Depois de há um mês ter chegado às livrarias a tradução da biografia de Leonard Cohen escrita por Sylvie Simmons, esta semana haverá mais duas novidades para os admiradores do profeta canadiano. Sexta-feira, 22, será lançado o seu primeiro álbum póstumo, Thanks for the Dance; sábado, 23, o festival de cinema Porto/Post/Doc estreará em Portugal o documentário de Nick Broomfield, “Marianne & Leonard: Words of Love”, acerca da relação amorosa intermitente que Cohen teve com Marianne Ihlen durante os anos sessenta.

Com um olho no mais recente single de Cohen, “Happens to the Heart”, é quase inevitável regressar ao mito à volta de Marianne e da relação que teve com Cohen em Hidra, uma relação sempre descrita como fundamental para a compreensão da obra coheniana, ou não tivesse Marianne sido a musa de “So Long, Marianne”. Daí que se tenham escrito livros e que se tenham realizado documentários sobre o casal, à boleia de uma certa romantização que as aventuras amorosas dos artistas sempre nos inspiram.

É incontroversa a pertinência de sabermos mais sobre aquilo que nos interessa e, desse ponto de vista, ver mais imagens de arquivo de Cohen, ouvir mais pessoas que conviveram com ele e conhecer melhor a relação amorosa mais duradoura e, decerto, uma das mais marcantes que Cohen teve ao longo da sua vida tem sempre vantagens consideráveis. No entanto, olhando mais atentamente percebemos que estas aventuras românticas, se as mudarmos de uma ilha paradisíaca grega para as Avenidas Novas, se substituirmos as personagens e se lhes retirarmos o prestígio e o glamour a que associamos os artistas que mais admiramos, acontecem regularmente à nossa volta.

[o trailer de “Marianne & Leonard: Words of Love”]

Se conseguirmos silenciar a histeria de alguns dos intervenientes do documentário, percebemos que a história é a de um exilado que encontra no seu exílio uma mulher atraente com quem se envolve e de quem sistematicamente foge. Mais do que em “So Long, Marianne”, é em “Happens to the Heart” que Cohen parece conseguir resumir melhor isto mesmo quando diz:

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“There’s a mist of summer kisses
Where I tried to double park”

Cohen parece sentir-se confortável apenas em relações contraditórias que nunca consegue compreender bem, das quais foge e às quais regressa. Relações envoltas em brumas, mas brumas feitas de beijos de verão, relações em que não se deixa envolver completamente, ficando apenas estacionado em segunda fila, parado em quatro piscas, prestes a voltar à estrada antes que seja bloqueado.

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É bastante problemática a relação que se presume sempre existir entre o que acontece na vida de um artista e os frutos que isso gera. Ao vermos uma correspondência perfeita entre o título de uma canção famosa e uma mulher com quem o autor dessa canção esteve envolvido, assumimos imediatamente que conhecer a última é perceber a primeira e, de chave em punho, com a serenidade de um morador a chegar a casa depois de um longo dia de trabalho, preparamo-nos para abrir a porta de “So Long, Marianne”. Mas o trinco não roda. Porque “So Long, Marianne” só num sentido trivial e desinteressante é sobre Marianne Ihlen ou sobre Hidra tal como Dom Quixote só num sentido trivial e desinteressante é sobre como vencer guerras contra temíveis moinhos de vento. Cohen, aliás, é bastante explícito neste aspeto quando perto do fim da canção diz “I’ve seen you went and changed your name”, tornando claro que só circunstancialmente Marianne Ihlen foi a Marianne de “So Long, Marianne”, uma vez que ainda antes da canção acabar já Marianne se transformou numa outra mulher.

[“Happens to the Heart”:]

Mais do que sobre uma ilha, uma mulher ou outra coisa qualquer, as canções de Cohen são sobre não sabermos, sobre uma indefinição constitutiva de nós mesmos que não desaparece nem por nada. São sobre a hesitação entre amar e chorar, uma hesitação que se manifesta no refrão de “So Long, Marianne”, ou de forma ainda mais reveladora na indecisão que Cohen sentiu entre fazer da música uma despedida ou um apelo, não sabendo bem, segundo o documentário, se seria mais adequado cantar “So Long, Marianne” ou “Come On, Marianne”.

Novamente, Cohen capta em “Happens to the Heart” de forma extraordinária esta hesitação, esta dúvida que premeia toda a sua obra (o que não é de espantar, uma vez que os últimos álbuns de estúdio, particularmente Old Ideas e You Want it Darker, são discutivelmente os seus melhores) ao cantar:

“In the prison of the gifted
I was friendly with the guards
So I never had to witness
What happens in the heart”

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Cohen parece aqui afirmar-se um prisioneiro privilegiado da arte, que beneficia do favor dos seus carcereiros e assim é poupado a testemunhar o que verdadeiramente o move, ficando perpetuamente exilado do mundo e de si mesmo, fazendo hinos não à luz, mas à escuridão que lhe permite apenas entrever vagas sombras do que o rodeia. Mais do que canções sobre loiras norueguesas em ilhas gregas, Cohen está interessado em escreve hinos à pequena fagulha que vai conseguindo acender no meio da escuridão, ou, como canta no seu novo single:

“I got my shit together
Meeting Christ and reading Marx

It failed my little fire
But it’s bright the dying spark”

O interesse de documentários como o de Nick Broomfield está, por tudo isto, menos em conhecer a história do romance de Leonard e Marianne e mais no sobressalto que causa em nós a gigantesca diferença entre a relativa banalidade da vida e das paixões de Cohen e o assombroso fruto que deles se gerou. So Long, Leonard.

Leonard Cohen, o homem de ninguém

joaopvala@gmail.com