Onze horas de debate político sobre o Programa do Governo servem para tudo. Alguns apanhados parlamentares de deputados estreantes que, ao fim de três dias de Parlamento, ainda entram na bancada errada, se perdem em portas e corredores que parecem todos iguais e perguntam pelo acesso à sala certa. E outras pistas, mais experientes, para quem quer perceber os caminhos por onde se vai mover esta legislatura que o primeiro-ministro garante ser para quatro anos.

António Costa sabe que é esse o tempo legal do mandato que tem pela frente. Mas o tempo político tem outras contas, onde entra uma aritmética parlamentar difícil e sem acordos escritos que a segurem de forma firme. O primeiro-ministro garante que isso não muda nada e que tudo se fará como na era da “geringonça”, mesmo que para isso seja preciso uma ponta de chantagem emocional. Mas à esquerda, os avisos são para as diferenças que existem hoje e aproveita-se a nova liberdade para traçar linhas vermelhas, fincar o pé naquilo de que não se abre mesmo mão. Em troca há a estabilidade, mas isso tem de ser quem quer a mão a perceber o que afinal está disposto a dar.

No outro lado, a direita, antecipa namoros de pouca dura. Mas, para já, a preocupação do líder do maior partido da oposição, Rui Rio, parece estar exclusivamente em ocupar todo o espaço mediático para afirmar a sua liderança que volta a ser desafiada. O CDS tenta sobreviver à hecatombe eleitoral e os partido estreantes não foram inesquecíveis na entrada. Tentaram marcar espaço, mostrar que também contam neste tabuleiro de peças decisivas voláteis.

O Observador foi tentar descodificar o que cada um dos fatores que contam para a legislatura mostraram sobre o futuro nestas longas horas de debate.

Santos Silva: coligação contranatura negativa seria “traição” ao eleitorado

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Costa e o fantasma do acordo escrito

É dia de assombrações e o Governo tem algumas que teme nesta legislatura. António Costa deixou-o claro quando começou o debate a proclamar, antes mesmo de ouvir o que os ex-parceiros-da-esquerda-de-papel-passado tinham a dizer sobre o assunto, que o que vai acontecer é uma “continuidade na mudança”. Lampedusa diria que “é preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma”, mas no caso de Costa, apesar de quase tudo ter mudado, nada parece ter ficado na mesma, por mais que seja isso que o primeiro-ministro tenha mostrado desejar — já que há uma coisa que as eleições não mudaram, a falta de uma maioria socialista que consiga avançar sem apoios parlamentares.

Da sua parte, foi ao Parlamento declarar prioridade ao problema que existe na habitação, repetir as promessas que alinhou no programa do Governo (investimento em transportes e saúde) e ainda as que anunciou no discurso de tomada de posse (por exemplo, o aumento do salário mínimo), garantir que virou a “página da austeridade” para a “página da prosperidade” e jurar à esquerda que “o empenho do Governo neste processo político continua exatamente o mesmo”.

Para se convencer a si mesmo — e tentar convencer os parceiros — verbalizou no hemiciclo perante todos as contas que o assombram por estes dias. Afinal, 108 deputados não chegam para a maioria absoluta. E ainda que desdramatize a ausência de um acordo escrito (como o da “geringonça”), Costa faz uma espécie de chantagem emocional para segurar a esquerda: “Sem os votos de toda a esquerda e os votos do PAN, a direita não vence a esquerda nesta Assembleia da República e este dado não é aritmético, é político”.

Não foi o único. A intervenção de encerramento deste dia e meio de dabate foi entregue ao ministro da Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que foi mais gráfico nas palavras escolhidas e pôs as contas ao contrário do que tinha feito Costa. Em vez de somar esquerdas e PAN, subtraiu-as mesmas esquerdas e somou-as à direita para concluir: “Nesta composição parlamentar, só é possível retirar as condições de governação com uma coligação negativa entre a direita e todas as forças à esquerda. Isso se acontecesse seria uma traição ao nosso eleitorado”. De fiel discípulos da geringonça, a Judas, numa penada.

Não que as coligações negativas sejam coisa nova para o PS de Costa, que assistiu a algumas (para barrar o agravamento da TSU das empresas, por exemplo) na anterior legislatura. Mas desta vez, sem acordo escrito, arrisca mais em perder-se na aritmética parlamentar. E o PCP reparou nesse temor, com João Oliveira a considerar “um mau prenúncio que o Governo parta já do princípio de que as suas propostas poderão suscitar a necessidade de derrota com tal aritmética”.

O fantasma de derrotas passadas está lá e estará sempre presente, agora que a esquerda da geringonça passou para o lado de lá e sente-se mais à solta.

