Estudou composição em Stanford e após ter completado o seu doutoramento começou a dedicar-se por inteiro à música e a dar nas vistas. Movement, de 2012 [RVNG Intl.], não foi o seu primeiro álbum, mas foi aquele que introduziu as dinâmicas da voz de Holly Herndon no contexto da música eletrónica do século XXI a um público mais vasto. As suas experiências, e o modo como amplia a sua voz para o contexto de instrumento e a torna num elemento fortíssimo na abstração musical das suas composições, tornaram-na numa referência.

Em 2015 deu o salto para a 4AD com Platform, um álbum com algumas colaborações que expandiam o contexto em que a música de Holly Herndon era criada. Neste ano, com Proto, decidiu dar um novo salto. Juntou um ensemble vocal e introduziu um elemento não humano. Chama-se Spawn e é uma inteligência artificial, que ia aprendendo aqui que Holly e o seu parceiro Mat Dryhurst lhe davam de alimento. O resultado é um álbum sem medo do futuro, que contextualiza bem o uso da ideia de “música automatizada” de uma forma criativa e, sobretudo, humana. Holly Herndon apresenta Proto esta quinta-feira, dia 14 de novembro, pelas 21:00 na Culturgest. Ao telefone a compositora explicou-nos como chegou a Proto, Spawn e as diferenças entre o que ela faz e como a indústria assimila a inteligência artificial na música.

[o vídeo de “Eternal”:]

Ao longo destes meses, desde que foi editado, Proto tem crescido como uma obra minuciosa e uma harmonia entre a inteligência artificial e as componentes humanas. Qual foi o seu ponto de partida para esta ideia?
O ponto de partida é sempre o grande abismo que está à tua frente [risos]. Não sei, é sempre assustador quando começo algo novo, mas sabia que queria colaborar com mais músicos em tempo real. Platform [o álbum anterior de Holly Herndon, de 2015] tinha muitas colaborações, mas muitas aconteceram online, digitalmente ou através da partilha de ficheiros. Mas agora queria estar na mesma sala com músicos e interagir com eles. Sabia que isso iria demorar algum tempo. Necessitava de encontrar um grupo de pessoas que estivessem dispostas a experimentar e confiar em mim para testar diferentes coisas. Foi assim que me lancei para criar um ensemble vocal, foi uma ideia assustadora, mas valeu mesmo a pena o esforço. Paralelamente, comecei a trabalhar em inteligência artificial. Mas não comecei a pensar nisso ou a empurrar isso para o álbum. No início foi algo que surgiu paralelamente, uma investigação, um interesse meu. E à medida que se desenvolveu… se estivermos a falar de polifonia vocal, é uma coordenação humana muito primária, o mesmo acontece com a inteligência artificial. O processamento desta evolução tornou-se muito claro para mim à media que ia trabalhando com estas duas coisas em paralelo.

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Sei que estudou composição e o seu trabalho reflete esse estudo, especialmente no que diz respeito à composição eletrónica. A inteligência artificial, volta e meia, regressa à composição eletrónica. E está novamente de regresso, não só no seu trabalho, mas outros compositores/músicos também andam a trabalhar à volta disso. O que é que a fascina no trabalho com inteligência artificial?
Sou uma compositora de computador, ou seja, o computador é o meu instrumento primário. Quando há novos desenvolvimentos que envolvam a computação, eu estarei interessada. Porque é o meu instrumento. É algo natural em mim. E uma das razões por este ressurgimento no interesse em inteligência artificial, é porque em 2016, ou no final de 2015, houve a publicação de vários estudos académicos sobre redes neurais. É por isso que temos visto tanta arte em volta deste campo, não é uma questão de hype. Houve evoluções tecnológicas e estudos que permitiram novos tipos de interações e é por isso que muita gente ficou excitada com a ideia e começou a explorar a inteligência artificial. É um esforço coletivo humano.

