Um trabalhador, de costas voltadas, trabalha. Pois claro, havia de fazer o quê? Chama-se Bob e está numa sala, no mínimo, estranha. Tudo é folha de alumínio. Tudo está tapado e livre de possíveis intrusos, tudo é estéril, tudo é artifício. Parece uma experiência futurista onde testam os limites de um homem, porque sim, aqui sempre se diz: temos que continuar. A máquina não para. Mas possivelmente não é nada disso. É outra coisa. Talvez até um kebab – quem sabe?

Ao lado de Bob está – vai estando – o essencial. Alguém conhecida como Manutenção, que faz todo o acompanhamento fisiológico do trabalhador. Há ainda o senhor da limpeza, o desenhador de som e aparente patrão ou coordenador, se quiserem. E a senhora que trata da iluminação e que tem como função dar dia e noite ao Bob, consoante a hora estipulada. É isto que é “Karōshi”. Mas as linhas que se seguem não falam só de trabalho. Recuam até à sua fundação, uma pincelada n’Os Justos, texto de Camus com que se estrearam no Teatro do Bairro Alto então ainda nas mãos do Teatro da Cornucópia, de Luís Miguel Cintra e de Cristina Reis.

Bernardo Souto, Guilherme Gomes, João Reixa, Nídia Roque e Rita Cabaço, conheceram-se no Conservatório e nunca mais se largaram. Depois desse início em 2016, fizeram “Topografia” (Ribeira, 2017), “que boa ideia, virmos para as montanhas” (CAL, 2018), “agora que o carro do sol já passou” (Museu da Marioneta, 2019).

“Karōshi” está na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II a partir desta quinta-feira e até dia 14. É um espectáculo que percorre o terreno do absurdo. Um bocado como esta entrevista. E se vai dedicar o seu tempo ao que está aqui abaixo – que não é pouco – faça-o, por favor, com a consciência de que todas as pessoas envolvidas nesta conversa são mais do que entrevistador e entrevistados. Daí o à-vontade.

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“O ritmo acelerado com que o trabalho é feito e o entusiasmo que nisso existe é importante”

“Karōshi” é uma doença, algo como “morrer” por excesso de trabalho. Já se sentiram meio mortos, ou pelo menos perto dessa ideia?
Guilherme Gomes (G.G.) — Eu já. E coincide com este momento. No outro dia fiquei a pensar na nossa conversa, perguntaste se fazia sentido fazer este espectáculo na própria companhia. E a verdade é que este ano é um bocadinho atípico para o Teatro da Cidade, estreamos três espectáculos. Estreámos, no início do ano, “agora que o carro do sol já passou”, estreamos agora o “Karōshi” e em dezembro, em Viseu, vamos estrear o “Lamento de Ĉiela”. Além disso, ainda apresentámos o “que boa ideia, virmos para as montanhas” no Festival de Teatro de Almada.
Nídia Roque (N.R.) –Fora os trabalhos paralelos.
G.G: Exato. E então este ano sinto-me assim um bocadinho mais nessa situação porque estou a dirigir um projeto de criação teatral em Viseu, que é o Creta, então divido-me um bocadinho entre cá e lá e acabo por ficar assoberbado. Foi o mais próximo que estive dessa situação.
Rita Cabaço (R.C.) — Eu também já vivi isso, na altura estava a ensaiar dois espectáculos, um de manhã e outro à tarde, e estava em cena com um outro. Na altura nem pensas, porque se pensares bloqueias. Mas lembro-me de estar no sofá a pensar se aquilo tudo estava a valer a pena. Apesar de tudo é algo que gosto de fazer e pensava se aquilo tudo, ninguém me estava a obrigar a fazer aquilo, valia a pena, valia sacrificar a vida pessoal. Acho que não vale.

De forma tão exaustiva, é isso?
R.C. — Sim, que era o caso.

Nenhum de vocês acumula nenhum trabalho que não seja o de ator, certo?
N.R. — Eu dou aulas. Mas é uma coisa que gosto de fazer e que está bastante dentro daquilo que considero ser a minha profissão.
Bernardo Souto (B.S) — Eu faço recorrentemente animações e visitas-guiadas em museus,  já há muito tempo, é um bocado cansativo, mas já me habituei.

