O Bando estreia, na quinta-feira, na sala Garrett, do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, a peça “Purgatório”, segunda estação do projeto “A Divina Comédia”, a partir da obra homónima de Dante Alighieri (1265-1321).

A versão para palco estabelece-se entre um solitário e aqueles que observa, pessoas cansadas de andar, num percurso interminável, sem destino. Tem por base a tradução de Sophia de Mellho Breyner Andresen, com dramaturgia de Miguel Jesus.

Iniciado em 2017, por O Bando, coletivo com sede em Palmela, o projeto “A Divina Comédia” abriu então com a estreia de “Inferno”, e terminará em 2021, com “Paraíso”, a última estação da obra do político e poeta florentino, do século XIV, dito “il sommo”, o primeiro e maior poeta da língua italiana.

A confrontação entre “um solitário, um estranho indigente que acredita na humanidade mas não acredita nas pessoas”, refugiado num lugar “a ver passar” aqueles “que se cansam de andar de um lado para o outro”, sem que saibam para onde vão, é o núcleo do drama de “Purgatório”, explicou João Brites, diretor da companhia e encenador da peça, à agência Lusa.

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Em “Purgatório”, destaca, o destino não é definitivo. “Há aqui uma passagem. Estão todos em trânsito, todos a tentar redimir-se das suas culpas”.

Para o projeto foi “determinante” o trabalho que o maestro Jorge Salgueiro tem desenvolvido ao longo dos últimos dois anos com o Coro Setúbal Voz, grupo amador, composto por 64 elementos — dos quais, 44, rotativamente, entram em cena. Jorge Salgueiro, também cooperador de O Bando, é responsável pela música e direção musical da peça.

Vergílio (Fernando Luís), Dante (Nélson Monforte), Sara Belo (Beatriz) e Rita Brito (Matilde) são os quatro atores para as quatro principais personagens.

Num palco com a mesma estrutura metálica da cenografia de “Inferno” — por onde continuamente passa uma multidão de pessoas —, aparece Vergílio, “subentendendo-se” que já acompanhou a crise de algumas dessas pessoas e que “as ajuda a ir mais além”.

Vergílio, porém, “já está cansado de servir de guia, de se ocupar dos que não conseguem avançar e, portanto, hesita muito antes de mais uma vez ficar cativo”, antes de aceitar alguém “de quem tem de cuidar”, sublinhou João Brites.

Recuperando a ideia de Dante, nesta peça Vergílio acompanha Dante até uma fase seguinte, que culmina no encontro com Beatriz, com a multidão (Coro) e com “uma espécie de enviada” de Beatriz, Matilde.

Matilde é como “uma Beatriz mais terrena”, que tenta fazer com que Dante “aceite um ritual de rejuvenescimento, para recuperar o caminho até um estádio diferente”, disse o encenador à Lusa.

Três dias é quanto dura a viagem representada no espetáculo dividido em nove partes, ao longo do qual a personagem-autor de “A Divina Comédia” se confronta com outros tantos pecados que têm significados paralelos.

Na encenação, deu-se primazia à voz, à palavra e ao ver, enfatizou João Brites. A ideia foi “conseguir conciliar géneros de representação diferentes”, e que, desse “efeito de estranheza, resultasse coerência”, observou.

Daí a escolha de Nélson Monforte para Dante, “uma espécie de ‘personagem de espasmos’, que parece pouco realista e um pouco desequilibrado (quando temos sempre aquela ideia de Dante filósofo e grande escritor)”, a de Fernando Luís para Vergílio, personagem com “um registo mais realista, mais consentâneo com uma personagem mais verosimilhante”, exemplificou.

Matilde é “mais sarcástica”, acrescentou João Brites. E Beatriz começa por se ver muito dificilmente ao longe e materializa-se, sobretudo, “numa voz que tem ressoadores ancestrais”, configurando-se numa “imagem imaterial que nunca se sabe se se confunde com a própria morte”, acrescentou.

Beatriz é aliás quem conduz Dante a ver-se a si próprio ao espelho, obrigando-o a ver-se como um ser igual aos outros. Porque Dante, que dizia ser o orgulho o seu principal pecado, só consegue continuar o caminho quando reconhece ser “ninguém”.

“Purgatório” é uma peça onde os planos de compreensão estão muito focados nos olhos — “daí que, na multidão [coro], haja os espantados, os míopes, os vesgos, os cegos, os de olhos vedados”. A ideia é privilegiar a relação com “o olhar, o ver”, com a compreensão “como dizia o Saramago”, com “o entender-se os pecados”, frisou João Brites, aludindo a “O Ensaio sobre a Cegueira”.

Além da participação “extraordinária” do Coro Setúbal Voz — pela entrega, pela qualidade vocal e não apenas por ser um coro coreografado, segundo o encenador -, João Brites considerou que “Purgatório” será mais “percetível” por parte do público do que a peça anterior do ciclo, “Inferno”.

Não apenas pela dramaturgia “excelente” de Miguel Jesus, mas porque em “Purgatório”, ao dar-se primazia “à voz, à palavra”, o verbo “adequa-se mais àquilo que se vê; torna-se mais credível”, argumentou Brites.

Em “Purgatório”, João Brites procurou estabelecer a “personagem intermédia de cada um”, “naquilo que é a sua sombra cénica, naquilo onde cada um mais se encontra como artista, porque [o ator] não constrói um outro ser”, ainda que construa sempre uma personagem, frisou.

No processo, é também a importância da voz que o compositor Jorge Salgueiro sublinha. Se o espaço cénico de “Inferno” era dominado por instrumentos de corda (violinos, violoncelos, contrabaixos e violetas, sobretudo), o de “Purgatório” é dominado pela voz, disse à Lusa o maestro, adiantando que os instrumentos de sopro dominarão a terceira parte do projeto, “Paraíso”.

Em “Purgatório”, a voz eleva-se, sugerindo os “coros de anjos” que Dante idealizou na sua obra, disse Jorge Salgueiro. Têm sobretudo a ver com o facto de “Purgatório” ser um “espaço em trânsito”, explicaram encenador e diretor musical. E, ao apelarem a modos antigos, quase se consegue ouvir uma banda sonora contemporânea da obra de Dante.

Criado por O Bando, com o Coro Setúbal Voz, “Purgatório” é uma coprodução do Fórum Municipal Luísa Todi, da Câmara Municipal de Setúbal e do Teatro Nacional D. Maria II, e integra-se nas comemorações do centenário de nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Com cenografia de Rui Francisco, desenho de luz de Nicolas Manfredini, coralidade de Juliana Pinho, desenho de som de Miguel Lima e figurinos e adereços de Clara Bento, “Purgatório” pode ser visto na sala Garrett até 24 de novembro, com récitas à quarta-feira e sábado, às 19:00, à quinta e sexta-feira, às 21:00, e, ao domingo, às 16:00.

“Paraíso”, a última estação de O Bando sobre “A Divina Comédia” de Dante, não tem ainda local ou data definidos para a estreia, por não haver ainda um coprodutor, disse à Lusa João Brites.