PSD. Rio, Rio, Rio

Rui Rio está em campanha, e já provou que é quando está em guerra que desembainha as armas. Numa espécie de extensão da postura que adotou na reta final da corrida até às urnas, o líder do PSD apresentou-se no primeiro debate parlamentar com uma postura combativa. Atacou Costa, Costa sentiu-se atacado, atirou de volta, deu-lhe gás. Em suma, colocou-o ao seu nível. Resultado? De Luís Montenegro não se ouviu uma palavra por estes dias, e de Miguel Pinto Luz (os dois adversários já conhecidos de Rio) ouviu-se uma palavra de… elogio. “Critico quando e onde o tenho de fazer. Hoje, devo dizer que apreciei a prestação do PSD no combate e oposição ao Governo socialista”, disse.

Esta vai ser a vantagem competitiva de Rio na campanha interna até janeiro e Rio não se vai coibir de a usar. O palco é seu, vai chamar a si as funções líder parlamentar, e, como se viu nestes dois dias, não vai sair do palco mediático. Rio fala no hemiciclo, onde confronta Costa, Rio fala à porta do hemiciclo, onde os jornalistas o esperam com os microfones em riste, Rio fala no Twitter, Rio não vai desperdiçar oportunidades e palco e visibilidade não lhe faltarão.

No primeiro dia, na quarta-feira, o líder do PSD tinha 10 minutos para criticar o Governo e foi isso que fez: disparou em todas as direções e António Costa acusou o toque. Na resposta, tocou na ferida de Rio ao acusá-lo de estar a estagiar para comentador televisivo, pediu-lhe que não usasse o Parlamento para fazer julgamentos de tabacaria (expressão muito usada por Rui Rio) e, no encerramento, Augusto Santos Silva viria a fazer mais, e a colar Rui Rio ao “populismo” associado a André Ventura. André Ventura, de resto, não se preocupou em manter as distâncias e acenava frequentemente, em jeito de concordância, quando Rio falava, tendo até chegado a citá-lo numa das suas intervenções.

No encerramento, Rio pôs os pontos nos is, deixando recados para a outra frente de batalha (a frente interna, onde quer jogar para ganhar): não vai fazer oposição do bota-abaixo, porque isso é “falta de inteligência” e é próprio de quem se move por “interesses individuais ou partidários” e não por interesses nacionais. Mas também não vai perdoar as falhas do governo. E até já anunciou que vai chamar João Galamba ao parlamento para esclarecer a polémica da exploração de lítio no norte do país.

Sem pré-acordos, um BE ressentido e o PCP a recusar o dedo da direita

A relação entre o PS e os partidos à esquerda passou da “geringonça” de há uns meses a uma espécie de assombração —lançada pelo PS— que paira no ar relativa à aritmética da legislatura que agora começa. Entre PS, BE e PCP não há pré-acordos, muito menos escritos. Cada coisa será analisada a seu tempo e isso ficou claro durante o debate do Programa de Governo. Se o BE se mostrou um pouco ressentido com a falta de acordo formal com o PS, o PCP diz que só faltará ao PS se os socialistas optarem por convergir à direita (à semelhança do que aconteceu com a legislação laboral).

Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, no discurso de encerramento do debate, fez questão de lembrar — em jeito de aviso, claro está — que o “PS decidiu governar sem acordos de maioria” e que os acordos pontuais com os bloquistas terão sempre a uma implicação, a da determinação política plurianual. O PS não tardou em responder, pela voz de Ana Catarina Mendes, para explicar à esquerda que “acordos escritos são meras formalidades”, numa tentativa de continuar de mãos dadas com a esquerda, mas as vozes mais desconfiadas da bancada do BE fizeram-se ouvir no hemiciclo discordando daquilo que a líder da bancada socialista dizia.

“Vamos ver, vamos ver” ou “é quase, é quase, mas dá-vos mais jeito assim”, iam lançando os deputados do bloco mais céticos da postura que o Governo terá ao longo da legislatura.

Certo é que o trabalho com o PCP será, à partida, mais facilitado. António Costa já o disse por várias vezes. O respeito que tem ao Partido Comunista e a maior facilidade de negociação que existe — quando comparado com o BE — vai permitir também aos comunistas, apesar da redução do número de deputados na bancada, continuar a dar suporte ao Governo socialista. O primeiro-ministro disse mesmo a Jerónimo de Sousa que “enquanto houver caminho para andar vai continuar” e espera não ter que fazer o caminho sozinho. E João Oliveira diz que o PS só não vai contar com o PCP quando este se encostar à direita. Mas o PCP parte para esta viagem com malas um tanto ou quanto carregadas. Há linhas vermelhas bem claras definidas pelo partido para a nova legislatura às quais o PS pode ter que ceder para que outras possam receber o apoio dos comunistas.

