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A Vichyssoise desta vez não foi servida a políticos, mas à jornalista Anabela Neves, repórter parlamentar durante trinta anos que saiu da SIC na última semana. No programa da Rádio Observador, Anabela Neves recordou alguns dos episódios que viveu na Assembleia da República, desde a tensão da “crise dos corredores” na fase final do cavaquismo às pequenas conquistas que os jornalistas foram conseguindo no Parlamento. Uma delas foi a transformação de um saguão em sala de imprensa.

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Anabela Neves recorda a crise dos corredores na AR

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Começando pelo “pior” momento que viveu no Parlamento, Anabela Neves recorda o contexto que existia na “parte final da segunda maioria de Cavaco Silva, em que houve grandes dificuldades no relacionamento com os jornalistas”. Nesta altura, recorda, “a SIC já existia, a TSF tinha sido criada em 1989 e o Público também, depois havia o Independente. Portanto, havia um ambiente mediático favorável a que se juntassem as forças contra aquilo que era considerada a liberdade de circulação dentro do hemiciclo”.

Em 1993, recorda a jornalista, havia “confronto agressivo entre Mário Soares e a maioria Cavaco Silva” e é então que “o presidente Barbosa de Melo decide alterar as regras de circulação”. Por essa altura os jornalistas circulavam “pelo edifício todo”. Mas o presidente da AR decidiu fazer um regulamento para impedir essa circulação “com o apoio de um dos ‘vices’ da bancada, o Pacheco Pereira, e isso desencadeia uma reação violenta dos jornalistas”. Com o novo regulamento, os jornalistas passaram a ter “barreiras que eram os funcionários e tinham de pedir aos auxiliares para chegar junto dos políticos”.

Os jornalistas avançaram então um boicote à cobertura parlamentar. Como descreve Anabela Neves: “Uma  greve de jornalistas com episódios deliciosos“. E, no braço-de-ferro contra o cavaquismo, tiveram o apoio do “resto do país”, bem como “o apoio da esquerda, das bancadas do PS e do PCP, que abrem os corredores e assim ficaram abertos os corredores da esquerda e fechados os da direita.”

O boicote dos jornalistas parlamentares dura um mês, com o apoio dos diretores de informação dos órgãos de comunicação. “Consegue-se que os diretores da altura, que não temiam ninguém, que eram homens valentes, Emídio Rangel na SIC, Vicente Jorge Silva no Público, se associem de imediato a esta luta. E só havia cobertura noticiosa do próprio boicote”, conta Anabela Neves. Do hemiciclo não se escreveu uma linha, não houve um segundo de rádio, nem um minuto de televisão: “Abriamos porta de acesso ao hemiciclo para espreitar lá para dentro e não entrávamos. Abríamos a porta e lá estavam sozinhos.”

A jornalista conta até uma das peças sobre o boicote que fez na altura: “Fomos provocar o oficial de segurança, que era um tipo muito agressivo, e isso deu uma peça. Fomos provocá-lo para tentar passar para a zona dos espelhos e deu uma peça“.

No meio de tudo isto, Anabela Neves e os restantes jornalistas são recebidos por Mário Soares, que vê ali mais uma forma de combater o cavaquismo. Entretanto, conta a jornalista, “houve uma cisão na bancada do PSD. O líder da bancada Duarte Lima põe-se contra o vice-presidente Pacheco Pereira e inicia negociações com os diretores e o boicote foi sendo levantado“.

Anabela Neves considera que este foi “um dos epifenómenos que marcou o fim do cavaquismo”, tendo havido logo a seguir “o buzinão da ponte” desgastando o governo maioritário do PSD. Este é um momento que a jornalista defende que devia ser estudado nas universidades e devia ser mais explorado.

Sobre se o episódio da escolta de Joacine Katar-Moreira tem algumas semelhanças, Anabela Neves considera-o sem relevância e acredita que “não belisca o que existe neste momento.”

Dos diretos mais difíceis que teve de fazer em 30 anos de cobertura parlamentar, elege o momento quando, durante o caso Casa Pia, “Paulo Pedroso é detido na Assembleia da República” e também “no dia em que é libertado e chega ao Parlamento”.

Sobre os presidentes da AR com quem foi mais fácil trabalhar, Anabela Neves destaca Jaime Gama e Ferro Rodrigues. Muito também por culpa de “dois grandes secretários-gerais” que apanharam esses dois mandatos: Adelina Sá Carvalho e Albino Azevedo Soares, ainda em funções.

Do tempo de Almeida Santos, Anabela Neves destaca a conquista de uma sala de imprensa maior. Antes era muito pequena, mas por intervenção de Susana Veiga Simão — arquiteta da Assembleia da República — foi possível transformar o saguão numa sala de imprensa.

Para a sobremesa da Vichyssoise (a escolha da música), Anabela Neves escolheu “Casta Diva”, de Maria Callas. E com ela uma história. A jornalista lembra uma reportagem que fez com o então primeiro-ministro, António Guterres, pelo país, e em como o governante colocou a tocar no carro Maria Callas. “Estava de noite, tudo escuro, um som brutal e eu ali a ouvir Maria Callas com o primeiro-ministro. E pensei é um dos momentos mais bonitos da minha vida”.