E de tempos a tempos, há músicos que pensam na inteligência artificial e como pode influenciar a sua música.
Eu acho que os algoritmos fazem parte da música há algum tempo. Algumas pessoas encontram vestígios disso nos “jogos de dados” do século XVIII, em que se usava os dados para criar a progressão melódica, depois o serialismo, músicos como o Iannis Xenakis… há uma história em volta da música algorítmica, mas há uma diferença entre música algorítmica e o uso de redes neurais para composição. Há uma diferença conceptual, mas é óbvio que faz parte de uma linhagem na criação musical.

A capa de “Proto”, o álbum editado este ano

Como criou Spawn e como funciona?
Há uns anos eu e o meu parceiro, Mat Dryhurst, recebemos uma bolsa na Alemanha, em honra do Beethoven, para desenvolver um projeto que normalmente não conseguiríamos fazer. Algo experimental, sem ter um objetivo em concreto. Ao mesmo tempo, alguns dos estudos que referi começaram a sair e ficámos interessados nestas arquiteturas. Vimos uma oportunidade. Convidámos um amigo nosso, o Jules LaPlace, que é um programador que vive em Berlim, e os três começámos a criar sets de testes, ler estudos, testar diferentes combinações de software…

E como é que funciona? De que forma é que a inteligência artificial reage à sua música, como é que interage com os elementos humanos?
Há muitas formas de usar o machine learning na música. Inicialmente estabelecemos limites muito rígidos. A maior parte da inteligência artificial usa data anónima, ou seja, o único material que tem para trabalhar é aquilo que lhe dás para treinar. Não existe inteligência artificial que sabe algo além do set de treino, é conhecimento muito confinado. E como é limitado, é muito controlado. Ao invés de usar informação de outras pessoas, quisemos criar a nossa própria informação, o nosso próprio set de treino. Quando começámos a incluir o ensemble no treino, gravámos nós e eles, foi uma forma de ir contra a ideia de fornecer dados anónimos para o treino destas inteligências artificiais. Também decidimos não usar tablaturas e data midi. Muita da investigação de machine learning usa pautas musicais, as pautas são uma abstração da música, com espaço para a interpretação humana. Não queríamos perder esse lado interpretativo, essa característica algo desarrumada que o áudio consegue capturar e que uma tablatura bem-feita nem sempre apanha. Além disso, queríamos estar presentes como compositores no processo, queríamos que a inteligência artificial fosse apenas um performer e não um compositor. Ou seja, não queríamos criar um sistema automatizado que nos retirasse do processo. Até porque a rede neural é limitada ao seu treino, se treinássemos Spawn com Beethoven, iríamos ter de volta composições à Beethoven. Se usássemos o meu material do passado, iríamos ter resultados semelhantes ao meu trabalho. E, para mim, compor, escrever música, é algo vivo, não quero usar material do meu passado. Estou sempre a mudar, a evoluir, por isso preciso de estar a escrever em tempo real, responder ao mundo à minha volta em tempo real. Estas foram algumas questões ideológicas que assumimos desde o início.

Em termos práticos, o que significa?
Criámos os nossos próprios sets de data e usamos áudio como material base e não midi. Isso significa que estávamos a gravar o nosso ensemble a cantar, treinávamos a Spawn com as vozes deles, criámos um modelo de voz a partir do meu, consegues ouvir isso em “Godmother”. Criei um kit de treino com a minha voz e dei à Spawn. Quando dei à Spawn a música da Jlin, a Spawn interpreta a música dela através do modelo da minha voz, é assim que “Godmother” foi criado. Por exemplo, no início de “SWIM” ouves umas vozes que parece que foram vocoded, isso é a Spawn, a partir de um modelo de voz do ensemble. Spawn está a cantar linhas de sintetizador mas através do modelo de voz do ensemble. Ou seja, a Spawn faz parte do ensemble, é uma performer dentro do ensemble. Não a vemos como substituta do ensemble. Não queríamos isso. Queríamos mostrar como de que é muito pouco sofisticada, que não é assim tão interessante sem o performer humano ao seu lado.

