Filha de professores sabe nadar, pelas circunstâncias do calendário. Vê-se forçada a surfar esse querido mês de agosto na companhia dos pais porque é um mês de férias obrigatório. Para Maria Reis – que com a irmã Júlia forma a dupla rock’n’roll Pega Monstro, um dos melhores conjuntos de música portuguesa dos últimos anos, parte do catálogo da Cafetra – agosto foi durante muitos anos, aqueles anos em que ainda passamos férias com os pais, uma “ideia de domingo para sempre”.

Só que em 2017, já sem esse verão familiar, e depois de ter editado o Casa de Cima pelas Pega Monstro, terceiro disco da banda, Maria Reis encontrou uma espécie de vazio. Ou pelo menos aquele sentimento de pouco para fazer. “Nesse agosto decidi fazer uma cena sozinha porque tinha um gravador de cassete em casa, e pronto, achei que em vez de estar a curtir decidi ficar em casa. Não é que não desse para fazer as duas coisas, mas queria ter algum foco, não sei. É que nesta profissão, que agora acho que já consigo considerar profissão, nunca há bem férias, também nunca estamos bem a trabalhar. A ideia de agosto é um bocado esquizofrénica para um artista, aquele que não é funcionário público”, explica. Desse anti-verão resultou o primeiro material a solo, um EP de nome Maria, com cinco belos temas. Foi aí que percebeu que também gostava de estar sozinha.

Bom, mas a solidão, por muito que seja necessária, e por vezes até um lugar confortável, não pode ser eterna. Depois do EP ficou o bichinho de continuar. Fez umas datas com Panda Bear e quando voltou a casa inscreveu-se no apoio fonográfico da GDA – Gestão dos Direitos dos Artistas no último dia, com um texto meio à pressa, e uma demo que se viria a transformar em “Automático”, quinta das sete faixas que compõem o seu novíssimo e primeiro longa-duração a solo: Chove na Sala, Água nos Olhos.

[ouça o álbum de Maria Reis através do YouTube:]

Estávamos em janeiro de 2018 e Maria Reis gravava a “Automático” sem qualquer intenção de que fosse a primeira das canções de um disco por vir. “Fiz a música num dia e no dia a seguir gravei-a em estúdio, na altura ainda sem pretensões de fazer um disco. Acho que estava mesmo ressacada nesse dia, aquela música é só sobre ressaca. Normalmente, não dá para fazer nada de ressaca, é verdade, mas o embrião deve ter começado de manhã e ao fim do dia já conseguir fazer qualquer coisa”, enquadra. Ora leiam-se as primeiras quatro frases:

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“Pega no telefone e sai 
A ver se desta cama tiro o pé 
Cabeça toda arruinada 
Lavar/secar os dentes já não sei”

Acontece a todos. E não é caso único neste disco ao nível das causas comuns. Até porque parte dele parece focar um fim de relação que não acabou nada bem. A desventura amorosa, ainda que seja tema mais que recalcado, ainda que faça parte de incontáveis livros, discos, filmes, parece ser um mistério que ainda ninguém sabe bem como resolver.

Desatar a sair à noite e botar a esperança nos copos e noutros corpos que com a nossa fragilidade se possam cruzar não parece boa hipótese. Deixar que gente solidária nos dê palmadinhas nas costas idem. Deixar passar o tempo? Está bem, está. Todas essas hipóteses já cansadas parecem cair em saco furado. Chove na Sala, Água nos Olhos nem tanto: “Há uma tendência de falares sobre as tuas histórias, a tua narrativa que acaba por ser uma cena exagerada, mas na verdade quando acabas um namoro forte essa cena é real, esse exagero é uma cena que estás mesmo a sentir, é o fim do mundo. E o fim do relacionamento pode ter várias formas, na minha música não quero estar a individualizar assim tanto. Mas sim, acho que começa por aí e há depois uma espécie de resolução que deixa coisas em aberto, acho que é isso dá a magia às letras. Não é só sobre o facto em si, é ver onde é que está o mistério dentro disso”.

Diga-se ainda que Maria é a primeira a rejeitar aquela insistente teoria que diz que as pessoas escrevem/criam/fazem melhor, ou pelo menos mais, quando não estão bem: “Isso não é bem assim, porque quando estás mesmo mal nem consegues sair da cama. É outro estímulo, quando a serotonina está ali é quando tens motivação para fazer, o exercício de ir buscar as coisas más, o pós-fase de embate”, diz.

