Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do grupo jihadista Estado Islâmico e o homem mais procurado do mundo, foi morto pelos EUA num raid levado a cabo por uma unidade de elite do exército norte-americano no noroeste da Síria, este sábado. De acordo com a BBC, o auto-proclamado “Califa Ibrahim” tinha um prémio na sua cabeça no valor de 25 milhões de dólares e era procurado pelo mundo inteiro desde que o EI apareceu pela primeira vez, há cinco anos.

No seu apogeu, o também chamado Daesh controlou cerca de 88 mil quilómetros quadrados de um território que se estendia do oeste da Síria ao este do Iraque, impondo o seu domínio brutal e sanguinário sobre quase oito milhões de pessoas e gerando milhões de dólares em lucros retirados não só do comércio de petróleo mas, também, de inúmeros crimes de extorsão e rapto.

Apesar da morte do seu líder e do desmantelar físico do seu “califado”, o EI continua a ser uma experiente e disciplinada força de combate cuja derrota não está totalmente assegurada. Mesmo assim, a história deste sanguinário “Califa Ibrahim” é sinónimo da morte anunciada de um dos regimes mais violentos de que há memória.

O crente

Ibrahim Awwad Ibrahim al-Badri, o nome real deste “Baghdadi”, nasceu em 1971 na cidade de Samarra, no centro do Iraque. A sua família, sunitas ultra-religiosos, defendia ser descendente direta da tribo Quraysh do Profeta Maomé e foi precisamente este pormenor que mais tarde veio a fortalecer a posição de Ibrahim enquanto califa, já que ser desta linhagem era algo exigido a quem quer que quisesse assumir esta posição de poder dentro da cultura do Médio Oriente.

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Trump confirma: os EUA mataram Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Estado Islâmico e o terrorista mais procurado do mundo

Na adolescência, Baghdadi era conhecido como “o crente”, tal era a sua obsessão com a religiosidade. Passava horas seguidas na mesquita da sua cidade a aprender a recitar o Corão e depois, nos raros momentos em que interagia com outras pessoas da sua idade, criticava todos aqueles que não cumprissem a Sharia, a lei Islâmica.

Quando, em 1990, terminou a escola mudou-se para Bagdade, cidade onde frequentou a universidade islâmica e tirou um mestrado e um doutoramento em estudos islâmicos, assim conta uma biografia sua publicada por aqueles que o seguiam.

Durante esses tempos de estudante vivia perto de uma mesquita sunita em Bagdade, no distrito de Tobchi. Quem o conheceu nessa altura descreve-o como sendo um homem reservado, calado, que só se mostrava mais quando dava aulas Corão ou jogava futebol pelo clube da mesquita.

Foi nessa fase da sua vida que o jihadismo e o salafismo (corrente ultra-radical do Islão sunita que nasceu na zona da Arábia Saudita, algures no século XIX, como forma de contrariar o imperialismo ocidental) entraram na sua vida.

A Universidade jihadista

Depois da invasão norte-americana do Iraque, em 2003, e consequente queda do Presidente Saddam Hussein, Baghdadi ajudou a criar um grupo islamita de insurgentes chamado Jamaat Jaysh Ahl al-Sunnah wa-l-Jamaah, que regularmente lançava ataques contra as forças norte-americanas e seus aliados. Logo nesta altura foi escolhido para liderar o comité da Sharia, aqueles que estavam encarregues de garantir o bom cumprimento da lei islâmica e de castigar todos os que a violassem.

Abu Bakr al-Baghdadi apareceu publicamente pela primeira vez num vídeo do EI onde dava um sermão na grande mesquita de Mosul. Getty Images

Um ano depois, em 2004, Baghdadi foi detido por tropas norte-americanas em Falluja, no oeste de Bagdade, e foi levado para um centro de detenção chamado Camp Bucca, no sul do país. Foi precisamente aí que viria a desenvolver-se aquilo a que especialistas, mais tarde, chamara de “universidade jihadista”, o local onde futuros líderes do EI recrutaram e radicalizaram uma série os primeiros seguidores e onde, também, foram feitos os primeiros contactos e redes de influência que mais tarde muito beneficiariam o “califado”.

Relatos dão conta que Baghdadi era quem estava responsável por dirigir as orações, fazer sermões e dar aulas de religião a todos os detidos. Muitas vezes até era escolhido pela administração norte-americana da prisão para mediar conflitos entre prisioneiros. Na altura, os EUA classificaram-no como uma ameaça pouco relevante e libertaram-no depois de dez meses de encarceramento.