É o caso da criação de uma rede de creches gratuitas — que António Costa já reconheceu ser necessária —, o aumento do financiamento dos serviços públicos, a solução dos problemas de acesso à habitação ou o reforço no apoio à cultura. Não esquecendo, claro, o investimento no Serviço Nacional de Saúde que o primeiro-ministro também reconheceu ser prioridade do Governo para os próximos quatro anos. Para já a palavra está dada: as parcerias-público-privadas estão arredadas dos planos socialistas, uma das grandes bandeiras do PCP (e Bloco) na anterior legislatura.

Enquanto o PS vai fazendo contas a maiorias e acenando com “coligações negativas contranatura”, que só essas poderiam perturbar a estabilidade socialista, a esquerda vai poder jogar com os números também e tentar vingar algumas das propostas e linhas vermelhas.

CDS. Cecília segura as pontas do partido de ninguém

Assunção Cristas estava sentada no seu lugar habitual mas, ao contrário do que acontecia nos debates dos últimos quatro anos, não se levantou para falar: nem para fazer qualquer pedido de esclarecimentos ao Governo. Com a líder a meio gás, e remetida ao silêncio até o CDS escolher um novo líder, em finais de janeiro, é Cecília Meireles, a nova líder parlamentar, quem segura as pontas do partido. Foi ela que fez a intervenção inicial, foi ela que fez a intervenção de encerramento. O tom foi crítico em relação ao Governo “ultra-mega-grande”, o conteúdo foi focado nos impostos que o governo se prepara para “não reduzir” mas a mensagem não ecoou nas paredes do hemiciclo. Com apenas cinco deputados, o CDS vai ter, a partir de agora, mais dificuldade em falar alto e em marcar a agenda. Para já, o partido continua sem candidatos a líder e, ao que tudo indica, assim vai continuar nas próximas semanas. O calendário está a ser gerido com pinças, para dar prioridade ao debate de ideias internas — que CDS vai sair daqui? — mas João Almeida, que é deputado, não descartou a hipótese de dar o corpo às balas. Mas não já. Por agora, ninguém convida o CDS para dançar.

Na expectativa da estreia, um sim, um não e um nim

Era uma das dúvidas do debate. O que escolheriam fazer em tão pouco tempo disponível estes três partidos que, por serem novos, e por terem elegido apenas um deputado cada, estão ainda na categoria dos exóticos do novo Parlamento? Iria a gaguez de Joacine Katar-Moreira sobrepôr-se à mensagem que trazia ao plenário? Iria o Iniciativa Liberal demonstrar no púlpito a mesma criatividade que marcou os cartazes usados em campanha eleitoral? André Ventura usaria o palco para fazer o show que se antecipava? Sem fazer mais suspense, as respostas a estas perguntas são – por ordem – sim, não e nim.

Mas vamos por partes, começando com o elefante na sala. André Ventura chegou com a bagagem cheia de acusações de ter trazido o populismo e a extrema-direita para o hemiciclo. E se era expectável um número político da parte do deputado que, na noite em que foi eleito, foi para a porta do Parlamento para acusar “os governantes que nos roubam há 40 anos”, essa expectativa não ficou defraudada.

Durante os dois dias de debate, Ventura usou linguagem agressiva – e prometeu que vai continuar assim. Classificou o Governo de “gordura” e de ser feito para os subsídio-dependentes (a fazer lembrar a polémica das acusações à comunidade cigana que marcaram a sua campanha autárquica, ainda como militante do PSD), previu um aumento dos impostos para quem trabalha (para, diz o deputado, “sustentar este enorme Governo”), falou sobre (e às) forças de segurança (a taxa de suicídio, as esquadras fechadas pelo país), em particular o que o programa de Governo diz sobre “novas formas de prisão”, para as ridicularizar: “Talvez no carro ou na praia”.

Ou seja, cumpriu um guião mais ou menos previsto, com gestos e linguajar a condizer. Perante isto, o que fez Costa? O primeiro-ministro, que já tinha dito que não contaria com o Chega para nada, não saudou o deputado estreante – ao contrário do que fez com todos os outros. Mas também não o ignorou. Deu-lhe respostas redondas e sem grande história, sorriu com as metáforas usadas, pediu contributos legislativos, desafiou-o a aprovar propostas do PS inscritas no Programa sanções a titulares de cargos públicos por prática de crime de corrupção, desvalorizou proclamações de Ventura ao sublinhar que Portugal é “o terceiro país do mundo mais seguro em todo o mundo” e ainda “registo o lapso” do deputado ao “ter confundido progressividade do IRS com aumento de impostos”.

