A nova configuração do parlamento português após eleições legislativas em 6 de outubro, com um recorde de 10 partidos e três deputados únicos, incluindo a extrema-direita populista, foi eleita acontecimento nacional do ano pelos jornalistas da agência Lusa. Já as alterações do clima e a forma de as mitigar, como a descarbonização, entraram definitivamente nas agendas políticas — 2019 fica na história como o ano da consciência climática global.

Além do reforço da votação no partido que suportou o anterior Governo minoritário socialista, o sufrágio ditou a estreia em São Bento de outros três partidos: Chega, Iniciativa Liberal e Livre, todos só com um assento parlamentar, mas obrigando a Assembleia da República a criar um grupo de trabalho para rever o regimento (regras de funcionamento), nomeadamente quanto aos tempos para intervenção em debates.

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Atualmente, o PS é o partido com o maior grupo parlamentar (108 deputados), seguindo-se PSD (79), BE (19), PCP (10), CDS-PP (cinco), PAN (quatro) e “Os Verdes” (dois). A maior quebra face à anterior legislatura foi dos democratas-cristãos, (-13 deputados), depois do PSD (-10) e, finalmente, do PCP (-05). O PS engrossou a sua bancada em 22 deputados e o PAN passou de um único deputado para um grupo parlamentar, enquanto bloquistas e ecologistas mantiveram o mesmo número de cadeiras.

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No primeiro mês e meio de trabalhos parlamentares, os protagonistas têm sido Joacine Katar Moreira (Livre), André Ventura (Chega) e João Cotrim Figueiredo (Iniciativa Liberal), todos eleitos pelo círculo de Lisboa, desde a escolha dos lugares no hemiciclo, à tolerância de tempo devido à gaguez da deputada do partido da papoila, passando por crises e disputas partidárias internas até à revisão do regimento e mesmo polémicas diretas com o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues.

A eleição do deputado único do PAN na anterior legislatura, André Silva, levara à adaptação informal do regulamento, que vigorou durante quatro anos, com o estatuto de observador na conferência de líderes e um minuto e meio de intervenção nos debates quinzenais com o primeiro-ministro, por exemplo, mas os deputados eleitos pelos partidos habitualmente com assento parlamentar consideraram, num primeiro momento, que a situação não devia prevalecer.

Dada a falta de consenso, a conferência de líderes (na qual os deputados únicos não têm assento) decidiu que Ventura, Joacine e Cotrim Figueiredo não teriam oportunidade de interpelar o Governo no primeiro debate quinzenal com o primeiro-ministro, mas a questão foi remetida por Ferro Rodrigues, com caráter de urgência para a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, e acabou revertida.

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As primeiras semanas após a tomada de posse como deputada do Livre de Joacine Moreira também não foram fáceis. Uma abstenção num voto de condenação do PCP por uma investida israelita na Faixa de Gaza fez estalar a polémica entre a tribuna e a direção do seu partido. Seguiram-se trocas de acusações e queixas de falta de comunicação e o recurso para o órgão disciplinar do partido, que optou por não sancionar a parlamentar, mas condenou as suas declarações públicas e o comportamento do seu assessor, celebrizado no primeiro dia da legislatura por ter envergado uma saia, além de ter chamado uma escolta da GNR e de afirmar que não acreditava nas notícias publicadas em Portugal.

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André Ventura, recentemente repreendido por Ferro Rodrigues por recorrer em demasia à expressão “vergonha”, também tem estado em foco, com propostas como a castração química de pedófilos. O deputado do Chega teve o seu momento mediático mais alto durante a manifestação de agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) e elementos da Guarda Nacional Republicana (GNR) em frente às escadarias do parlamento, em novembro.

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Apesar de deputados do BE, PCP e Iniciativa Liberal terem estado junto dos manifestantes, no início do protesto, na praça Marquês de Pombal, e de Telmo Correia (CDS-PP) e Inês Sousa Real (PAN) terem descido à concentração em São Bento, foi André Ventura, envergando uma camisola do movimento inorgânico Zero, quem recebeu uma grande ovação por parte dos membros das forças e serviços de segurança e agarrou a oportunidade com um discurso amplificado pelo sistema de som da organização, contra os sindicatos tradicionais, inclusive.

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Já na Iniciativa Liberal, poucos dias depois do início da legislatura, o seu presidente, Carlos Guimarães Pinto, abandonou o cargo, dando lugar a um vazio que ficou preenchido há duas semanas, com a eleição do deputado – e único candidato -, Cotrim Figueiredo, como novo líder do partido.

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O ano da consciência climática

A emergência climática foi votada pelos jornalistas da Lusa como o acontecimento internacional de 2019, que sozinho obteve mais votos do que a soma dos votos de todos os outros acontecimentos da lista: os protestos em Hong Kong, a contestação social à escala global, o “Brexit” e a guerra comercial EUA-China.