[“Godmother”:]

Pouco sofisticada mas que funciona muito bem neste modelo de interação. Como ouvinte, nunca penso na Spawn como uma restrição ou apenas como um acessório. E, sim, como um modelo de interação. Este tipo de tecnologia, fascina-a ou assusta-a um bocado? No sentido de como a inteligência artificial pode evoluir para interpretar e aprender música.
Digo que é pouco sofisticado, que o áudio é algo tosco e imperfeito. Mas se ouvir as primeiras gravações áudio, elas também soam pessimamente, e atualmente temos tecnologia incrível para gravar áudio em alta fidelidade. Consigo imaginar o que irá ser dentro de vinte anos. Também escolhemos o título Proto porque estávamos a pensar nesta ideia de protocolos, um protocolo é um conjunto de regras de comportamento. E neste ponto de criação de inteligência artificial, ainda temos condições parar criar modelos que servem as pessoas, e não apenas quem está no poder. Ou seja, quando penso no “futuro assustador” não penso na Skynet [o sistema de inteligência artificial ficcional da saga “Exterminador Implacável”], mas penso na infinite muzak, que já estamos a ver no Spotify, imagino a possibilidade de automatizar a extração de um estilo de um artista emergente, de uma forma imediata, de retirar a possibilidade de artistas experimentais terem uma possibilidade na música. Vejo a possibilidade da inteligência artificial de fortalecer as dinâmicas de poder que já existem na nossa sociedade, mas não acho que tenha de ser dessa forma. É uma decisão que nós, enquanto sociedade, temos de fazer em conjunto. Muitas dessas decisões têm de ser hardcoded nos protocolos do software, desde o início. Não será algo que poderás voltar atrás, ex post facto, um pouco como está a acontecer com a internet hoje em dia, pela forma como se publicita tudo é problemático, ou de se roubar o trabalho dos outros online, sem ter qualquer ligação com a fonte original… Isso tem repercussões na verdade, nas notícias e no trabalho das pessoas. Isso são decisões que foram hardcoded na internet desde os primeiros dias. E andas para a frente várias décadas e agora é “bolas, agora temos de resolver estes problemas”. Acho que deveríamos aprender com isso, ter alguma perspetiva sobre o assunto, como é que podemos criar protocolos que irão para funcionar para nós, enquanto uma sociedade, desde o início.

Referiu a infinite muzak. É fascinante, mas também pode ser repetitiva e aborrecida…
Mas se a perspetiva for como capitalizar ao máximo material áudio, só com uma perspetiva de engenheiro/empresário, não se está a pensar no que a música significa para a cultura. Por isso, muitas das coisas que têm sido desenvolvidas, ou como a indústria “resolveu” na última década, não foi com uma perspetiva de músico, ou na perspetiva de uma cultura que se quer fomentar, mas de um ponto de vista puramente capitalista. Música não é uma combinação de notas, é por isso que não quisemos usar data midi. Isto não se trata de criar uma combinação bonita de notas, não! Música é criação de sentido, de contexto, está ligada a onde veio, às pessoas que a fizeram, às salas onde foi criada e gravada, à cultura das pessoas que a fizeram. Não é algo que pode ser alienado da sua fonte. E acho que é isso que aconteceu nos últimos dez anos. Tens estas bandas anónimas que surgem em serviços de streaming, que estão a criar esta infinite muzak. Vês a imprensa musical a ser dissolvida e… vês a estrutura toda a ruir. Se fores ao Spotify até é difícil encontrar as editoras que ligam certas bandas. Não estou a falar das grandes editoras e desse sistema, mas as editoras mais pequenas, as independentes, têm um modelo de curadoria. E se gostares de algo nessa editora, podes gostar de outra coisa. E não és conduzido para aí, mas para uma situação algorítmica opaca que serve uma espécie de ideia de coisa de curadoria. Penso que o contexto se tem perdido na música. E para mim música é construção de sentido, e tem laços fortes com o seu contexto. Isso são coisas que me preocupam e pelas quais quero lutar.