Mas precisam?
B.S.
— Mas precisam.
N.R. — Há uma coisa engraçada, a Rita estava a dizer que quando acumulou três trabalhos, todos na mesma área, sentiu uma exaustão, lembro-me de estar a trabalhar numa pizzaria e a trabalhar em teatro, mas nessa altura sentia que quando ia para o teatro era muito gratificante.

Porque saías dali.
N.R.
— Exato. A exaustão era exclusivamente dentro da pizzaria e depois conseguia balançar as coisas. Há uma ideia de libertação, quando estás lá estás mesmo lá, não há uma repetição das mesmas tarefas.
João Reixa (J.R.) — Eu só senti isso numa altura, trabalhava num restaurante e estive sem me envolver em nenhum projeto teatral durante um longo período de tempo. E tinha questões emocionais a fervilhar imenso, era um limbo de existência em que não conseguia existir, era um massacre existir. O trabalho ajudava em certo ponto, mas ao mesmo tempo roubava-me tempo para conseguir desanuviar. E isto faz-me pensar como é que as pessoas, perante situações de fragilidade emocional ou complicações psicológicas, gerem isto. E se é uma coisa que nem se gosta de fazer…

Estamos a falar de um espectáculo onde ainda que não seja notório que estão a falar desta profissão, é presumível que também estejam a falar desta profissão.
N.R.
— Sim, acho que sim.

Até porque não se percebe o que é que a personagem do trabalhador, o Bob, está a fazer.
G.G. — Imagino sempre que ele está a pensar. O trabalho dele é pensar.

E como é que ele materializa esse trabalho, tendo em conta que o seu discurso é reduzido?
G.G. — O trabalho do Bob não é produtivo. Há aquela diferença entre blue-collar e white-collar, o blue-collar é algo mais manual, o white-collar é algo mais intelectual, mesmo que sejam contam ou algo do género. Então na minha cabeça é a ideia de levar ao cúmulo esse trabalho intelectual. E de alguma maneira também tem graça que ninguém que está a tratar do Bob percebe o que é que ele está a fazer, é um trabalho super-complexo de certeza. O próprio Bob se calhar não percebe, que é a história da nossa vida, aquela coisa do Marx e da roda dentada, o que é que máquina a que a roda dentada pertence está a produzir? Portanto, não sei como é que o material que o Bob produz se materializa, mas eu, enquanto intérprete, imagino sempre que ele está a pensar.
N.R. — Até porque na verdade é o que tu estás a fazer.
G.G. — No outro dia estava a fazer assim: “As pombinhas da catrina andam de mão em mão…”. Vou dizendo coisas que não têm nada que ver com nada, canções ou coisa assim. Estou-me a entreter.

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E em que é que o Bob estará a pensar?
N.R.
— Deixa-me só dizer que acho que é interessante não dar essa resposta. As pessoas devem imaginar “se”, naquele lugar. O Bob é a representação do trabalhador. O Bob está a trabalhar, e esse espaço vazio acho que é mais interessante do que determinar o que é que o Bob está a fazer.

Portanto, estás-me a lixar a entrevista, é isso?
G.G.
— Não, é a única resposta possível, de facto, nós não sabemos.
B.S. — Há algumas pistas. O senhor da limpeza, por exemplo, olha para ele e diz: “E não para, eu não consigo”. Portanto, ele não conseguia fazer aquilo.
R.C. — Seja qual for o trabalho, o importante é saber que ele não para.

Portanto, chegamos à conclusão que vocês estão na altura ideal para fazer este espectáculo. Embora isso possa não ser muito bom sinal.
G.G.
— Sim. Mas é mais justo agora fazer este espectáculo do quando tivemos a ideia de o fazer.
B.S. — Até porque o que está à nossa volta é muito claro, fala-se muito mais de conceitos como os burnouts, está-se a chamar a atenção para estas coisas.

Esperam chegar a um dia um sítio mais, como hei de dizer, calmo? Não sei bem se é calmo.
G.G.
— Eu espero.
N.R. — Não sei, isso é muito relativo, essa coisa de estarmos mais calmos também pode significar estagnar, não haver uma procura por outras coisas e que isso também nos canse de alguma maneira, chegar a uma altura em que está tudo estável e temos os nossos horários…não sei. O que acho é que era importante chegar a um lugar onde não tivéssemos tanto que fazer ou tanta coisa ao mesmo tempo ou que não tivessem de se sobrepor espectáculos só porque sim. Ao mesmo tempo, acho que o ritmo acelerado com que o trabalho é feito e o entusiasmo que nisso existe é importante.

