ao verde alface. As peças podem agora ser encomendadas a qualquer altura. Os preços não irão além dos 150 euros.

Maria Meira apresentou a sua quarta coleção no Bloom e fez das manequins um autêntico pelotão de combate, vestido de branco, preto e rosa choque, a desfilar ao som de “Rebel Girl” das Bikini Kill. “Descobri o movimento Riot Grrrl e desenvolvi a coleção a partir daí. Mas não queria que as pessoas a associassem ao feminismo de uma forma literal. Quis mostrar uma coleção forte e fazer ver que podemos usar as peças como bem nos apetecer. Uma t-shirt por baixo de um fato de banho? Por exemplo”, explica a criadora.

Maria Meira © Cristóvão Costa/Observador

Menos experimental e mais preocupada em converter um conceito em algo vestível no dia-a-dia, Maria Meira deu provas de maturidade e, sobretudo, de vontade em ver a marca evoluir. As t-shirts e camisolas exibiram frases como “Women should be able to talk” e os coletes podiam ter surgido num qualquer motim de rua, enquanto as minissaias e as bolsas que marcavam a cintura deram às silhuetas uma dose de feminilidade. “Esta coleção é mais comercial. Mas o objetivo do Bloom também é crescermos nesse sentido. Vendermos”, conclui.

O sentimento foi partilhado por Rita Sá, ela que até aqui se cingiu a coleções totalmente monocromáticas. Esta quarta-feira, a jovem criadora deu um salto qualitativo, focou-se em exclusivo no vestuário masculino e explorou uma ampla escala de verdes. Entre bolsos grandes e chumbeiras, ficámos a saber que tudo começou com uma relíquia de família. “Encontrei umas fotografias antigas das idas à caça do meu bisavô. Foi super giro perceber que, na altura, se caçava de fato. Tudo o que conhecemos agora — os camuflados, as peças mais descontraídas — não existia. Eles iam caçar como se fossem à missa ao domingo”, conta.

Rita Sá © Cristóvão Costa/Observador

A atenção aos detalhes, as variações de cor, os cortes impecáveis e o upgrade no styling do desfile acabaram mesmo por inaugurar um novo capítulo para a marca Rita Sá. Se continuar a escrevê-lo, o sucesso comercial e a sustentabilidade financeira podem muito bem estar ao virar da esquina. “Sempre soube que, primeiro, queria chamar a atenção. Só depois, quis começar a trabalhar as coisas de uma forma mais comercial. Não podia continuar a oferecer 1.500 peças, todas da mesma cor. Mas acho que tem sido um trabalho muito gradual”, remata.

Este foi o primeiro de quatro dias de desfiles na Alfândega do Porto. O calendário prossegue esta quinta-feira, a partir das 18h. São esperados os desfile de Carla Pontes, Estelita Mendonça, Inês Torcato, David Catalán e Luís Buchinho e ainda a estreia do francês Nicolas Lecourt. Até lá, veja as imagens que marcaram o primeiro dia na fotogaleria.

O Observador viajou para o Porto a convite do Portugal Fashion.