A mensagem repete-se, propaga-se e contagia. A moda, vista numa perspetiva de futuro, é um produto e um processo diferente do que temos conhecido até agora. Da mesma forma que a tão almejada sustentabilidade ambiental, antes de assumir uma escala planetária, é uma cadeia de pequenas escolhas, pelo menos, no que toca à realidade portuguesa.
Katty Xiomara, uma veterana da moda portuguesa de autor, sacrifica o próprio estilo, mantendo a identidade, em prol de uma maior eficiência. Na coleção do próximo verão, que já tinha sido apresentada em Paris, no mês passado, a designer pensou em peças versáteis e multifuncionais — uma saia que pode também ser usada como vestido é apenas um dos exemplos –, mas também num design mais limpo com o objetivo de conseguir uma moda mais intemporal. Por outro lado, a criadora privilegiou o desperdício zero, reaproveitou peças de outros desfiles e, entre os vários materiais utilizados na coleção, recorreu ao poliéster reciclado.
“Há quase 20 anos que faço coleções. Há coisas que ficam paradas, que se vão acumulando e acumulando. É difícil gerir isso, não só por ser uma acumulação, mas porque começamos a ver que a roupa é, praticamente, lixo”, afirma a designer. A nova vida dada às velhas peças é apenas uma peça do plano de ecodesign e sustentabilidade agora em marcha. Não é uma tendência sazonal, Katty Xiomara defende a nova metodologia como algo a manter daqui para a frente, juntado-a ao mote slow fashion que sempre pautou a marca.
“Não é preciso termos muita roupa para nos vestirmos bem”, admite. O alerta assumiu também a forma de um livro, apresentado em simultâneo com a nova coleção, no hotel Tipografia do Conto, no centro da cidade. Escrito, planeado e desenhado por Xiomara, “Reflexo” é um guia prático de estilo, com quase 100 páginas de conselhos e truques para retirar um maior aproveitamento das peças que já estão no armário, e à medida de cada silhueta.
Bloom Upload: o desfile quatro em um
A 45ª edição do Portugal Fashion arrancou esta quarta-feira na Alfândega do Porto. Sem convites e à exceção da apresentação de Katty Xiomara que encerrou o dia, o calendário ficou por conta da plataforma Bloom. Os habituais desfiles das escolas de moda aqueceram a passerelle ao início da tarde. No total, foram apresentadas oito coleções, em representação de seis escolas nacionais do setor — Modatex, Cenatex, ESAD, EMP, ESART e FAUL.
O percurso de um designer de moda é composto por níveis e eis que os alunos abriram alas para os que estão no patamar acima. Num único desfile — o do Bloom Upload — quatro criadores portugueses deram provas de talento. O que têm em comum? Já não são completamente principiantes, ao mesmo que a consistência do trabalho e a dimensão das coleções encaixa na perfeição no formato de uma apresentação coletiva. Carolina Sobral foi a primeira a pisar a sala, apresentando um guarda-roupa feminino predominantemente clássico e leve. José Vieira, que dá pelo nome de Arieiv, trouxe drama e teatralidade a partir de uma premissa satânica: “O amor mata-nos e devolve a nossa alma a uma imensidão de escuridão”, segundo escreveu no descritivo da coleção. Como é que traduziu tanto sentimento? Através do exagero de ombros e saias, da mistura caótica de materiais — correntes, tule e estampados florais. No final, cada um dos seis coordenados parecia definir seis personagens de uma tragicomédia futurista.
0.9 Virus é a marca criada por Filipe Ferreira. Para o desfile desta quarta-feira, trouxe um menswear bem construído. Sem inventar nada de novo, mas com uma base conceptual suficientemente sólida, conseguiu dar uma volta ao clássico bomber e reenquadrar elementos de workwear. Aos mesmo tempo, destacou-se na utilização de matérias orgânicas, materiais técnicos defendidos como sustentáveis, processos de tingimento manual, nomeadamente o método japonês shibori. À semelhança dos primeiros três, João Sousa também não é um estreante. Para a sua segunda passagem pelo Portugal Fashion preparou um safari, onde não conseguiu fugir ao uso de estampados animais. Numa micro coleção inspirada na savana africana e nos seus felinos, o jovem designer apostou ainda em elementos das típicas fardas de expedição, dando-lhes um toque citadino.
O Portugal Fashion prepara-se para retomar a dinâmica de concurso. Em parceria com a Sonae Fashion, há um novo processo de candidaturas a decorrer até 4 de novembro. Depois de uma primeiro fase, da qual 12 propostas serão selecionadas, oito finalistas serão convidados a participar num desfile que terá lugar na edição de março de 2020. Apenas dois vão sagrar-se vencedores, distinguidos com um estágio remunerado nas marcas do grupo e com um prémio de 4.000, que se destina a apoiar a conceção e produção de duas coleções, com apresentação garantida no calendário do Portugal Fashion.
