Um dos principais suspeitos da morte de Marielle Franco e do seu motorista encontrou-se com o alegado cúmplice do crime no condomínio Vivendas da Barra, onde este mora, tal como Jair Bolsonaro, deputado e pré-candidato presidencial à altura do crime.

A notícia foi publicada esta terça-feira no Jornal Nacional da Globo, que teve acesso ao depoimento do porteiro do condomínio à Polícia Civil do Rio de Janeiro, responsável pela investigação do caso.

É este o testemunho que está a causar várias reações no Brasil, uma vez que o porteiro conta ter recebido à entrada Élcio Queiroz, horas antes de o crime ter acontecido. De acordo com o porteiro daquele condomínio, Élcio Queiroz ter-lhe-á dito à entrada que queria ir para a casa de Jair Bolsonaro, o número 58 daquele complexo de apartamentos. Perante esse pedido, o porteiro terá carregado no botão que correspondia à campainha do apartamento de Jair Bolsonaro. Ao fazê-lo, continuou o porteiro, ouviu do outro lado a voz de Bolsonaro, a quem chamou de “Seu Jair” no depoimento que fez.

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Só depois do suposto consentimento do dono do apartamento 58, segundo o relato, Élcio entrou, às 17h10, conforme registado no livro de visitantes. A caminho, porém, o visitante dirigiu-se para outro número, o 66, onde mora o seu alegado cúmplice no assassinato de Marielle, Ronnie Lessa.

Apercebendo-se deste desvio através das câmaras de segurança, o porteiro diz que ligou para a casa de Jair Bolsonaro (o número 58) a dizer que o carro da sua suposta visita estava, afinal, a deslocar-se para o número 66. Em resposta, “Seu Jair” terá dito ao porteiro que estava a par desse desvio.

O testemunho envolve, pela primeira vez, o nome do atual presidente brasileiro no caso, mas tem uma grande contradição: o porteiro do condomínio garante ter falado sempre com Jair Bolsonaro pelo intercomunicador, mas, naquele dia, o agora presidente do Brasil estava em Brasília e não no Rio de Janeiro.

Qual foi a resposta de Jair Bolsonaro à reportagem da Globo?

Jair Bolsonaro nega veementemente ter qualquer ligação ao homicídio de Marielle Franco. É nisso que insiste, num vídeo que fez em direto no Facebook com quase 25 minutos, no qual acusa os jornalistas da Globo de serem “canalhas e patifes”, de não serem patriotas e não pensarem no Brasil.

“Eu tenho registado no painel eletrónico da Câmara [em Brasília] presença às 17h41, ou seja, 31 minutos depois da entrada desse cidadão no condomínio. E tenho também às 19h36. E tenho também registado no dia anterior e no dia posterior as minhas digitais no painel de votação”, sublinha Jair Bolsonaro, apesar de a própria reportagem da Globo fazer referência a esse facto.

– LIVE: Mais uma matéria porca da Globo. Caso Marielle.. Link no YouTube: https://youtu.be/WoLHaXFRVQg

Posted by Jair Messias Bolsonaro on Tuesday, October 29, 2019

“Ela [a Globo] não nega isso daí. Mas sempre fica a suspeita na outra ponta linha”, referiu o Presidente do Brasil.

Além disso, Jair Bolsonaro disse que não conhece nenhum dos acusados da morte de Marielle Franco — e, portanto, nunca tinha tido nenhum contacto com Élcio Queiroz, apesar de, no relato do porteiro, este ter dito que conhecia o então deputado federal.

Na sua declaração, Bolsonaro acusa ainda o prefeito de Wilson Witzel (que foi apoiado por Jair Bolsonaro nas eleições passadas e vice-versa) de ter sido responsável por este relato do porteiro do condomínio ter chegado aos media. Antes disso, garante, a 9 de outubro, Wilson Witzel já lhe teria dito que o seu nome tinha sido referido pelo porteiro durante o depoimento.