O resultado espelha o que caracterizou 2019, o ano em que mais do que discursos ou posições políticas os habitantes do planeta tomaram consciência da necessidade de cuidar da sua casa.

Foi o ano em que se constituíram mais grupos de defesa do ambiente, em que se fizeram mais greves e mais manifestações, em que o Parlamento Europeu declarou a “emergência climática” que a opinião pública começou a interiorizar.

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O aumento dos protestos ao longo do ano coincidiu também com o aumento dos estudos científicos e dos alertas para a crise climática, com as vagas de calor e as tempestades violentas a parecerem dar razão aos avisos dos cientistas. Ao lado destes, a pedir que os oiçam, sobressaiu a voz de uma menina sueca de 16 anos, Greta Thunberg, que perguntou na ONU aos líderes do mundo: “Como é que se atrevem? Vocês roubaram-me os sonhos e a infância”.

No verão de 2018, a jovem ativista sueca iniciou sozinha uma greve às aulas todas as sextas-feiras e foi sentar-se em frente do parlamento sueco com um cartaz a dizer “Greve às aulas pelo clima”. Este ano, milhões de jovens de todo o mundo seguiram o mesmo caminho, protestando e liderando iniciativas para obrigar os políticos a tomar decisões, a cumprirem o Acordo de Paris, a não deixarem que o aquecimento do planeta seja superior a 02º C.

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Assumindo um cada vez maior protagonismo ao longo de 2019, Greta Thunberg foi agora eleita figura do ano pela revista Time, a mesma revista que em junho tinha na capa o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, com água pelos joelhos na costa de Tuvalu, um dos países mais vulneráveis às alterações climáticas. Salvar o planeta “é a batalha das nossas vidas”, disse Guterres na altura.

E bastariam três meses para que um relatório da ONU fizesse recordar a fotografia, ao concluir que a subida do nível das águas do mar, em consequência do aquecimento global, pode provocar 280 milhões de deslocados. O documento foi divulgado pelo Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC na sigla original) a 25 de setembro no Mónaco, compilando o trabalho de mais de 100 cientistas de 30 países.

Sem uma redução urgente das emissões de gases com efeito de estufa, os gelos permanentes (permafrost) vão derreter a um ritmo sem precedentes, elevando o nível dos oceanos com consequências para mais de mil milhões de pessoas, disseram na altura os cientistas, avisando que há efeitos nos oceanos que já são irreversíveis.

Alertas de cientistas, de análises e de estudos científicos foram uma constante ao longo de 2019, sobre o rápido aumento da temperatura dos oceanos, sobre alterações no fitoplâncton (micro-organismos vegetais), sobre a diminuição das zonas de pesca.

No mar e em terra, as alterações climáticas estão a pôr em risco sítios da UNESCO e a biodiversidade, estão a aniquilar espécies e a provocar forte declínio noutras, estão a mudar a energia da atmosfera, estão a aquecer os dias como nunca (os últimos cinco anos foram os mais quentes de sempre), e ainda aumentam desigualdades e representam riscos financeiros de quase 900 mil milhões de euros.

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Apesar de todos estes avisos, passados quase cinco anos sobre o acordo do clima assinado em Paris por praticamente todos os países do mundo, 2019 foi também o ano em que o Presidente dos Estados Unidos formalizou a saída do Acordo, foi quando continuaram a subir as emissões de gases com efeito de estufa, quando se aprovaram novas centrais elétricas a carvão, nomeadamente na China.

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Mas foi também o ano em que em Portugal foi anunciado o fim antecipado das duas termoelétricas, primeiro a do Pego, em 2021, e depois a de Sines, em 2023. Entretanto o Governo criou legislação sobre comunidades energéticas e começou os leilões de energia solar.

Quando só a frase “prospeção de petróleo” levanta um coro de protestos, quando a exploração de lítio e um novo aeroporto na margem sul do Tejo prometem continuar a agitar o próximo ano, foi quase no final deste que foi anunciada a queda de oito lugares do país no Índice de Desempenho das Alterações Climáticas, nomeadamente pela seca, que tem sido uma constante especialmente a sul, e os incêndios.

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Em maio, Portugal tinha sido, segundo dados oficiais, o país da União Europeia com maior redução das emissões de dióxido de carbono, menos 9%.

Primeiro país a anunciar a neutralidade carbónica em 2050, no final do ano passado, Portugal continuou este ano a produzir legislação para mitigar as alterações climáticas e a poluição oceânica por plásticos, como o Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) ou o Programa de Ação para a Adaptação às Alterações Climáticas (P-3AC), depois de o Fundo Ambiental ter apoiado ao longo do ano projetos de adaptação às alterações climáticas.