Rita Sá, Unflower e Maria Meira: o Bloom no feminino
O desfile da Unflower marcou a estreia de Joana Braga e Ana Sousa na passerelle do Portugal Fashion, mas só mesmo enquanto dupla. A primeira já tinha apresentado outras coleções em nome individual, no âmbito do Bloom. A segunda já tinha passado pelo alinhamento de desfiles na pele de finalista da ESAD. Em maio deste ano, juntaram-se para criar uma marca a quatro mãos. Sem as pretensões que normalmente pairam sobre a moda de autor, a Unflower é um pronto-a-vestir fresco, alojado no Instagram e pensado para crescer à medida de duas designers em início de carreira.
“Já tinha a minha marca no Portugal Fashion, mas não estava a gostar da sensação de ter de lidar com toda a pressão sozinha. Além de não me estar a identificar com o que estava a fazer”, admite Joana. “Mas não planeámos nada disto. Criámos uma marca online e só queríamos que as pessoas gostassem, comprassem e que andassem com as nossas peças”, completa. A falta de ambição acabou por sortir o efeito contrário. Foram convidadas a apresentar a terceira coleção do Bloom, embora este registo se distancie da moda de autor. Em alternativa, quiseram criar algo mais acessível, produzido em fábrica, ainda que com uma base conceptual e materiais de qualidade.
“Joyride” exibe um estilo quase adolescente. Os elásticos, as pérolas, as contas de plástico, as aplicações sobre a roupa fizeram desta coleção a mais divertida deste primeiro dia de Portugal Fashion. Por outro lado, o uso da cor denotou o balanço entre o passado infantil e o futuro contemporâneo (o ponto de partida foi a obra “La tristesse du roi”, de Henri Matisse) — com o preto e o branco a servirem de tela ao rosa choque e ao verde alface. As peças podem agora ser encomendadas a qualquer altura. Os preços não irão além dos 150 euros.
Maria Meira apresentou a sua quarta coleção no Bloom e fez das manequins um autêntico pelotão de combate, vestido de branco, preto e rosa choque, a desfilar ao som de “Rebel Girl” das Bikini Kill. “Descobri o movimento Riot Grrrl e desenvolvi a coleção a partir daí. Mas não queria que as pessoas a associassem ao feminismo de uma forma literal. Quis mostrar uma coleção forte e fazer ver que podemos usar as peças como bem nos apetecer. Uma t-shirt por baixo de um fato de banho? Por exemplo”, explica a criadora.
Menos experimental e mais preocupada em converter um conceito em algo vestível no dia-a-dia, Maria Meira deu provas de maturidade e, sobretudo, de vontade em ver a marca evoluir. As t-shirts e camisolas exibiram frases como “Women should be able to talk” e os coletes podiam ter surgido num qualquer motim de rua, enquanto as minissaias e as bolsas que marcavam a cintura deram às silhuetas uma dose de feminilidade. “Esta coleção é mais comercial. Mas o objetivo do Bloom também é crescermos nesse sentido. Vendermos”, conclui.
O sentimento foi partilhado por Rita Sá, ela que até aqui se cingiu a coleções totalmente monocromáticas. Esta quarta-feira, a jovem criadora deu um salto qualitativo, focou-se em exclusivo no vestuário masculino e explorou uma ampla escala de verdes. Entre bolsos grandes e chumbeiras, ficámos a saber que tudo começou com uma relíquia de família. “Encontrei umas fotografias antigas das idas à caça do meu bisavô. Foi super giro perceber que, na altura, se caçava de fato. Tudo o que conhecemos agora — os camuflados, as peças mais descontraídas — não existia. Eles iam caçar como se fossem à missa ao domingo”, conta.
A atenção aos detalhes, as variações de cor, os cortes impecáveis e o upgrade no styling do desfile acabaram mesmo por inaugurar um novo capítulo para a marca Rita Sá. Se continuar a escrevê-lo, o sucesso comercial e a sustentabilidade financeira podem muito bem estar ao virar da esquina. “Sempre soube que, primeiro, queria chamar a atenção. Só depois, quis começar a trabalhar as coisas de uma forma mais comercial. Não podia continuar a oferecer 1.500 peças, todas da mesma cor. Mas acho que tem sido um trabalho muito gradual”, remata.
Este foi o primeiro de quatro dias de desfiles na Alfândega do Porto. O calendário prossegue esta quinta-feira, a partir das 18h. São esperados os desfile de Carla Pontes, Estelita Mendonça, Inês Torcato, David Catalán e Luís Buchinho e ainda a estreia do francês Nicolas Lecourt. Até lá, veja as imagens que marcaram o primeiro dia na fotogaleria.
O Observador viajou para o Porto a convite do Portugal Fashion.