Uma velocidade mais reduzida, pode ser prejudicial, é isso?
G.G.
— Eu não concordo. Aprecio muito o silêncio e a contemplação e o ritmo frenético e tudo mais dá-me cabo do sistema. Se calhar produzo mais.
N.R. — Contra ti falas, não é?
G.G. — Pois é, eu sei, por isso é que digo isto com mais certeza, é como se a experiência que estou a ter me dissesse que não é bem isto. Acho que uma coisa fantástica e que devíamos tentar conquistar era que um ator não precisasse de fazer mais do que um espectáculo por ano, fizesse se quisesse, mas não precisava.

Até porque isso significaria mais tempo de processo, ensaios, de trabalho.
G.G.
— Claro e isto é uma coisa de desgaste muito grande do ponto de vista emocional.
R.C. — Acho que depois íamos sentir falta de fazer mais espectáculos por ano, mas é isso que o Guilherme está a dizer, não fôssemos obrigados. A questão da calma que levantaste não é bem calma, a gente tem ambição de ter outras condições.
N.R. — Ou seja, não estares a pensar se tens dois meses para ensaiares porque só tens dois meses para pagar aos atores ou se podes ensaiares durante quatro meses tranquilamente e estreares o espectáculo.
J.R. — Faz-me pensar que procuramos uma coisa muito singular. Funciona tudo no oposto. Quanto mais rápido melhor, quanto mais ao mesmo tempo melhor, é sair um, entrar outro.
N.R. — Acho que isso é que não é bom.
J.R. — De todo. Temos é que estar no oposto, fazermos o que queremos, durante o tempo que quisermos. Acho óptimo.
R.C. — Isso só existe para quem não precisa de ganhar dinheiro ao fim do mês. Enfim, acho que ia ter pena de só fazer um espectáculo por ano, mas concordo com o Guilherme, era muito bom podermos controlar o nosso tempo.

“Tendo em conta as dinâmicas teatrais da cidade não sei se seria benéfico o Teatro da Cidade ter um espaço”, dizem-nos

Isto é uma entrevista, vocês peçam o que quiserem. Ninguém garante é que vá acontecer.
R.C.
— Queremos um espaço, queremos um espaço, queremos um espaço. Tens algum, Miguel? Uma garagem ou assim.

Por acaso não tenho. Tinha pensado falar disso mais à frente, mas agora é impossível. Recuemos. Quando vos entrevistei a propósito d’Os Justos [primeiro espectáculo do Teatro da Cidade, estreado em Março de 2016, no Teatro do Bairro Alto, ainda habitado pelo Teatro da Cornucópia]…
G.G.
— …nós já queríamos um espaço.

Nem mais. O que é que aconteceu neste tempo?
R.C.
— Câmara de Lisboa não estás atenta.
G.G. — Acho que fomos um bocadinho precoces a querer ter um espaço.
R.C. — É verdade, é verdade.
G.G. — A propósito disso, convém até dizer que a Câmara de Lisboa foi muito correcta, nós tivémos uma reunião lá antes sequer de estrearmos um espectáculo. Eles receberam-nos na Câmara e disseram que iam ver o que é que era possível.

Nada foi possível.
G.G.
— Mas sabes que tenho pensado sobre isto e acho que o espectáculo também fala disto. Nós dizemos que queremos um espaço e a Cristina Reis, fui visitá-lo no outro dia, ela disse: “Nunca queiram um espaço”. Ter um espaço é como ter a manutenção, a iluminação, o desenhador de som, a limpeza.
R.C. — Também depende da dimensão do espaço.
G.G. — Todos os espaços têm eletricidade para pagar, água para pagar, há pó, plantas. Repara, até pode ser um sítio que nos encontramos, uma garagem fixe, não sei, 200€, mas mesmo isto, a certa altura, é um peso, se não forem os 200€ a Câmara diz que nos cede um espaço, mas também nos exige alguma programação, apresentar lá qualquer coisa de vez em quando, e isto também é um peso. Um espaço é um desvio nas atenções. Continua a ser muito tentador e acho que ainda compreenderemos como é que esse espaço se apresenta para nós, mas uma coisa que é muito útil é, se nós contactarmos uma Junta de Freguesia eles recebem-nos, eles procuram connosco responder aos nossos pedidos, se não conseguirem servem de intermediários com outros possíveis colaboradores e esta ideia de sinergia é um tapa furos, por enquanto. E permite-nos, em algum momento, ter lugares.
R.C. — Termos lugares? Devido à Junta de Freguesia ou da Câmara?
G.G. — Vamos ensaiar o “Lamento de Ĉiela” num espaço que foi graças à Junta de Freguesia que conseguimos.
N.R. — Está bem, mas entretanto estás a ensaiar no CAL [espaço da companhia Primeiros Sintomas].