A vitimização podia ser uma arma do novo deputado, mas pelo menos neste primeiro debate não conseguiu usá-la. Nem essa, nem o confronto direto. E bem tentou, quando atacou a proposta do Livre de que todos os que nasçam em Portugal sejam portugueses. Para isso, recorreu à ironia, para dizer que “qualquer dia basta passarem de comboio para serem portugueses”.

Katar Moreira não lhe respondeu. A deputada do Livre fez, de facto, a estreia com questões sobre a imigração e minorias étnicas, mas também sobre o combate às desigualdades (“uma igualdade que não seja unicamente uma igualdade retórica mas com uma ótica feminista, com uma ótica antirracista”), sobre os salários e o combate às alterações climáticas. Aqui levantou a bandeira do novo aeroporto do Montijo, perguntando sobre a “coerência” do avanço da construção da infraestrutura e o “pacto verde para a Europa”. Esta é a principal marca das negociações do partido com os socialistas, acabando mesmo incluída no programa de Governo – e o Livre assinalou isso mesmo em comunicado, dando a entender que o canal negocial com o PS está aberto.

Apesar de tudo isto, a gaguez extrema de Joacine acabou por se impôr nas intervenções da deputada e prejudicou a compreensão imediata da mensagem. Pode vir a ser um problema a nível da eficácia do discurso político, ou pode ser apenas uma questão de hábito. O Livre não conseguiu que a deputada tivesse mais tempo para as intervenções, mas tem a garantia do Parlamento de que haverá “bom senso”.

E finalmente, o Iniciativa Liberal. O partido que tinha dos cartazes mais criativos da campanha eleitoral, apresentou intervenções que não marcaram propriamente pela inovação. Criticou os socialistas por só saberem “governar engordando ano após ano a despesa do Estado” e o programa por ser “mais do mesmo”, não ter “rasgo nem ambição”, ser “amorfo”. João Cotrim de Figueiredo marcou ainda as diferenças entre os dois partidos dizendo que “o PS acredita num Estado controlador, a Iniciativa Liberal acredita em pessoas livres”. Quer mais estímulos fiscais às empresas, a reforma da Segurança Social, mais diminuição “das filas de espera na saúde” e menos  “preconceito ideológico” com as PPP.

Pode não ter sido inovador, e Costa chegou a dizer que ficou “desiludido” por estar à espera de uma “ideiazinha diferente”, mas o primeiro-ministro também usou este discurso para atacar Rio (“finalmente alguém assumidamente liberal”, o PSD “já não precisa de disfarçar o liberalismo de social-democracia”). Ou seja, deu um relevo ao partido que Cotrim de Figueiredo registou, ao gabar-se de ter sido eleito “o adversário principal” da primeira ronda de intervenções.

Quer isto dizer que não houve surpresas na Iniciativa Liberal? Houve, claro, mas extra Parlamento. Na noite do primeiro dia, Carlos Guimarães Pinto anunciou a saída da direção do partido, abrindo agora uma vaga que o próprio Cotrim de Figueiredo admite vir a ser ocupada por ele próprio. E isso seria uma vantagem evidente: a direção do IL estaria nas mãos da única figura do partido que agora tem direito a protagonismo mediático.

Marcelo. Fora do Parlamento, dentro do Parlamento

Ia o debate do Programa do Governo nem a meio quando Marcelo Rebelo de Sousa deu entrada no Hospital de Santa Cruz para o cateterismo que já tinha anunciado num programa televisivo. Saiu no dia seguinte, ainda decorria o mesmo debate, a anunciar: “Tendo corrido bem esta cirurgia, e sendo a evolução seguinte positiva, isso é um fator positivo na ponderação que farei daqui a um ano, em outubro do ano que vem”.

Fora do Parlamento, mas dentro do Parlamento. Marcelo Rebelo de Sousa marca presença mesmo do hospital, com um pré-anúncio de recandidatura presidencial. As eleições Presidenciais, que chegam a meio do mandato deste Governo (2021), serão ponto decisivo da próxima legislatura. Afinal foi o próprio primeiro-ministro que o sublinhou, em entrevista ao Observador, quando disse que o seu apoio a uma recandidatura de Marcelo depende de muitas coisas, nomeadamente de perceber “se pretende evoluir na forma como exerce a Presidência da República, quais são as condições políticas que existem no país”. Também recordou um registo histórico decisivo, entre o aviso e a consciencialização: “A experiência diz-nos que os segundos mandatos costumam ser muito diferentes, bastante diferentes, dos primeiros”.

A relação Belém/São Bento ganha tanto mais importância quanto mais instável for — e é — o quadro parlamentar. Quem ficará na Presidência não é, por isso mesmo, de somenos para António Costa que, sentado no centro da bancada do Governo, terá certamente tomando notado do boletim clínico que ia chegando de Marcelo Rebelo de Sousa.