“Ele era um rufia de rua quando o apanhámos em 2004”, contou um representante do Pentágono ao The New York Times, em 2014. “É difícil imaginar que poderíamos ter tido uma bola de cristal que nos dissesse que ele acabaria por se tornar o líder do EI.”

Reconstruindo a al-Qaeda no Iraque

Depois de deixar Camp Bucca, Baghdadi terá entrado em contacto com a recém formada al-Qaeda do Iraque (AQI). Sob a liderança do jordano Abu Musab al-Zarqawi, a AQI transformou-se numa força importante na revolta iraquiana e ganhou notoriedade pela brutalidade das suas táticas — as decapitações, por exemplo, tornaram-se quase imagem de marca.

Foi no início de 2006 que a AQI decidiu criar uma organização jihadista guarda-chuva, a Mujahideen Shura Council, e foi a esse grupo que Baghdadi e os seus seguidores juraram fidelidade. No seguimento desse ano, quando Zarqawi morre num bombardeamento norte-americano, esse mesmo grupo muda de identidade e assume o nome de Estado Islâmico do Iraque (EII).

Mais uma vez, Baghdadi é alocado à gestão de um comité da Sharia, primeiro, e depois, em 2010, acaba mesmo por ser escolhido para liderar este ainda jovem EII, depois do seu líder, Abu Umar al-Baghdadi , e respetivo adjunto, Abu Ayyub al-Masri, serem mortos num raid norte-americano. Começava a nascer, a partir daqui, o seu reinado de terror.

Quando o poder lhe cai nas mãos, o exército dos EUA acreditava que a organização estava em falência técnica, à beira de uma enorme derrota estratégica. Contra tudo e contra todos, porém, Baghdadi reuniu à sua volta muitos antigos militares e espiões da era Saddam, bem como outros aliados importantes com quem tinha estado preso, em Camp Bucca. Aos poucos começou a reerguer o EII.

Afinal, o que é o Estado Islâmico?

O Califa Ibrahim

No início de 2013 o EII já tinha recuperado a sua força, até já voltava a lançar vários ataques um pouco por todo o Iraque, tendo-se juntado, ao mesmo tempo, à rebelião contra Bashar al-Assad, o presidente sírio. Foi graças aos milhares de militantes sírios que o EII enviou para o seu país de origem (estavam fugidos no Iraque) que foi possível estabelecer a al-Nusra Front, o afilidado da al-Qaeda nesse país. Essa presença em território da Síria acabou por facilitar-lhes o acesso a uma enorme quantidade de armamento e material.

No mês de abril desse ano, Baghdadi anunciou a fusão das suas forças no Iraque (o EII) com o bastião que já se formara na Sìria, nascendo então o “Islamic State in Iraq and the Levant”, conhecido em inglês como ISIS ou ISIL. Os líderes do al-Nusra e da al-Qaeda rejeitaram a fusão, ao início, mas a quantidade de militantes dessas organizações que eram fieis a Baghdadi era tanta que houve uma “fuga” massiva rumo à recém-criado ISIS  — ajudando a que este conseguisse manter-se presente em território sírio.

No fim de 2013 o EI estava totalmente focado na situação iraquiana e procurou explorar ao máximo a clivagem que se intensificava entre o governo xiita e a pequena comunidade sunita. Auxiliado por líderes tribais e alguns seguidores fieis de Saddam Hussein, a ISIS conseguiram tomar Falluja.

Olhando para junho de 2014 vemos a ISIS em pleno crescimento e a derrotar o exército iraquiano em Mosul, avançando logo de seguida rumo a Bagdade, tudo isto enquanto iam massacrando todos os que se recusassem a juntar-se a eles. Foram várias as ameaças de exterminação completa de várias minorias étnicas e religiosas que não detinham qualquer papel de relevo na sua busca pelo poder — era violência brutal e gratuita.

No final desse mês, depois de consolidar o seu poder em dezenas de cidades e vilas iraquianas, a ISIS declara-se oficialmente como um califado, um estado governado de acordo com a Sharia e liderado pelo adjunto de Deus na Terra, o califa. Assim nasce o Estado Islâmico (EI) que tem Baghdadi como seu líder máximo, o tal “Califa Ibrahim”. Começaram também, a partir daí, a exigir a lealdade de todos os muçulmanos do mundo.

