Galvão Bueno, Casagrande, Jorginho. Se numa mesa de um restaurante da Costa do Sauípe estivessem dois antigos internacionais da seleção e um jornalista conhecido, provavelmente a imagem que temos por cá é que seriam os ex-atletas a receber todas as atenções. Ali, na antecâmara do sorteio da fase de grupos do Mundial de 2014, não foi assim – e era com Galvão Bueno que as pessoas que entravam no espaço queriam tirar fotografias e pedir também autógrafos. Uma exceção ocasional? Como nos explicariam de seguida, aquilo era a regra. E alguns comentadores e jornalistas assumem papel de estrelas e opinion makers que transformam as suas palavras em leis.

Quando chegou ao Rio de Janeiro para assinar pelo Flamengo, já depois de ter sido sondado pelo Vasco da Gama, Jorge Jesus tinha muito mais adversários pela frente do que aqueles que gosta de forma genuína de enfrentar em campo: a hostilidade dos treinadores brasileiros, as diferenças culturais e de trabalho dos jogadores, a pressão dos adeptos a pedir títulos, a opinião desconfiada de grande parte da imprensa e dos painéis de comentadores das principais estações televisivas. Quatro meses depois, todos se renderam a um fenómeno no banco de suplentes. E foi por isso que a Rádio Observador foi ouvindo ao longo da semana vários jornalistas que apontaram razões distintas para explicar o sucesso do português na antecâmara da final da Taça dos Libertadores.

“A equipa cresceu da água para o vinho, um bom Barca Velha ou Pêra Manca”

“Descendente de portugueses pela avó”, Milton Neves, carismático jornalista e comentador da Bandeirantes, fala de Jorge Jesus como o descrever: “sem papas na língua”. E entre críticas ao valor dos principais técnicos brasileiros na atualidade, sobretudo Luiz Felipe Scolari, traça mesmo um paralelismo com a influência de Otto Glória na Seleção Nacional na década de 60 para apontar o atual treinador do Flamengo… ao lugar de Tite no Brasil. Em paralelo, diz que Jesus é o único a falar português que coloca alguns canais a fazerem legendas das conferências mas que tem algo que surge sempre como o mais importante no futebol: a compreensão dos jogadores.

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Novo podcast “Eu show Jesus”. Flamengo “cresceu da água para o vinho”

“Há Jesusmania e há uma ciumeira nos treinadores locais que jamais tiveram por exemplo um técnico estrangeiro na sua seleção nacional de futebol, ao contrário de Portugal, que teve o Felipão [Luiz Felipe Scolari]. Aliás, o Felipão não entende nada de tática: é sorte, bola para a frente e muito grito. Felipão não conseguiu ganhar um Europeu dentro de casa jogando contra a Grécia e já tinha perdido com eles na abertura…”, começou por dizer na Rádio Observador, antes de traçar mais paralelismos entre a realidade brasileira e a portuguesa.

“Tenho 50 anos de carreira e confesso que não conhecia a trajetória de Jorge Jesus. Foi uma aposta do Flamengo, uma das mais felizes de todos os tempos. O Flamengo hoje tem muito dinheiro mas não acertava em nenhum treinador. A equipa cresceu da água para o vinho, para um bom vinho português, um Barca Velha, um Pêra Manca. O Zico, que é o Pelé do Flamengo, veio do Japão, chegou de férias e foi lá cumprimentar, a agradecer a Jorge Jesus. É um grande sucesso. É quase uma troca. O Otto Glória era para ter ganho o Mundial de 1966, fez por Portugal com a equipa do Eusébio, Simões, Torres ou Coluna aquilo que ele [Jesus] pode fazer e por isso defendo a entrada dele como selecionador nacional do Brasil pela primeira vez”, referiu.

