Mesmo com o Estádio Olímpico Nilton Santos (ou Engenhão, como é mais conhecido) lotado, a assistência não iria passar dos 50.000 espetadores. No entanto, quando o assunto é “Clássico da Rivalidade” e tem Botafogo-Flamengo ao barulho, convém recordar lotações como as 158.994 pessoas que viram o jogo para o Campeonato Carioca em 1962 ou as 135.487 que estiveram no encontro para o Campeonato Brasileiro em 1981. Esta noite, as duas equipas do Rio de Janeiro que já andaram a competir diretamente pelo primeiro lugar lutavam por objetivos distintos, com o Botafogo a fugir aos lugares de descida e o Flamengo a tentar reforçar a liderança. No entanto, houve algo mais do que “rivalidade” antes do apito inicial e numa ação levada a cabo pelos adeptos visitados.

“O Flamengo gasta 200 milhões [de reais] a contratar jogadores e eu vou chorar a vida inteira pelo meu filho” era o título de uma das notícias afixadas na entrada sul do recinto que recebia o dérbi, recordando as vítimas do Ninho do Urubu, que vitimou dez jovens jogadores da formação, e a falta de pagamento de indemnizações às famílias, num processo que se tem vindo a arrastar no tempo. “Não é por rivalidade, é por Justiça”, dizia outra cartolina afixada, como contava o Globoesporte, num gesto semelhante ao que tinha sido protagonizado por adeptos do Vasco da Gama, outro dos clubes grandes do Rio de Janeiro, quando defrontou o Flamengo.

O ambiente chegou a estar mais tenso no exterior do Engenhão, não tanto pelos cartazes colocados no topo sul mas pelo que se passava na zona das bilheteiras, onde muitos adeptos do Flamengo “infiltrados” tentavam comprar um ingresso para as bancadas destinadas ao Botafogo por haver lotação esgotada no setor visitante. Ainda houve gás pimenta e balas de borracha numa confusão com a Polícia Militar mas tudo acabou por acalmar e as atenções centraram-se no que se passava dentro de campo, com um estádio muito despido nas zonas destinadas aos adeptos da casa e quase cheio na parte dos visitantes. Num campo onde foi sempre tudo menos calmo.

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Logo no primeiro minuto, Cícero teve uma entrada duríssima que obrigou Gabriel Barbosa a sair de maca (e nos minutos seguintes andou em campo a coxear). À passagem do primeiro quarto de hora, William Arão disputou uma bola no relvado e ficou com os pitons marcados numa perna. Pouco depois, René andou pelo ar depois de mais uma virada de Fernando (22′). À meia hora, João Paulo teve outra falta muito dura de sola sobre Gerson já depois de Joel Carli ter carregado de forma ostensiva Bruno Henrique e andar às peitadas no avançado. O Botafogo queria muito este dérbi. Algumas vezes, quis até em demasia. Mas a verdade é que, ao longo de 30 minutos, quase secou por completo o ataque do Flamengo e teve anda uma chance flagrante por Igor Cássio (10′).

Se Diego Alves já tinha feito uma grande defesa e visto alguns cruzamentos cruzarem a área sem desvio, Gatito Fernández pouco ou nenhum trabalho teve no arranque até um final de primeira parte melhor do Mengão, que beneficiou de uma primeira tentativa ao lado de Rodrigo Caio (38′) antes de um cabeceamento de Bruno Henrique a meias com a mão do guarda-redes que subiu muito e bateu ainda de forma caprichosa na trave (40′) e um desvio para fora de Gabriel Barbosa que parecia ter o golo destinado (42′). O jogo estava complicado para o líder e Jorge Jesus, em conversa com João de Deus, pareceu deixar uma mensagem para o adjunto passar aos árbitros. “Não deixam jogar a gente, é só faltas. Estão a intimidar. Você não pode permitir isto. Não pode permitir que esta equipa intimide a minha equipa. É só bater, bater, bater e bater”, atirou, num som captado pelos microfones.

O segundo tempo não baixou a intensidade e agressividade da primeira parte, muitas vezes a passar a fronteira do razoável mas com o árbitro a tentar manter o critério possível, mas a tendência do jogo mudou de forma radical após a expulsão por acumulação de amarelos de Luiz Fernando (55′). Não que o Flamengo tenha conseguido chegar à magia ofensiva que lhe permite ostentar nesta altura o melhor ataque do Campeonato (de longe) mas o jogo ficou de sentido quase único e com Gabriel Barbosa, Pablo Mari e Everton Ribeiro a terem oportunidades soberanos para chegarem ao golo que não apareceu por falta de pontaria ou Gatito Rodríguez.

Jesus tentou ir refrescando o ataque, lançou os jovens Lincoln e Lucas Silva e seria o primeiro, que após uma longa lesão que o afastou dos relvados três meses foi suplente não utilizado nos últimos cinco jogos, a marcar o golo que decidiu o dérbi em cima do minuto 90, numa das poucas situações em que o Botafogo tentou esticar um pouco mais a equipa, deu espaço para Bruno Henrique sair em velocidade pelo corredor esquerdo e fazer o cruzamento para o desvio de primeira do avançado de 18 anos que apontou apenas o segundo golo na prova. Entre mais algumas quezílias e uma agressão de Joel Carli que passou ao lado, os minutos de desconto passaram o Flamengo festejou mais um triunfo arrancado a ferros mas que pode ser vital no caminho para o título – e com Jorge Jesus a ver um amarelo após o golo, o décimo do jogo, falhando assim a receção ao Bahia por castigo.

“Se nos assustamos com o que estamos a construir? Chama a atenção, sabemos que não é fácil. Falamos que até quando vencemos e não jogamos tão bem, fica um sentimento de que podíamos ter dado mais. É um sentimento vencedor, de querer melhorar. Isso faz-nos bem, não nos deixa relaxar”, tinha comentado esta semana Éverton Ribeiro, capitão do Flamengo, a propósito do bom momento que a equipa atravessa. E foi esse espírito, com alguma “estrelinha de campeão” à mistura, que valeu mais uma vitória. No final, já depois de uns empurrões antes da festa entre jogadores e adeptos, terá havido ainda confusão no túnel entre responsáveis do Botafogo e dos visitantes mas o resultado estava fechado e faz com que o Flamengo precise de quatro vitórias e um empate nos últimos sete jogos (Bahia, Vasco da Gama, Grémio, Ceará, Palmeiras, Avaí e Santos) para conquistar o título.

Carli confirmaria mesmo que “cresceu” para Jesus depois de se ter sentido provocado pelo técnico português com uma conversa que acabou por tornar-se viral nas redes sociais. “Sim, o Jorge Jesus falou coisas desrespeitosas. O que ele falou? Ah, eu não sei”, respondeu. Já o técnico português, na conferência de imprensa, referiu que, ao passar pelo central, disse “apenas” que “não valia a pena teres batido tanto, acabaste por perder na mesma”.

Em paralelo, o Flamengo de Jorge Jesus bateu mais dois recordes: por um lado, tornou-se a primeira equipa do clube a ter uma série de 18 encontros consecutivos sem perder no Campeonato; por outro, superou o máximo de pontos conquistados numa edição da prova nos atuais moldes de 20 equipas a duas voltas, tendo mais dois do que o anterior recorde (72, em 2018) quando faltam ainda sete jornadas para o final.