Pode parecer improvável que a melhor metáfora para o futebol que os Tottenham Hotspurs historicamente produziram pertença a John Keegan, na sua História da Guerra, mas atentem bem na página 30 da edição de bolso da Tinta da China:

“Os turcos também tinham um estilo étnico de combater: investiam de forma desordenada com uma desconsideração fanática pelas baixas”.

Quem não for demasiado novo sabe: foi assim durante muitos anos em White Hart Lane.

O espectáculo acima do resultado, a valentia acima da frieza, a loucura acima da tática, a crença antes do realismo – esta é a Spurs way, a maneira de ser dos Spurs, que são a versão inglesa do “quase”: quase eram campeões no ano em que a sorte caiu ao Leicester, quase eram campeões europeus o ano passado – e se recuarmos no tempo o quase multiplica-se época a época, ao ponto de se tornar mítica aquela tarde em que Sir Alex Ferguson (conhecido pelos seus discursos épicos e longos, a motivar os jogadores do Manchester United antes dos jogos) entrou no balneário da sua equipa antes de uma partida contra os Spurs e, sem paninhos quentes, atirou: “Boys, it’s Tottenham”, e esta foi toda a sua preleção. Como quem diz: vá lá, por amor de Deus, nem tenho de vos dizer nada, eles próprios encarregar-se-ão de se derrotar.

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Sir Alex tinha as suas razões, expressas numa estatística penosa para os azuis: durante 23 anos os Spurs não conseguiram ganhar em Old Trafford, a casa do United. Ironicamente, a malapata acabou sob o comando de André Villas-Boas: depois de uns anos sob o comando de Harry Redknapp, perito naquela abordagem corram-muito-e-chutem-à-baliza, em que os Spurs andaram num entra e sai dos lugares da Champions, André pegou na equipa na altura em que ela perdeu Modric, transformou um defesa esquerdo (Gareth Bale) num médio ofensivo imparável só para, na última jornada da época, ganhar o jogo (com um golão de Bale) e perder espectacularmente o acesso à Champions.

No ano seguinte, na época 2013/14, aconteceu o esperado: os adeptos cansaram-se de um futebol mais organizado, mais cerebral, mas menos emotivo e menos ofensivo – Bale foi vendido, com esse dinheiro veio um camião de jogadores, Villas-Boas foi despedido e os Spurs cometeram o erro de dar o cargo de treinador a Tim Sheerwood, que rapidamente tratou de confundir emoção com futebol medieval e reduziu White Hart Lane a um campo de batatas varado por chutão e correria.

E foi assim que Mauricio Pochettino chegou aos Spurs: com os adeptos desesperados por futebol atacante e atrativo, com uma manta de retalhos em forma de plantel (como exemplificam os inúmeros jogadores comprados com o dinheiro da venda de Bale a renderem menos do que se esperava).

Os anos de Mauricio

Para quem defende que o futebol é composto de troféus, com alguns jogos no intervalo destes, Mauricio Pochettino falhou nos Spurs: não conquistou sequer uma League Cup (a taça da Liga lá do sítio) e sempre que esteve numa final perdeu sem se poder queixar. Na visão carreirista do desporto, Mauricio nada trouxe aos Spurs.

Mas para quem olha para o desporto como um caminho que espelha o que somos e o que fazemos para nos melhorar, Mauricio foi uma dádiva: devolveu o bom futebol aos Spurs, desenvolveu jogadores vindos das camadas jovens, restituiu o orgulho em usar aquela camisola, trouxe felicidade à comunidade. Hoje os Spurs não são mais uma anedota – e Mauricio acaba por ser vítima do seu sucesso.

Harry Kane tipifica o talento de Pochettino: quando o treinador argentino chegou, os Spurs lutavam para encontrar golos, uma seca personificada em avançados preguiçosos (Adebayor), toscos (Soldado) ou envelhecidos (Defoe). Pochettino apostou em Kane quando este tinha 18 anos e no final da época (e muitos golos depois) nasceu o dito de que Kane é um avançado de uma época só. Dito que se repetiu no ano seguinte; e no outro; e em mais um – até se tornar patético, tantos os golos marcados.

Mas não foram só os golos, foi o futebol: Kane é um avançado moderno, que desce para tabelar, cai nas alas para arrastar defesas, cruza, marca de tapinha, de longe, em arco, de cabeça, com o direito, com o esquerdo. Mais que Kane, era aquela frente de ataque, móvel, febril, que encantava: Pochettino pegou em Eriksen, comprado na era de Villas-Boas, e tornou-o num 10 de classe mundial, que fechava a defender e rasgava defesas com os seus passes; Dele Alli, comprado aos 19 anos ao Milton Keynes Dons por duas carcaças e um abre-latas, explodiu como médio ofensivo intenso, com radar para o golo, capaz de fechar a sua ala e surgir segundos depois na frente a encostar.