A primeira aparição pública de Baghdadi surge dias depois, com o agora Califa Ibrahim a dar um sermão na Grande Mesquita de al-Nuri, em Mosul. Nesse vídeo, Baghdadi faz um comunicado formal que vários especialistas viriam a confirmar como sendo idêntico ao que ao que vários califas fizeram ainda durante os primeiros séculos do Islão.

Nessa mensagem, Baghdadi incita os muçulmanos do mundo inteiro a viajar imigrar para o território do EI, tudo de forma a reforçar o poderio militar de um exército que tinha de destruir os não crentes. Dezenas de milhares de estrangeiros seguiram o seu pedido.

Donald Trump, Mike Pence e os seus conselheiros a assistir à operação em que morreu Baghdadi. Getty Images

Quase um mês depois, no seguimento de um ataque brutal contra a minoria curda do Iraque e depois de centenas de yazidis terem sido escravizados, os EUA criaram um uma coligação militar multinacional com o objetivo de fustigar estes jihadistas pelo ar, com barragens aéreas cerradas que foram castigando várias áreas do Iraque. Nesse mês de setembro também começaram a ser realizados ataques semelhantes na síria, depois do EI ter decapitado vários reféns ocidentais.

A ideia de um confronto direto com os EUA entusiasmou Baghdadi, que via o confronto quase como uma espécie de duelo apocalíptico final entre os muçulmanos e seus inimigos, algo descrito em várias profecias islâmicas.

O combate durou cinco anos, meia década de violência e morte — ficou famoso o episódio em que o EI capturou um piloto da Jordânia e Baghdadi ordenou que ele fosse fechado uma jaula e queimado vivo — em que as forças ocidentais foram, a custo, conseguindo sair por cima. Milhares de pessoas foram mortas, houve milhões de deslocados e património histórico e cultural de valor incalculável foi destruído.

No meio de tudo isto, e à medida que a derrota do EI se tornava cada vez mais clara, as dúvidas sobre se Baghdadi estaria vivo ou morto eram muitas. Eram fonte de mistério e confusão.  Em junho de 2017, militares russos disseram que o tinham morto perto de Raqqa, na Síria — em setembro o rumor foi desmentido quando o EI divulgou um ficheiro áudio onde Baghdadi pedia aos seus fiéis que “soltassem as chamas da guerra” sobre os seus inimigos. Apesar do apelo emotivo, nada travou a queda do EI.

As “fronteiras” do EI foram encolhendo rapidamente até que em março de 2019, o “califado” de Baghdadi foi declarado extinto, quando os aliados sírios dos EUA capturaram o último reduto do EI.

Uma guerra de desgaste

Durante algum tempo acreditou-se que o EI ainda mantivesse centenas de apoiantes espalhados pelo antigo califado. No Iraque até realizaram vários ataques, ao estilo de guerrilha, que procuravam minar o clima de reconciliação. Em abril de 2019 Baghdadi aparece novamente em vídeo, desta vez já não discursava numa grande mesquita, perante um número considerável de seguidores, mas sim numa divisão pequena, de pernas cruzadas, sentado no chão, com uma arma ao seu lado.

Numa demonstração surpreendente admite as derrotas do seu EI mas pede uma “guerra de desgaste”, incitando os seus apoiantes a lançarem ataques pequenos mas frequentes que fossem afetando as capacidades humanas, militares, económicas e logísticas dos inimigos do EI.

“Eles têm de saber que a jihad vai continuar até ao Dia da Ressurreição e que Deus Todo o Poderoso ordenou que lançássemos uma jihad, não nos pediu uma vitória”, afirmou.

Depois disso, silêncio, pelo menos até setembro de 2019, altura em que surge uma nova mensagem de áudio onde o outrora Califa Ibrahim afirmava que “várias operações” continuavam em movimento “em diversas frentes”. Também apelou para que os seus (agora poucos) apoiantes libertassem os prisioneiros do EI que estavam a ser controlados pelas forças curdas da Síria, aliados dos EUA.

Quando há poucos dias a Turquia lançou uma ofensiva militar contra as tais forças curdas no noroeste da Síria, os carcereiros do EI, houve uma onda de medo: Donald Trump tinha ordenado a retirada das forças norte-americanas da Síria e Ancara, alegadamente preocupada com o vazio de segurança que se ia instalar numa zona sensível e que podia dar força ao EI, decide atacar. Mais de 100 prisioneiros conseguem fugir, durante os três dias de confrontos mas, segundo Trump, nada de grave resultou daí e quase todos voltaram a ser capturados.