“A canção de três minutos surgiu por causa da rádio. Agora os refrões surgem mais rapidamente por causa do Spotify. Isto irá mudar para outra coisa”

Em sistemas de streaming e geridos por algoritmos, quando se procura por um artista, raramente é um álbum que surge. E não existe informação sobre os álbuns, até se torna difícil de encontrar a editora. A sua música tem sido construída em volta do conceito de álbum. Preocupa-a no futuro que a ideia de esteja a ser dissolvida?
Isso já está a acontecer, não é o futuro, é o presente. Houve uma altura que não existia o conceito de álbum. O formato do álbum estava limitado ao tempo que conseguias colocar num disco de vinil. Isso foi uma decisão que foi tomada pela dinâmica das plataformas do seu tempo. Entretanto, essas dinâmicas mudaram e não quero estar presa a um formato. Trabalho na ideia de álbuns porque um single não conseguiria conter todas as minhas ideias. Mas isso não quero dizer que tudo o que faça tenha de durar uma hora. Sou agnóstica em relação a isso. Quando trabalhas em ideias conceptuais, é difícil colocar todas essas ideias em três minutos. É verdade que a atenção das pessoas está mais reduzida, por vezes questiono-me se faz sentido criar estes formatos longos. Para este projeto fazia sentido, precisava de ser assim tão longo, mas se calhar não para tudo. Claro que não vou criar canções pop, com o refrão e o break nos primeiros dez segundos para que tenha sucesso no Spotify. Não é isso que me interessa. Mas se não pensarmos na década em que estamos, a música pop adaptou-se sempre às formas de distribuição que funcionam nesse tempo. A canção de três minutos surgiu por causa da rádio. Agora os refrões surgem mais rapidamente por causa do Spotify. Isto irá mudar para outra coisa. E é interessante ver essas mutações, por vezes as pessoas fazem coisas muito criativas com elas, mas por vezes também há quem faça formas de arte mais pobres. Não sei, vamos ver. Provavelmente, a maioria será uma porcaria, mas existirão algumas coisas interessantes. Por exemplo: fico sempre impressionada com a forma como o hip hop se transforma. Funciona perfeitamente para a indústria, mas também está sempre a criar novos limites. Não consigo ver o futuro, mas não estou casada com a ideia de álbum. Gosto de criar trabalhos longos, porque gosto de demorar o meu tempo e pensar nas coisas e pensar o que tenho a dizer sobre isso. Cheguei à inteligência artificial e criei este mundo de vozes, que é uma coordenação entre a voz humana e a inteligência artificial. E se pegarmos num e noutro, na voz humana e na inteligência artificial, são coisas cujas origens estão muito afastadas no tempo: e agora estão juntas. Fazer isso, absorver a música, como poderia funcionar, demorou muito tempo. E ainda demorou mais a pensar como é que isto funcionara como algo a que eu pudesse chamar arte. Por vezes, estas coisas demoram tempo e isso é muito difícil numa sociedade que te pede imediatismo. Por vezes, um post no Instagram vai mais longe do que a faixa de um álbum.

Como é que Proto funciona ao vivo?
Temos diferentes configurações. Não toco a solo, seria impossível fazer isto sozinha. Temos uma configuração com 5 a 8 vocalistas e eu e o Mat tocamos no laptop e criamos um ambiente onde fazemos a nossa performance. Porque quero que sejamos vistos como humanos em palco e não só vocalistas. Esse ambiente visual foi construído pelo Dario Alva, que é um artista espanhol. Existe outra versão que é mais pequena, tenho um trio vocal, que trago comigo, eu, o Mat e o ambiente visual. Em Lisboa vamos tocar com o trio vocal.

[“Frontier”:]

Spawn reage ao que acontece ao vivo?
Neste momento é apenas material samplado. Temos trabalhado numa versão em tempo real, mas ainda não está totalmente desenvolvido. Mas temos outras formas de integrar a Spawn no espectáculo ao vivo. Sem dizer muito, fazemos uma espécie de treino da Spawn nos concertos. Creio que só para o ano é que a Spawn andará connosco na estrada.

Vai continuar a desenvolver a Spawn para os seus próximos álbuns?
Em cada álbum trabalho com novas ferramentas. Não costumo deixar nada para trás, costumo só meter mais ferramentas na caixa. Ainda não comecei a trabalhar no próximo álbum, mas provavelmente a Spawn não estará tão presente. Mas tenho a certeza que fará parte do ensemble.