O que esperar do concerto de uma banda que celebra a cultura dublinense, os seus escritores, o seu calão, o seu sotaque, a sua atitude, que questiona a sua periferia artística perante arrogâncias londrinas, quando volta a casa para um concerto? O que se passou na noite de sábado em Dublin, no Vicar Street: um concertaço, sem precisar de interlúdios verbais para mimar a audiência orgulhosa. Com muitos copos de cerveja pelo ar. E um coro para entoar “Dublin City Sky”.

Dessa audiência pode dizer-se que de tudo havia. Ou que de muito. De rapaziada com t-shirts dos Idles e dos Parquet Courts a homens nos seus 50s com t-shirts dos Joy Division. Muitas Doc Martens calçadas (estão de regresso às montras). Mas não se pense que entre os espectadores só moravam tribos indie de diferentes gerações e feitios. Também foram avistadas duas ou três betinhas que podiam estar na varanda de uma danceteria, acompanhadas de um gin com gengibre e limão. Sinal de que o fenómeno apunkalhado dos Fontaines pode crescer para campeonatos mais ecléticos. Ainda vamos ver Marques Mendes aos pontapés numa pista de dança ao som disto.

A cerimónia começou com o heavy metal de “Hurricane Laughter”, a pôr quem estava na faixa entre a metade da plateia até ao palco a obrigar-se ao carnaval de encontrões de um mosh amigável. Foi de aguentar enquanto se ouvia os primeiros versos:

“I was towelled up to the waist while you were fresh from the confession
The angry streets they twisted up and billowed with the laughter
Anyway I thought to burn the rags in some kind of primal fear
And now the night is blue and red and they’re tearing down the plaster”

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[“Hurricane Laughter”:]

Alguns soldados recuaram para zonas de guerra mais seguras, outros foram para a linha da frente. No palco, Grian Chatten, de camisa, andava de um lado para o outro, ao seu estilo agitado-nervoso, que muitos comparam ao transe de Ian Curtis. Toda a gente gritou, repetidamente, no momento certo:

“And there is no connection available”

Como se fizesse da referência à quebra de comunicação entre as pessoas um statement, um protesto sem histeria, um questionamento assertivo.

Quando se começava a pensar nos balcões dos pubs e bares de todo o mundo que já não era possível emergirem bandas como os Fontaines D.C., eis que há uma miudagem que sai de garagens e estúdios para tirarem o cavalinho da chuva (o lugar-comum não é gratuito, da nova imagem da banda, inscrita no cenário, faz parte uma cabeça de cavalo cortada) às ditaduras do cinismo. É que Chatten não se limita a cirandar meio perdido pelo palco. Abana com frequência o tripé e puxa com vigor o microfone para a boca como quem quer dizer sem medo a verdade que traz no coração.

Os Fontaines D.C. no palco do Le Bataclan de Paris, em novembro

Depois veio o resto de Drogel, álbum lapidar desta agremiação de pouco riso e muito rock’n’roll no qual se pode perceber, sem evidências, uma genealogia que inclui, aqui e ali, Joy Division, Strokes, Cure e algum rockabilly. Disco no qual, por cima de um furibundo noise de guitarras, baixo e bateria, se ouve uma voz que ora debita letras como um Mark E. Smith (que possivelmente nunca ouviu os Fall) a gritar mais com braveza do que desespero ou ressentimento. “Chequeless Reckless”, que se inaugura com versalhada filosofico-política:

“A sell-out is someone who becomes a hypocrite in the name of money
An idiot is someone who lets their education do all of their thinking”

E que prossegue no mesmo boxe, na mesma cavalgada contra o estado da arte:

“A phony is someone who demands respect for the principles they effect
A dilettante is someone who can’t tell the difference between fashion and style”

(Sublinhe-se que, não por acaso, “phony” e “money” são dos vocábulos mais repetidos na lírica fontainiana).

[“Chequeless Reckless”:]

“Sha Sha Sha”, com um perfume musical a lembrar os  primeiros tempos da banda de Robert Smith, é saudada como uma das preferidas da massa. Mais, sem ser por ordem (haver ordem nesta prosa seria trair quem celebra o caos): desfilaram desabafos estéticos como “The Lotts”, “Television Screens”, “Too Real”. “Roy’s Tune” (canção que os Adorable assinariam) trouxe, pelas memórias de uma adolescência melancólica, um cabaz de brandura ao instante.

As solares “Liberty Belle” e “Boys in the Better Land” apareceram como a libertação dançante que todos ali pediam, com ou sem consciência. A segunda é, até ao momento, o hino dos Fontaines:

“You’re not alive until you start kicking
When the room is spinning and the words ain’t sticking
And the radio is all about a run away model
With a face like sin and a heart like a James Joyce novel”

Joyce não entra na festa por acaso — a banda já assumiu a valorização que faz da tradição literária do país de Joyce, Yeats, Beckett e Behan.

A curtíssima “Big” (um minuto e 45 segundos), bem ao estilo punk, foi o fecho mais do que natural dos trabalhos. Nomeia uma “pregnant city with a catholic mind”, uma infância pobre e o desejo de vencer. Pelo frenesi saltitante e pela vocalização estridente, sentiu-se na sala que muitos se identificam com a mensagem. Os primeiros dias foram pobres mas um dia ainda vão ser grandes.

Nuno Costa Santos é escritor e argumentista. Escreveu  livros como “Céu Nublado com Boas Abertas”, “Morrer é Não Ter Nada nas Mãos” e “A Mais Absurda das Religiões”. Criou uma personagem chamada melancómico, que atualmente tem espaço na grelha da Antena 3.