“Chegou aqui com o nome de mister e alterna a educação com a dureza. Quando precisa de ser austero é, quando é preciso ser doce é, como um pastel de Belém. Só duas vezes a torcida gritou um nome: Zico, agora é o mister. O seu português é paradoxal, quando dá entrevistas torna-se complicado porque é enrolado, é a única pessoa que fala em português e que a TV mete legenda. mas quem tem de entender são os jogadores e eles adoram o mister. Temos bons treinadores aqui, como o Vanderlei Luxemburgo, que passou pela seleção e pelo Real Madrid, mas ele cria muitos problemas, não tem a classe e a categoria do mister. O Felipão é o pior técnico tático, entende tanto como eu de hebraico. Ganhou o Campeonato do Mundo e são os jogadores que dizem isso…”, concluiu.

“Percebeu que podia provocar um choque cultural no futebol brasileiro”

Para Carlos Eduardo Mansur, jornalista da Globo, o sucesso de Jorge Jesus também está ligado com algumas das contratações cirúrgicas feitas pelo Flamengo depois da sua chegada mas existe um ponto que, não sendo “segredo”, funciona como chave para o crescimento sustentado da equipa no Campeonato e na Libertadores: a parte da tática e a adaptação dessa vertente mais europeia a uma realidade tão diferente como a brasileira.

Jorge Jesus transformou o Flamengo no “melhor time do momento”

“Tem muito conhecimento de futebol, é essa a grande impressão: muito conhecimento tático e capacidade de implementar muito rapidamente isso porque houve a transformação de um conjunto com jogadores de relevo numa equipa que é a melhor do momento. Recebeu alguns jogadores como o Rafinha e o Filipe Luís, de categoria internacional, ou o Pablo Marí, que permitem que a linha defensiva jogue mais adiantada, com uma marcação mais alta, algo muito mais comum na Europa do que no Brasil. É também uma equipa mais compacta, que pressiona alto e com agressividade, e uma equipa mais vertical, que chega na frente com poucos passes quando antigamente era muito horizontal, com muitas passes mas pouca agressividade”, analisou.

“Jorge Jesus percebeu que podia causar um choque cultural. O futebol brasileiro evoluiu muito taticamente mas ainda há muitos espaços e o Flamengo consegue sufocar o adversário, coloca grandes dificuldades. O Gabigol? Durante muito tempo houve a ditadura de um sistema com dois extremos e um só avançado, e muitos jogadores tinham de escolher o que eram perante a grande quantidade de opções. O Romário e o Bebeto, por exemplo, não podiam ficar presos nos defesas. Gabigol é um desses jogadores porque agora tem liberdade, ora mais ao lado, ora a vir mais atrás, ora a fazer diagonais. Já foi goleador pelo Santos mas o nível de atuação subiu demasiado em dupla com o Bruno Henrique porque contribui muito para o jogo da equipa”, explicou depois antes de comentar também a “desconfiança” inicial que houve quando o treinador português chegou ao Brasil.

“É difícil generalizar a imprensa… Houve setores da imprensa que tiveram mesmo posicionamentos deselegantes, menosprezando os feitos em Portugal por exemplo. Há uma disparidade de forças no Campeonato mas não é usual montar equipas como na melhor fase do Benfica, que foi a duas finais da Liga Europa. Foi um erro de avaliação. O Brasol precisou aprender com a chegada de Jesus e do Sampaoli ao Santos. Estar aberto a novas ideias é bom para toda a gente. O 4-4 com o Vasco foi porque o Vanderlei Luxemburgo foi procurar outras soluções para tentar travar o trabalho do Jesus, foi isso que provocou essas mudanças”, rematou.

“Tem um estilo diferente, peculiar. A ganhar 3-0 continua a ‘xingar'”

Marcio Dolzan, jornalista gaúcho do Estadão, não esquece as dificuldades iniciais que Jorge Jesus sentiu quando chegou ao Flamengo, com resultados que mantinham os receios em relação à aposta forte do clube no treinador, mas destaca o percurso de sucesso após o desaire com o Bahia que conduziu o português a um patamar invulgar ainda para mais num “cargo” tão menosprezados pelos próprios adeptos brasileiros como o de técnico.