A lista de jogadores desconhecidos ou vindos das camadas jovens ou de reputação dúbia que Pochettino melhorou é imensa: Kane, Eriksen, Alli, Trippier, Dier, Danny Rose, Son e continua. Todos eles aderiram a uma filosofia: uma pressão desvairada mas organizada, em conjunto, muita mobilidade na frente; uma vez recuperada a bola chegar depressa à frente, não havendo espaço trocar a bola até o encontrar.

Nos primeiros anos os Spurs lembravam imenso este Liverpool que Klopp criou, pela pressão, pela velocidade na frente e pela capacidade em ter a bola no meio campo se fosse necessário (muito à conta do talento de Eriksen); mas também pela porosidade da defesa, tantas vezes desguarnecida.

Talvez tenha sido na época de 2015/16 que o futebol dos Spurs começou a mudar. Nesse ano todos os grandes clubes falharam e, chegado o final da época, o Leicester encontrava-se surpreendentemente em primeiro, com os Spurs por perto. Era a segunda época de Mauricio e os Spurs jogavam muito melhor futebol que o Leicester – em algum momento a equipa de Ranieri, que se limitava a contra-atacar, tinha de ceder. Mas o Leicester foi acumulando vitórias pela margem mínima e a juventude e inexperiência dos Spurs fê-los implodir e cair para terceiro lugar.

A partir daí Pochettino introduziu algum pragmatismo: médios ofensivos recuavam para acompanhar os laterais adversários, a equipa acantonava-se no seu último terço para defender resultados nos últimos minutos e aprendeu a usar bolas longas quando não conseguia sair a jogar. E em 2016/17 os Spurs ficaram em 2º; o problema é que ficaram atrás de um super City do super Guardiola que agora dispunha de uma super conta bancária para montar uma super equipa.

A chegada à final da Champions, o ano passado, escondeu o facto de na segunda metade da época a equipa ter começado a cair, em termos de futebol jogado – uma penúria que se estendeu não só aos resultados deste ano como à qualidade de jogo apresentado. Não é uma má fase, apenas: são vinte jogos consecutivos para a Premier League com resultados ao nível das equipas que caem de divisão.

Como é que foi possível uma queda tão grande, para mais depois de uma final da Champions? Pochettino tinha vindo a avisar desde há dois anos que o clube tinha resultados acima do esperado para o que paga – os Spurs são 6.ºs em termos de gastos salariais e, no balanço de cinco anos e meio de transferências, são o 17.º clube inglês.

Na pior derrota desta época, um 0-3 contra o Brighton, nove dos onze titulares estavam no clube quando Mauricio chegou. Essa equipa é, esta época, a 18.ª que menos piques faz após a perda de bola – quando nos quatro primeiros anos de Pochettino era sempre das quatro que mais piques fazia. Em gíria de futebol isto significa que os jogadores deixaram de correr por Mauricio.

É a natureza humana: pega-se num grupo de garotos e jogadores com muito a provar, convence-se os miúdos de que eles são melhores do que pensam desde que joguem em equipa e eles deixam a pele em campo. Mas depois esses mesmos jogadores aburguesam-se. E é mais fácil sair e ganhar títulos num clube que já é grande do que continuar a construir a ascensão de um clube histórico mas que nunca ganha.

Nos últimos seis meses, o plantel dos Spurs transformou-se numa mescla de insatisfeitos, entre jogadores que estagnaram (Dier, Alli); jogadores de classe mundial e com muito mercado que entraram na última época do contrato e se recusam a assinar novo (Alderweireld, Vertonghen, Eriksen); e jogadores só bons mas com mercado que querem sair para ganhar mais dinheiro (Rose).

Para renovar uma equipa é preciso dinheiro – e é nesta parte da história que entra Daniel Levy, o CEO dos Spurs e um espantoso gestor que, como todos os gestores, tem mais dificuldade em entender o que é um clube: Levy aperta há anos os cordões à bolsa (é por isso que lhe pagam milhões) e preferiu criar um estádio novo a renovar a equipa. Este ano recusou vender Alderweireld, Vertonghen, Eriksen porque as propostas eram abaixo do que ele estipulara. E com isto criou-se um grupo de jogadores financeiramente insatisfeitos, que não acreditam que irão alcançar troféus.