Bom e esse espaço, teria vontade de programação e acolhimentos?
R.C.
— Acho que sim, mas em circunstâncias onde não teríamos que estar a produzir por produzir.
N.R. — Acho que o Miguel estava a perguntar de acolher e isso acho que já é outra dimensão, acho que já seria ótimo termos um espaço para fazer as nossas criações. É realmente importante saber acolher e ter uma programação com sentido, mas isso também tira tempo para as tuas criações e o que nós estamos sempre à procura é ter mais tempo para criar, sem preocupações. Só ter um espaço para onde pudesses ir ler, ensaiar, estar, uma sala de ensaios, sim, só isso já era fixe.
G.G. — Isto é algo que partilho tendo em conta o que vocês estão a dizer, que é: tendo em conta as dinâmicas teatrais da cidade não sei se seria benéfico o Teatro da Cidade ter um espaço. Não sei se não seria melhor tornar mais eficazes estes diálogos institucionais de que eu estava a falar, conseguir um espaço para ensaiar, do que uma companhia de teatro ter um espaço, é muito tentador, eu preferia ter um espaço, mas não sei quantas companhias de teatro em Lisboa quereriam ter um espaço.
N.R. — Não é só isso, por exemplo, onde é que guardamos as nossas coisas, o nosso cenário? Não queremos deitar coisas fora, queremos reutilizá-las e a importância de um espaço tem que ver com isso também.

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Voltando ao espectáculo, queria-vos desafiar a dizer que sítio é este? Eventualmente não sabem, mas se tivessem que arriscar. Na minha opinião é assim uma experiência futurista, não sei bem, um sítio num outro tempo, onde se trabalha ininterruptamente.
B.S.
— Do ponto de vista da limpeza, isto é um prédio com 4 andares, 5 salas em cada andar.

Há prédios, à volta desse prédio?
B.S.
— Há. Existe movimento, existe rua.

Portanto, o som é sacado ao vivo da rua, é isso?
J.R.
— Isso é giro.
B.S. — Isso já não me compete, fala com o desenhador de som.
R.C. — Para mim isto é um escritório como um escritório dos dias de hoje, não é nenhuma experiência, podia ser um escritório ali de Sete Rios, uma sala de trabalho banal, totalmente banal.
N.R. — Para mim isto é um lugar estéril e altamente absurdo do ponto de vista realista, não permite dúvidas, não permite contacto, não permite a existência de realidade.
J.R. — Concordo com a Nídia, acho que é tão concreto, é o que é, é o que se vê, e portanto essa é a intenção principal quando penso no lugar. Mas quando o imagino, um bocadinho sob o ponto de vista do desenhador de som, quando fecho os olhos e estou a ouvir aquele som, aqueles carros a passar ao fundo, imagino efetivamente um prédio muito alto e crio automaticamente a ilusão de que aquele tipo tem uma janela, uma vista incrível, um open space incrível, as pessoas lá em baixo, o táxi amarelo, é o que imagino, quase Times Square. Nunca lá estive, mas deve ser mais ou menos isso. A realidade é que é só uma ilusão, e isso é claustrofóbico, é depressivo.