O encontro em que esta informação terá passado do prefeito carioca ao Presidente do Brasil foi durante um evento do Clube Naval, no Rio de Janeiro, que não consta na agenda oficial do chefe de Estado brasileiro.

Wilson Witzel já negou ter divulgado aquela informação, lamentado que o Presidente não estivesse no “seu estado normal” quando fez aquela acusação.

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Que resposta deu a Globo à reação de Bolsonaro?

A Globo emitiu um comunicado de imprensa onde rejeitou as acusações de fazer “patifaria” ou “canalhice”, sustentando que, “como sempre”, fez “jornalismo com seriedade e responsabilidade”.

O próprio canal sublinha que no seu trabalho não afirma apenas certezas e que também assume as dúvidas que ficam por esclarecer, tal como as contradições dos diferentes relatos.

“[A Globo] ressaltou, com ênfase e por apuração própria, que as informações do porteiro se chocavam com um facto: a presença do então deputado Jair Bolsonaro em Brasília, naquele dia, com dois registos na lista de presença em votações”, disse.

Ainda assim, continua o comunicado daquele canal, o depoimento do porteiro é “importante” uma vez que “diz respeito a um facto que ocorreu com um dos principais acusados, no dia do crime”.

O que vai agora acontecer com esta investigação?

Pela primeira vez, o nome de Jair Bolsonaro foi implicado na investigação em torno da morte de Marielle Franco e do seu motorista. Até agora, os nomes dos seus filhos já tinham sido referidos neste caso por estes terem sido fotografados ao lado de membros de milícias como aquela que se suspeita que terá assassinado a vereadora do PSOL.

Porém, a partir do momento em que o nome do Presidente foi implicado neste caso, os procuradores do Ministério Público do Rio de Janeiro foram obrigados a pedir a apreciação do caso ao Supremo Tribunal Federal (STF) — algo que fizeram a 17 de outubro, de acordo com a Folha de S. Paulo. Será esse tribunal que poderá, ou não, autorizar que Jair Bolsonaro seja diretamente investigado no processo, uma vez que como Presidente está criminalmente protegido pelo foro privilegiado.

Na sequência da reportagem da Globo, e após pedido de Jair Bolsonaro, o ministro da Justiça, Sergio Moro, enviou ao procurador-geral da República, Augusto Aras, um pedido de instauração de inquérito para investigar o depoimento do porteiro.

“A inconsistência sugere possível equívoco na investigação conduzida no Rio de Janeiro ou eventual tentativa de envolvimento indevido do nome do Presidente da República no crime em questão, o que pode configurar crimes de obstrução à Justiça, falso testemunho ou denúncia caluniosa, neste último caso tendo por vítima o Presidente da República”, disse o ministro da Justiça.

Que dúvidas ficam por esclarecer na reportagem da Globo?

Na reportagem da Globo, há pelo menos três perguntas que ficam por responder.

  • Se não era Jair Bolsonaro, quem estava do outro lado do intercomunicador da casa 58, isto é, o apartamento do agora Presidente do Brasil?
  • Porque é que Élcio Queiroz diria que ia para o apartamento de Jair Bolsonaro (58) e depois acabou por se dirigir diretamente para o número 66?
  • De acordo com o relato do porteiro, Élcio Queiroz conhecia Jair Bolsonaro. Porém, reagindo à reportagem da Globo, o Presidente disse que não conhece aquele homem nem o seu alegado cúmplice. Qual das versões é verdadeira?

Político acusado de ser o autor moral do homicídio da vereadora Marielle Franco

Marielle Franco, vereadora no Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e defensora dos direitos humanos, e o seu motorista Anderson Gomes, foram assassinados na noite de 14 de março de 2018, quando viajavam de carro pelo centro do Rio de Janeiro, depois de a ativista ter participado num ato político com mulheres negras.