Sónia e Paulo moraram mais de 10 anos em ruas de Lisboa, mas hoje vivem em casas do projeto “Housing First”, que atribui habitações a sem-abrigo de longa duração, enquanto os ajuda a recuperar as suas vidas.

Atualmente, existem mais de 80 casas em Lisboa destinadas a este programa, mas a Câmara Municipal, que apoia o projeto, aprovou este mês a cedência de mais 100.

A primeira vez que uma equipa de apoio a sem-abrigo chegou ao pé de Sónia e lhe disse que tinha uma casa para ela, a mulher, a viver há 10 anos numa rua junto ao Bairro Alto, não acreditou.

“Sei lá, às vezes podia aparecer um maluco qualquer, não é?”, disse.

Mas não foi o caso e há nove anos que tem uma casa só para si, com o acompanhamento da AEIPS — Associação para o Estudo e Integração Psicossocial, que desenvolve aquele projeto desde 2009.

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As casas estão dispersas pela cidade, são individuais, em bairros onde existem serviços, comércio, transportes e onde seja mais fácil as pessoas estabelecerem relações de vizinhança.

Inês Almas, a técnica que acompanha Sónia, revela que a associação apoia 50 pessoas em situação de doença mental, que saíram das ruas para uma casa e que estão a ser acompanhadas, no processo de integração, a aceder a coisas tão básicas como ter documentos.

A integração da pessoa “passa por conhecer tudo o que a envolve”, de forma individualizada, como avaliar “se para ela é fácil abrir e fechar a porta”, usar eletrodomésticos, fazer compras, escolher produtos, confecionar refeições, utilizar e gerir dinheiro, explicou.

“Obviamente que as necessidades vão sendo diferentes à medida que o tempo vai passando”, disse.

Aos 10 anos, após a morte da mãe, Sónia foi entregue pelas autoridades ao progenitor, que considerava um estranho, mas a vida com a nova família foi de fome, espancamentos, abusos e abandono.

“Quando a minha mãe faleceu, souberam, o Estado, vir ter comigo para eu ir viver com o tal [o pai], mas nunca foram à minha procura, saber se eu ainda continuava na casa de meu pai, se estava tudo bem comigo. (…) Nunca ninguém procurou por mim. Vivi abandonada até aos 28 anos. Foi esta equipa que me deu abrigo, porque, senão, ainda lá estaria”, disse.

Sónia Varela, nascida no Hospital de São Francisco Xavier há 36 anos, foi “posta na rua” quando tinha apenas 13, vinha ela cansada de “um dia de trabalho” nas limpezas. Nessa noite, dormiu numa paragem de autocarro “atrás da ‘Triunfo'”, em Algés.

Hoje, considera “uma bênção de Deus” ter sido expulsa da casa paterna, porque “aquele homem ainda a matava”, e salienta que, na zona do Bairro Alto, para onde foi a duas semanas dos 18 anos, “passava todo o tipo de gente de madrugada”, mas, ao contrário do que acontecia em casa, “nunca levou um pontapé”.

A adaptação a viver de novo numa casa é que “foi mais complicada”.

“Os olhos, nos primeiros dias, não queriam abrir, (…) não tinha muita mobilidade, não me conseguia movimentar como deve ser porque fiquei quente. Aquilo que eu vivia, o frio do inverno, os ventos… [e depois] dormir agasalhada durante uma semana, duas… É diferente. Hoje é diferente. Para quem não conhece, é difícil explicar”, contou.

Junto à janela da sua casa, que, apesar do dia rigoroso, mantém aberta para um pátio, explica que agora faz uma vida normal, como qualquer outra pessoa e até gostava de fazer muito mais, mas não tem habilitações para nada, a não ser “fazer umas limpezas”, mas tem “o corpo acabado”, quase não consegue andar.

A 15 minutos de carro dali, Luís Paulo Neves, 54 anos, 14 deles na rua, mostra, orgulhoso, a casa onde mora há três anos.

Trabalhou “como qualquer outra pessoa”, foi chefe de família, “e depois lá veio o mundo da rua, os vícios, os consumos e a solidão”, as doenças, o afastamento “de tudo e de todos”, o dia a dia “sem interesse por nada”.

“Há certas situações que eu também não gosto de mencionar, mas foi muito difícil. Nos últimos quatro anos é que eu tive um bocado de luz ao fundo do túnel”, afirmou.

Quando a Associação Crescer, que acompanha 36 pessoas, lhe disse que tinham uma casa para lhe atribuir, “andava sempre a perguntar, para saber se já estava pronta”.

“Gostei muito logo à primeira vista da casa, da vista dela, de tudo o que ela representa. Gostei imenso. Já me deram a oportunidade de querer ir para outra casa, mudar de sítio, mas eu não quero. Aqui estou bem, dou-me bem com a vizinhança”, sublinhou.

Hoje tenta “reconstruir tudo o que tinha perdido”, mas “as coisas levam o seu tempo”: tratar de documentação, da saúde, do cuidado com a sua casa e com o Nazareno, o canário cantor que lhe faz companhia.

Depois de instalada, a primeira coisa que a equipa faz com a pessoa é inscrevê-la no Centro de Saúde e pedir à Junta de Freguesia os mesmos apoios de qualquer caso de pobreza, explica Américo Nave, diretor executivo da associação, salientando que o programa é sobretudo para as pessoas com maior vulnerabilidade, numa situação “mais complexa”, que são integradas na comunidade, “em casas onde não há qualquer identificação”, o que “reduz imenso o estigma” e “conta muito para a recuperação”.

“É um mito que as pessoas não querem sair da rua, é um mito que estas pessoas são preguiçosas e não querem trabalhar e é um mito que todas estas pessoas tem um problema de saúde mental. Eu até acho que é dar um pontapé na cabeça a alguém que acabou de cair. Porque alguém que ficou sem casa, ficou sem emprego e veio parar à rua, ainda por cima leva logo com o estigma de que é maluco e tem um problema de saúde mental”, considerou.

O sucesso do programa “é que 90% não voltem à situação de sem-abrigo”, não é medido pela taxa de empregabilidade, até porque a maior parte já não consegue ou não tem idade para entrar no mercado de trabalho.

Luís Paulo Neves, que foi pintor de casas, é o exemplo disso. Agora não consegue fazer esforços, nem “correr para apanhar um autocarro”, diz, enquanto se encosta ao balcão da cozinha, ao lado da bicicleta com os pneus “em baixo”, à espera de melhores dias.