Há uns dias, Guilherme, disseste, perante a ideia de um trabalhador de fralda, um bocadinho como o Bob está ali, que nem se levanta do seu posto de trabalho, que isso era “bastante tentador”. Queria perguntar-te se estavas a falar a sério.
G.G.
— Estava.
R.C. — Como assim? Usar fralda?
G.G. — Fralda é cúmulo, mas toda a gente gostava de ter subsídio de alimentação, transporte.
J.R. — Mas olha que isso acontece razoavelmente. Tenho um amigo polaco que é informático que me disse que lhe deram assim o melhor Mac do mercado.
G.G. — E o que é que tu lhe disseste? Tens um trabalho do caraças, ou não?
J.R. — Isso não disse, por acaso.
R.C. — Mas como é que isso se reflecte no nosso trabalho?

É precisamente por não se refletir. Mas eu estava a caricaturar um bocadinho mais do que aquilo que vocês estão a falar. Não precisava de ser a fralda, mas se achariam tentador estares a trabalhar e alguém vir passar um paninho de água fresca na tua cara ou coisa assim?
G.G.
— Isso é um exercício discursivo sobre essa questão. Há algum tempo atrás não passava pela cabeça de ninguém que toda a gente se pusesse à disposição para que alguém soubesse onde tu estás a toda a hora, quer dizer, na cabeça do Orwell passava, mas enfim, nós propusemo-nos a isso, é de tal forma tentador que é a forma como hoje vivemos, não só no trabalho como na vida quotidiana. Sugerem-te as melhores séries de televisão consoante o teu gosto, não te estão realmente a esfregar o pano na cara mas estão quase, o mundo está feito à tua medida, temos a certeza que vamos gostar disto.
R.C. — É aquela coisa do Spotify, não é? Música para quando estás triste, cansado.

Isso existe? Nem sabia.
G.G.
— A melhor música para estudar.

“Somos rigorosos com o nosso trabalho, queremos realmente construir um trabalho sério e aprofundado sobre o que estamos a fazer”

Mas quem é que definiu qual era a melhor música para estudar? É instrumental, é isso?
G.G: Pode não funcionar, mas há pessoas que o usam para fazer isso. Muitas pessoas estudam a ouvir música clássica, isso para mim era impossível, a música erudita é altamente complexa.

Então, afinal, o mundo não está assim tão feito à tua medida.
G.G.
— Ia fazer essa ressalva agora, é tentador, mas não quer dizer que para mim pessoalmente seja.

Gostava que me falassem um bocadinho das personagens que gravitam em torno do Bob. Parece-me que existem porque lhe são indispensáveis.
B.S.
— Sim, sentimos que era preciso ter uma pessoa responsável pelo som, outra responsável pela luz, um limpador e a manutenção, que é quem se encarrega das necessidades mais fisiológicas e físicas do Bob.
N.R. — Sem dúvida, foi por essa ideia de coisa essencial que começámos a levantar as personagens. A alimentação não pode faltar, o som não pode faltar, a higiene não pode faltar.

Então e aquele número de cabaret, com dois exímios bailarinos, era indispensável?
N.R.
— Isso são as animações que o Bernardo vai fazer de vez em quando. Que são indispensáveis para os trabalhadores.
B.S. — É o kit-kat, é o bónus. Recentemente fui fazer uma animação a um call-center e os trabalhadores iam entrar em férias e então nós fomos mesmo vestidos à anos 90, com calções e tal, como se fossemos para a praia, é como um comic relief, a gente vai lá e eles aliviam, riam, assim. Mas cheguei ao segundo piso dessa empresa, que é onde eles estão mais concentrados, e comecei a fazer o meu número como fiz nos outros pisos todos e então comecei: “Férias azuis, tenham todos umas férias seguras, segura a carteira, segura a vossa casa e vai ver que terá umas férias felizes”, isto era para uma seguradora. Quando estava a dizer isto as miúdas começam a atirar com os ratos para cima dos computadores, aparece um homem a correr e diz: “O senhor não faz isso aqui, o senhor fica calado, não faz isso aqui”. E eu fiquei assim calado, sem saber o que fazer, eu a fazer e ninguém a olhar para mim, senti-me sozinho.

G.G. — Há-de ser o próximo espectáculo do Teatro da Cidade. Férias azuis.
R.C. — Portanto, aquela dança é como se fosse este momento, mas há ali um curto-circuito porque, de facto, eles estão a ir na hora certa, mas como houve alguém que não colocou a luz, houve uma confusão, mas era naquela altura.
G.G. — Mas, de facto, tens razão, aquilo do ponto de vista do trabalho seria dispensável, mas não achas que os donos da empresa ficam mais bem vistos se disserem que oferecem um miminho aos trabalhadores?
R.C. — E deve ser para a consciência deles, também.