E assim se chega ao momento em que o mais romântico dos clubes proletários ingleses despede o melhor treinador do último meio século e contrata um serial winner que na última década tem sido poucas vezes winner.

A era Mou?

Há uma teoria, no futebol inglês, de que os melhores treinadores têm cerca de dez anos de era dourada antes de o futebol mudar e os ultrapassar – o que justificaria, por exemplo, que Mourinho tivesse conseguido os melhores resultados no início da carreira. Há quem diga que é sempre assim – que desde cientistas que venceram prémios Nobel a pintores se é mais criativo ao início e depois se gere o sucesso. Malcolm Gladwell discorda: pode ter sido assim com Picasso, mas não foi assim com Cézanne, que só encontrou sucesso mais tarde. Os inovadores acreditam em si desde garotos mas algumas pessoas, argumenta Gladwell, precisam de mais tempo.

O que significa que o Picasso interno de Mourinho precisa de se transformar em Cézanne: parar, olhar em volta, ver como o futebol mudou, em que aspetos errou e o que precisa de mudar para voltar ao topo do jogo.

Quando Mourinho começou a treinar, as suas equipas pareciam pragas de gafanhotos, tão chatas que eram com a pressão – Mourinho, e poucas vezes se fala nisto, foi o grande teórico da pressão, que aliás é o tema da sua tese de licenciatura; fast-forward até ao seu Manchester United e os seus reds defendiam cá atrás, sem piques na direção do portador da bola. O que é que aconteceu?

Nos mentideros diz-se que quando o Barcelona rejeitou Mourinho em favor de Guardiola, Mou dirigiu o seu futebol na direção oposta da de Pep: se as equipas de Pep tinham bola no pé, Mou apostou no contra-ataque; se as equipas de Pep se atiravam à área adversária, as de Mou acantonavam-se à procura do erro adversário. Mas é impossível saber se isso é verdade ou apenas um mito do futebol.

Uma coisa é mais que certa: hoje qualquer equipa de fundo da tabela sabe recuar linhas, fechar-se lá atrás e roubar o espaço que os artistas adoram. Hoje – como a carreira de Ozil no Arsenal mostra – já não basta ter um 10 com bom passe para resolver jogos fechados. Se algum mérito Klopp tem foi o de mudar o futebol do Liverpool no sentido de desmontar as equipas que se fecham lá atrás.

Foi isso que faltou ao Chelsea de Mou na sua última época e meia lá, e foi isso que faltou ao Manchester United de Mou, se bem que neste caso há claramente defeitos graves na construção do plantel. Havia outro problema: diz-se que Mou, que cresceu numa época em que ser futebolista era uma forma de fugir à fome, tem dificuldade em relacionar-se com os jogadores de hoje, que na adolescência já têm um milhão de euros na conta e vão para o balneário com smartphones e auscultadores na cabeça.

Nos Spurs, Mou encontrará um plantel ligeiramente mais humilde (e que, pelo menos, não tem nenhum Pogba); mas não é exatamente claro que ele pretenda praticar o futebol que os adeptos dos Spurs adoram e que, sucintamente, foi o futebol que a equipa praticou nos primeiros quatro anos da era Poch.

Antes de mais, Mou terá de remendar uma defesa que de há seis meses para cá parece mais porosa uma camisa de seda em noite de tempestade; mas também terá de fazer aquela rapaziada voltar a pressionar, a correr por si e pelos adeptos. Na Spurs way não há muito lugar a 11 milionários a defender o pontinho – é tudo ou nada, sangue na guelra e o alucinado aroma do romance.

Ou pelo menos era assim antes dos clubes se tornarem empresas. Porque quando Levy contrata Mou aquilo que está a pedir é títulos. Talvez não a Premier, mas o acesso à Champions dos milhões em direitos televisivos e uma taça – tirando a League Cup de 2008 (a que poucos dão importância), a última vez que os Spurs ganharam alguma coisa foi a taça de Inglaterra em 1990/91.

Pedir mais que isto aos Spurs, pedir a Premier, é demagógico – o clube simplesmente não tem o dinheiro para competir com um clube-nação (o City) e com um gigante abonado (Liverpool). Era bonito que Mou embuísse os Spurs do espírito vencedor que os levasse a conquistar (por exemplo) uma Taça de Inglaterra – mas também era bonito que os Spurs devolvessem a Mou o seu gosto pelo futebol de ataque, que víamos no Porto ou na sua primeira passagem pelo Chelsea.