“Cheirinho do título mais perto graças” a Jesus

“Há uma Jesusmania, é uma adoração e os rivais estão meio incomodados com isso. Tem feito um trabalho muito bom porque, até para situar, o Flamengo tem mais de 30 milhões de torcedores, é o clube mais rico hoje mas não conseguia ganhar títulos relevantes. Só uma Taça do Brasil, alguns Cariocas mas nada relevante, não sei se pela pressão… Há poucos treinadores brasileiros a trabalhar bem a tática. Ele começou com alguma dificuldades, foi eliminado na Taça do Brasil, perdeu com o Emelec e ficou quase de fora da Libertadores, depois perdeu fora com o Bahia mas houve uma viragem a partir desse momento”, começou por contextualizar.

“Temos poucos técnicos que trabalhem bem a tática. Há o Vanderlei Luxemburgo, que gosta, o Tite também gosta mas está a passar um momento mau, o novo treinador do Internacional… Mas a verdade é que os consagrados conquistaram vitórias importantes com um modelo que já não se aplica. A seleção não ganha o Mundial desde 2002 e o futebol bem jogado está na Europa, mais virado para a tática. Jesus fez uma revolução no Flamengo. Há uma brincadeira que se começava ter com os torcedores do Flamengo, que na altura das decisões se dizia que havia o cheirinho do título mas depois nunca se confirmava. Agora, em 24 horas, pode ganhar dois. Há um cheirinho aqui também mas de culinária portuguesa”, acrescentou ainda sobre as diferenças de modelos entre o que se passa no Brasil e na Europa, antes de entrar também no próprio estilo do português.

“Jesus tem um estilo peculiar. Se a equipa está a ganhar 3-0 continua a ‘xingar’ e a discutir com os jogadores em campo. É um estilo diferente, que responde sem papas na língua e isso é uma mudança cultural. Já há adeptos que se vestem como ele, há um sósia dele nas bancadas e o Brasil nem tem o hábito de elogiar treinadores, que é um cargo bastante inglório. Ele tornou-se um ídolo aqui no Brasil, o que é bastante raro. Se conquistar a Libertadores, se disputar o Mundial de Clubes e ganhar os dois títulos sobe a um patamar muito acima de qualquer treinador aqui. Se não ganhar, vai haver um baque, frustração mas não atrapalha o seu trabalho”, concluiu.

“O grande mérito foi a adaptação rápida de um homem obstinado”

“Criou-se um mito sobre a minha opinião e até sobre o futebol português… Admito que escolhi mal as palavras, até porque sou narrador de futebol e não comentador. Foi infeliz, gerou-se um tumulto grande mas hoje sou grande admirador de todo o trabalho que Jorge Jesus está a fazer”, explicou na Rádio Observador Marcos Vargas, um dos jornalistas que ficou conhecido por ter feito comentários menos abonatórios sobre o técnico português.

Um dos segredos do sucesso de Jorge Jesus

“Na verdade, tinha receio sobre a sua adaptação rápida a quem não está habituado a uma realidade tão diferente da que existe na Europa. A evolução mental do futebol, além da parte técnica, está muito acima do padrão brasileiro. Não contava com uma capacidade tão grande de um profissional que está a superar desafios. Conhecendo mais de perto, percebendo quem é, passei a admirá-lo porque entendi mais o homem, a personagem e fico até admirado com um homem como estes no Flamengo”, destaca sobre as renitências que levantava inicialmente.

“A parte tática ou os dias de treino, é diferente na Europa ou no Brasil. Aqui um profissional tem de chegar e perceber de forma muito rápida como funciona tudo, como é a própria questão política dentro dos clubes, como é também a cabeça dos jogadores. Quando fiz aquela crítica, que me arrependo das palavras que utilizei, era também uma crítica à forma como funciona a Liga portuguesa, com três gigantes e o resto dos clubes na periferia”, prosseguiu, antes de explicar os méritos do treinador português para o momento que o Flamengo atravessa.

“Não é normal haver algo assim no dia a dia. Numa equipa como o Flamengo, que tem mais adeptos do que muitos países têm de população, Jorge Jesus virou uma coqueluche. Jesus virou super star e isso é o reflexo do trabalho bem executado de um clube que investiu muito dinheiro para fazer este plantel e que conseguiu ter resultados de forma muito rápida. Esse foi o seu grande mérito, uma adaptação rápida de um homem obstinado, que trabalha muito e não tem medo de dar a cara quando é preciso”, concluiu.