Meio embalada pelo apoio da GDA – que Maria considera “o melhor mundo”, porque afinal “tens dinheiro extra para poderes gastar em coisas que acreditas e não em jantares e assim” – e por aquele desejo de que o próximo objeto discográfico cheirasse menos a casa como o EP de arranque a solo, a artista começou a fazer canções aqui e ali, com gente diferente, por um lado para não sobrecarregar ninguém em particular nesse eventual apoio ao seu disco, por outro, porque lhe “interessava disseminar as várias colaborações”: “Não sei se foi uma cena muito desenhada, as músicas iam aparecendo e as oportunidades também. A segunda música que gravei foi a ‘Picada de Vespa’, que fazia parte numa coisa que fiz no Bar Irreal, quando o Gabriel Ferrandini e o Pedro Sousa eram os programadores e convidaram-me para fazer um concerto. Então fiz uma composição de vinte minutos da qual aproveitei duas secções. E uma dessas partes, que é a ‘Picada de Vespa’, gravei em Vigo porque fui lá tocar e um casal que me conheceu em Pontevedra disse-me: ‘porque é que não vens cá mais uns três dias e gravamos uma música?’. E pronto, a partir daí ainda cultivei mais a ideia de fazer cada música num sítio diferente”.

Fazendo um pequeno desvio geográfico, entenda-se que sim, Maria Reis é muito apreciada na Galiza: “Os galegos adoram-me, quando falo com galegos falo português normal e eles ficam ‘ah, nós também temos essa palavra em galego’. E na verdade o galego foi a primeira língua espanhola a ser escrita, eles têm muito mais que ver com um português do que um gajo de Madrid e isso vê-se na maneira de estar”.

Foi provavelmente a maneira de estar que juntou B Fachada e a turma da Cafetra – editora de gente como Sallim, Iguanas, Éme, Putas Bêbadas, Smiley Face, Moxila, Os Passos em Volta, entre tantos outros projectos independente de grande valor – e neste caso Maria. São amigos há quase uma década e portanto é natural vermos o nome de Fachada em duas das canções de Chove na Sala, Água nos Olhos: “Odeio-te” e “Lars Von Trier”. A primeira é o single e é um tema maravilhoso:

[o vídeo de “Odeio-te”:]

Existe aqui o jogo fonético entre as expressões “eu dei tudo” e “odeio-te”. Algo que se relaciona bastante com o método de trabalho de Maria Reis: “A minha maneira de fazer canções está muito relacionada com a repetição. Estou em casa e estou a repetir um riff ou estou a repetir uns acordes e a fazer uma melodia por cima, às vezes não estou a dizer nada em particular, mas às vezes saem palavras e nesse caso em específico foi um daqueles cliques que me fez pensar que estava ali a cena”, conta.

São duas músicas que se relacionam com a temática, que soa um bocado a denúncia de uma masculinidade vigente na sociedade, horrorosa, que desconsidera a mulher e não só. Maria aponta mais noutro sentido, mas tudo bem, cada um com a sua: “A ‘Lars Von Trier’ é um bocadinho mais um comentário e a ‘Odeio-te’ é uma cena mais pessoal, mas sim, acaba por ser relativa a uma ideia de monogamia que às vezes é um bocado pindérica, porque se calhar nem faz muito sentido. E de tu poderes falar de um fim de namoro ou de uma relação entre homem e mulher de uma perspectiva que seja diferente, falar de outras coisas além daquelas que já foram ditas, se calhar essas duas são parecidas nesse sentido, mas uma é mais sentido de humor e a outra é mais raiva, mais emocional”.

Olhando agora mais para a última faixa, “Lars Von Trier”, canção em que Maria Reis assume gostar do realizador dinamarquês. “Esse é o título, mas tem a ver com a tolerância ou não face a certo tipo de comportamentos, com aquela coisa de ‘separar o artista da sua arte?’. Essa problemática que acho interessante, mas que no fundo não justifica o facto de haver coisas feitas por gajos de merda, que são, de facto, fixes, ou mulheres de merda, atenção. E como é que a gente consegue lidar com isso?”.

Sobra ainda tempo para falarmos do título do álbum, que traz uma história caricata: “Em abril do ano passado começou-me a chover em casa, literalmente e em tudo aquilo que estava a acontecer na minha vida foi ‘ah ok, que irónico’, o disco já estava a mais de meio e não tinha título, pensei que podia ser uma metáfora real. Achei que era uma imagem poética que servia para resolver o problema do título. E o do teto também resolvi, estragaram-se uns livros, mas tasse bem”, afirma Maria Reis. Estragaram-se uns livros, mas ganhou-se um belo título e um belo disco. E vai-se ganhar mais. Dia 12 de Fevereiro de 2020, Chove na Sala, Água nos Olhos vai ser apresentado no Grande Auditório da Culturgest. Coisa boa.