Vamos lá então deixar de falar de trabalho. Conheci-vos n’Os Justos, ainda no Teatro da Cornucópia. Queria-vos pedir que falassem um bocadinho desse tempo e da importância dessa companhia para vocês, tendo em conta que aquele espaço é agora ocupado por outras pessoas.
G.G.
— Para nós tem uma importância gigantesca. A vários níveis, por um lado dá-nos uma espécie de mapa para isto de fazer teatro, não quer dizer que seja um mapa que uma pessoa siga à risca, mas sabes que há esta referência, até coisas que nós não vimos, os livros e as peças gravadas. Contactámos com uma maneira de fazer teatro muito entusiasmante, com uma relação ética com o teatro muito entusiasmante, com uma forma de organização que se baseava no afeto e no respeito mútuo e no respeito por aquilo que se está a fazer. Foram fundamentais nesse nosso primeiro projeto em particular porque nos acolheram e nos deram todo o apoio possível de imaginar, desde contactos com a imprensa… se pensares bem, nós, Teatro da Cidade, e tu, fomos apresentados pela Cornucópia. Deram-nos todo o apoio possível. Saber que aquilo existiu e que se fez teatro daquela maneira é muito importante, não só para o Teatro da Cidade, como para todas as pessoas que estão a fazer e a ver teatro em Portugal.

R.C. — É isto que o Guilherme disse, sem dúvida. Aquilo é a idealização de uma companhia. E tenho mesmo muitas saudades de viver aquilo.

Isto é o meu momento Daniel Oliveira, não sei se perceberam.
J.R.
— É, já reparei. Se me perguntares uma memória feliz, a Cornucópia é uma memória feliz. Sinto-me privilegiado. O primeiro espectáculo que vi da Cornucópia devia ter uns 14 ou 15 anos, vinha do Bombarral ao teatro a Lisboa porque tinha dois professores que faziam essa incrível iniciativa. O espectáculo que vi foi o Don Carlos, Infante de Espanha, lembro-me do cenário ser quadriculado, lembro-me do Duarte Guimarães, do Nuno Lopes, do Luís Miguel e lembro-me que o cenário tinha duas bolas referenciais que a Cristina Reis pôs no chão. E, mais tarde, quando entrei no Conservatório sonhei com a possibilidade de trabalhar com essas pessoas e isso concretizou-se. Um dia estava a partilhar esta história com a Cristina, ela desaparece e quando volta tinha as duas bolas, e eu não chorei porque não tinha lágrimas para chorar, mas naquele momento o tempo parou.
G.G. — Conheci a Cornucópia muito tarde, só quando vim para o Conservatório. O primeiro espectáculo que vi marcou-me muito, isto é que é teatro, pensei eu, foi A Varanda. Isto coincidiu que nós, por iniciativa própria, andávamos a pintar uma sala do Conservatório. Eu andava a sonhar com esta malta toda e um dia tive um sonho em que nós estávamos assim numa espécie de U e estava o Luís Miguel a falar para nós e era a nossa turma.
R.C. — Mas sabes que isso aconteceu, mais tarde, não sabes?
G.G. — Eu sei, foi uma coisa meio premonitória. Estávamos lá, e o Luís Miguel está a dizer “Foi bom estarmos juntos, gostei muito de estar convosco e queria-vos dizer que gostava de chamar um de vocês para a minha companhia, é a Nídia”. Eu nunca vos contei isto?
N.R. — Não, Guilherme, nunca.

Esta entrevista, como estão a ver, vai ficar na história.
G.G.
— Mas deixem-me continuar. No sonho, lembro-me de ficar feliz pela Nídia e ia ter com o Luís Miguel e dizia-lhe: “Luís Miguel, obrigado por tudo, foi fantástico e é fantástico que tenha chamado a Nídia e sabe, eu, também gosto muito de dizer poesia, tenho um canal de poesia no YouTube, chama-se Dizedor”. E o Luís Miguel dizia assim: “Ah sim, já vi, não gosto”.

Contaste-lhe isso?
G.G.
— Contei, contei. E ele riu-se e disse: “Então eu dizia-te lá uma coisa dessas”.