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Nas eleições legislativas deste ano (6 de outubro) o programa eleitoral do PS, partido que formou governo, deu especial destaque à luta contra as alterações climáticas, algo que o Governo atual também prioriza. Antes das eleições, com o mesmo ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, já tinham sido anunciados milhões para a área do Ambiente, quer para descarbonização, quer para economia circular, quer para valorização do território e florestas. Este mês foi apresentado o Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Florestais.

Num ano em que as empresas do Estado começaram a poder substituir pelo menos metade dos veículos por outros sem emissões de gases, em que foi aprovada a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030, a partir de setembro houve mais uma mudança a pensar no ambiente, a proibição de se usar loiça de plástico de utilização única na restauração.

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Antes, a 15 de março, uma sexta-feira, também foi a pensar no ambiente que milhares de jovens saíram às ruas a exigir mais ação na luta contra as alterações climáticas. A defesa do ambiente “é a mais importante das causas pelas quais as pessoas se podem manifestar”, dissera o ministro três dias antes.

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A greve/manifestação colocou milhares de jovens nas ruas de cidades portuguesas e de cidades de mais de uma centena de países, com uma mensagem idêntica e universal: mais ação dos líderes na luta contra as alterações climáticas e na redução das emissões de gases com efeito de estufa.

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A mesma mensagem pelo mundo inteiro numa nova greve a 24 de maio, desta vez com o apoio dos adultos. Mais de 1.600 cidades de 119 países, com o tema a merecer destaque nas eleições para o Parlamento Europeu de maio e nas quais os ambientalistas tiveram uma subida expressiva.

E depois, a 27 de setembro, aquela que terá sido a greve climática global com origem na ação de Greta Thunberg mais expressiva do ano (houve outra a 29 de novembro), juntando milhões de pessoas em defesa de medidas para travar o aquecimento global. Em Portugal, em plena campanha eleitoral para as eleições legislativas, marcharam milhares em Lisboa e em dezenas de outras cidades. Só em Itália estiveram um milhão de estudantes nas ruas.

Nada que impedisse que a floresta amazónica ardesse como há muito não se via, agitando governos e opinião pública, ou que a Sibéria e o Alasca, e mais tarde os Estados Unidos e Austrália conhecessem fogos históricos. Como histórica foi a vaga de calor no verão europeu.

António Guterres, uma das vozes mais insistentes na urgência climática, convocou para setembro uma cimeira em Nova Iorque (Cimeira da Ação Climática) para definir objetivos mais ambiciosos na contenção do aquecimento global, porque, apesar de promessas, a emissão de gases com efeito de estufa tem continuado a aumentar. Resultado palpável apenas uma promessa: 66 países, 10 regiões, 102 cidades e 93 empresas comprometidos em serem neutros em emissões em 2050.

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Da cimeira ficaram ainda as palavras de Greta Thunberg dirigidas aos líderes mundiais: “Como é que se atreveram? Vocês roubaram-me os sonhos e a infância com as vossas palavras vazias”. E o aviso de Guterres: “A emergência climática é uma corrida que estamos a perder, mas que ainda podemos ganhar”.

Em maio passado, o Reino Unido já se tinha tornado o primeiro país do mundo a declarar a “emergência climática” e, a 28 de novembro, o Parlamento Europeu declarou também o estado de “emergência climática”. São declarações simbólicas. Em Portugal, o Governo usou precisamente essas palavras para desvalorizar um pedido do parlamento nesse sentido.

E porque tudo parece simbólico, num balanço conhecido a 20 de novembro da independente Climate Action Tracker, apenas dois países do mundo, Marrocos e Gâmbia, estão a cumprir as promessas do Acordo de Paris.

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Como simbólica parece ter sido a mais importante reunião da ONU sobre o clima, a COP25, de Madrid, que terminou no domingo sem resultados palpáveis e com um acordo minimalista que deixou de fora o que de mais importante, e quase único, tinha para discutir, o mercado do carbono. Apesar de duas semanas de discussões e mais dois dias, os países empurraram para o próximo ano eventuais decisões sobre objetivos mais ambiciosos na redução de emissões.

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Em alta esteve a Europa, com a União Europeia, enquanto decorria a última semana da COP, a assumir o compromisso de neutralidade carbónica em 2050 (apesar de a Polónia não dar garantias). E a apresentar também na mesma altura o Pacto Ecológico Europeu, um documento para a próxima década, para a neutralidade carbónica e para uma grande mudança no continente, estabelecendo 50 medidas que terão de ser propostas e implementadas nos próximos cinco anos, sendo que muitas delas irão surgir já no início do próximo ano.

Mas, contas feitas, em alta verdadeiramente, em 2019 como em anos anteriores, estiveram as emissões de gases com efeito de estufa.