Ainda sobre esse tempo. Vocês fazem Os Justos, do Camus, e depois deixam-se de repertório. Porquê?
N.R.
— Mas vamos voltar.
R.C. — Nós temos vivido na onda do que nos apetece fazer. Começámos com esse texto porque foi uma sugestão do Luís Lima Barreto, andávamos a ver o que fazer e quando lemos fez todo o sentido. Depois disso foi: e se nos atirássemos para uma coisa do zero? Mas foi mesmo por entusiasmo desse desafio de partir do zero e fizemos o Topografia.

Em relação a isso vocês mantém-se igual. Quando vos conheci, em 2016, perguntava-vos como é que iam fazer, se encenavam à vez ou assim e vocês disseram que se ia vendo. Nisso está tudo igual.
R.C.
— É verdade. Mas agora, de vez em quando, já alguém diz: “epá, tenho saudades de fazer alguma coisa com um texto já”.

Ao mesmo tempo: há uma importância de criar dramaturgia original, não?
N.R.
— Isso claro e acho que o texto continua a ser a nossa principal ferramenta de trabalho.
G.G. — Não sei se nós, enquanto grupo, pensámos muito nessa importância de estar a criar texto agora.
R.C. — Eu também acho que não, foi mais a ideia de criação de cena. Mas sim, o original, queríamos passar por isso.
B.S. — Quando somos nós a escrever o risco é maior, é uma exposição. Essa adrenalina está presente, sem dúvida.
J.R. — É verdade. Para este espectáculo fizemos uma residência no Espaço Alkantara e eu só perguntava: “Onde é que isto vai acabar?”. E agora quando vejo este cenário fico fascinado, ou seja, como se eu não fosse também responsável por aquilo que estou a ver.

Vocês são uma companhia apreciada, têm tido algumas oportunidades. Esta é a segunda vez que passam pelo Teatro Nacional D. Maria II, já foram ao Festival de Teatro de Almada. O que é que acham que as pessoas veem em vocês?
J.R.
— Acho que é uma pergunta que tens que fazer às pessoas.

Muito bem, mas já que aqui estamos…
N.R.
— Acho que se as pessoas virem em nós aquilo que nós conseguimos ver em nós próprios já não é mau. Independentemente dos projetos que vamos tendo há uma ideia de consistência no Teatro da Cidade, ou seja, somos rigorosos com o nosso trabalho, queremos realmente construir um trabalho sério e aprofundado sobre o que estamos a fazer. E acho que conseguimos transmitir as nossas urgências.
G.G. — É difícil saber o que as pessoas veem em nós. Mas talvez as pessoas simpatizem com quem anda, de facto, à procura de alguma coisa. Nós estamos à procura.
B.S. — Estou sempre a tentar fazer o melhor espectáculo da minha vida. Seja o que for tenho sempre esta esperança, sabendo que é difícil lá chegar. E nunca sei se é efetivamente.
G.G. — E é uma grande tragédia: nunca conseguiste. Estou a brincar, Bernardo.

Se vocês fossem uma banda porque é que se separariam?
G.G.
— Esta minha má onda para o Bernardo, talvez.
R.C. — Epá, se encontrasse melhor companhia, ou uma banda melhor. Estou a brincar.
G.G. — Acho que não chegávamos sequer a existir, o que é que cada um toca?
N.R. — Ó Miguel, porque é que não fizeste esta pergunta mas em vez de uma banda éramos uma companhia?
G.G. — Isso ia ser demasiado real, íamos sair daqui hoje cada um para o seu lado.

Uma banda separa-se muito mais rapidamente que uma companhia, percebem isso?
R.C.
— Claro, tens razão.
G.G. — Talvez na música seja um bocadinho mais evidente os elementos sedutores, por exemplo, há muito mais gente atrás de músicos do que de atores.
N.R. — Opá, mas eles passam muito mais tempo em digressão. E passam muito mais tempo juntos, por isso é que se calhar se separam muito mais rápido.
R.C. — Acho que aquilo que o Reixa disse é uma ótima resposta: “A mim agora é mais o metal”. Se um dia deixar de fazer sentido esta união e começar a fazer sentido outras coisas, se for assim é o caminho certo, acima de tudo devemos ser fiéis ao que estamos a sentir.