Em português, Pedro Sánchez ganhou por uma unha negra. Em espanhol, “ganó por una nariz”. Seja qual for a expressão idiomática escolhida, depois de sucessivas derrotas em votações de investidura, o secretário-geral do PSOE conseguiu esta terça-feira o número de votos suficientes para assegurar a confiança do Congresso dos Deputados (parlamento espanhol) e tornar-se, de novo, primeiro-ministro de Espanha.

No Palácio das Cortes, em Madrid, nada fugiu ao guião. Quem tinha de votar a favor, votou. Quem anunciou que não iria alinhar com um governo onde estará o Unidas Podemos, não alinhou. Contas finais, o líder dos socialistas venceu por 167-165. A abstenção teve os exatos 18 votos que se esperava, da ERC, a Esquerda Republicana da Catalunha, e dos nacionalistas bascos do EH Bildu.

Sánchez e Pablo Iglesias cumprimentam-se. No final, depois da vitória, voltariam aos cumprimentos

Ana Oramas, que já avisara que ia quebrar a disciplina de voto do seu partido, o Coalición Canaria (CC), cumpriu o prometido. Sem twist final nem cliffhanger — ao contrário da votação de domingo em que uma deputada esteve ausente por estar doente, falhando um voto de apoio a Sánchez —, o Diário Oficial do Estado assinado pelo rei Filipe VI publicará na quarta-feira o decreto real da nomeação do primeiro-ministro, ou, como preferem dizer os espanhóis, o presidente do governo.

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Só depois disso, Sánchez irá ao Palácio da Zarzuela encontrar-se com o rei, devendo anunciar a composição do seu governo na próxima semana, segundo fontes socialistas citadas pelo El Mundo. As cinco caras do Unidas Podemos a integrar o executivo de coligação — o primeiro desde a ditadura de Franco — deverão ser as já avançadas pela imprensa espanhola, ainda que não confirmadas oficialmente: Pablo Iglesias, Irene Montero, Alberto Garzón, Yolanda Díaz e Manuel Castells.

Pedro Sánchez é primeiro-ministro espanhol. Investidura termina com 167 “sim”, 165 “não” e 18 abstenções

Pouca surpresa, mas muita emoção

A manhã de terça-feira passou-se assim sem surpresas e acabou com a vitória esperada. Apesar disso, não ficou livre de emoções: houve lágrimas de Pablo Iglesias no final, um pedido de desculpas ao próprio partido de Ana Oramas e uma salva de palmas à deputada doente de cancro, que falhou a votação no domingo. Aina Vidal, que fez questão de se deslocar ao Palácio das Cortes para dar o seu “sim” a Sánchez, recebeu uma ovação de pé.

A intervenção de Montserrat Bassa, irmã de uma dirigente independentista condenada a 12 anos de prisão foi das mais emotivas. Apesar de chamar a Sánchez “cúmplice da repressão” na Catalunha, a deputada da Esquerda Republicana da Catalunha cumpriu a disciplina de voto do partido e absteve-se na votação final — algo que Ana Oramas, única deputada do CC, se recusou a fazer.

“Acima dos meus interesses pessoais e do meu partido, estão os das Ilhas Canárias e os do meu país, mas quero pedir desculpas ao meu partido”, disse durante a sua intervenção. Horas depois, o secretário-geral do partido anunciou que as desculpas não serão aceites e que a deputada arrisca um processo disciplinar.

Mais agressivo foi o tom da catalã Montserrat Bassa: “Não me importa a mínima a governabilidade de Espanha.” A deputada disse estar ali a dirigir-se a Sánchez como familiar de uma presa política, acusando os socialistas de serem juízes e carrascos.

“Perante toda a raiva que me gera a injustiça e a mentira, acha que me importa a governabilidade de uma Espanha que tem a minha irmã e o meu Governo encarcerados e no exílio? Pessoalmente, e digo pessoalmente, não me importa a mínima a governabilidade de Espanha.” No final absteve-se, como todos os 13 deputados do ERC, cruciais para a vitória de Sánchez.

Quando outro independentista falava, desta vez basco, Oskar Matute do Bildu, os deputados do Vox, partido fundado por antigos militantes do Partido Popular, abandonaram o hemiciclo. Também o deputado do PP, Adolfo Suárez Illana, lhe virou as costas durante a intervenção, o que levou Matute a dizer que o deputado parecia um dos jurados do programa The Voice. “Não estamos aqui para lhes agradar, mas para lhes dizer com a nossa presença que não nos venceram nem nos domesticaram.”

Enquanto Matute, do Bildu, falava, deputados do Vox abandonaram o hemiciclo

Outro momento bizarro, também com o Bildu, foi protagonizado pela deputada Mertxe Aizpurua: votou “sim” por engano, quando se deveria ter abstido, segundo a disciplina de voto do seu partido. No entanto, o erro foi de curta duração e quando se apercebeu do sucedido, corrigiu o sentido de voto para o esperado: a abstenção.

Em Espanha, os deputados são chamados a votar por ordem alfabética e, no caso da investidura, foi necessário dizer em voz alta o sentido de voto: sim, não ou abstenção.

Governo ou bloqueio, diz Sánchez. Radicais, responde Casado

Mesmo sabendo que não tinha qualquer hipótese de seduzir a direita, alterando os 88 “não” do Partido Popular ou os 52 do Vox, os dois maiores partidos da oposição, durante os dez minutos de intervenção inicial que deram o tiro de partida à sessão, Pedro Sánchez falou sempre de olhos postos em Pablo Casado. E deixou claro que daquele parlamento só poderia sair uma de duas coisas, ou um governo ou um novo bloqueio. “O nosso dever é dar aos cidadãos o que eles votaram: um governo”, defendeu o líder do PSOE. “Cinco eleições com o mesmo resultado não é coincidência, é a democracia”, acrescentou.

“Vocês perderam as eleições”, disse, falando para a direita espanhola. “Vai haver um governo progressista em Espanha. Compreendo a vossa frustração, mas peço-vos que aceitem a realidade: perderam as eleições e hoje perderão a votação. Não se pode construir nada de positivo a partir da frustração”, sublinhou o socialista.

Depois de Sánchez, seguiu-se Pablo Casado, do PP, com direito a cinco minutos de intervenção, os mesmos que tiveram cada um dos representantes dos diferentes partidos com assento parlamentar. O líder dos populares, tal como faria também Santiago Abascal, do Vox, fez questão de dar vivas ao rei e à monarquia espanhola. A partir daí, as críticas apontadas a Sánchez foram sempre de se ter radicalizado e de se ter unido a quem quer separar a Espanha, em vez de uni-la.

“A sua única pátria é você. Preferiu tornar-se o homem de palha do nacionalismo, em vez de ser um estadista”, disse Casado, acusando o líder do PSOE de ter deixado cair o seu disfarce de moderado”, depois de ter lembrado que o país teve dois inimigos: terroristas e conspiradores.

“Os espanhóis não podem ser feitos reféns para garantir os votos da sua investidura. Está aqui pela sexta vez, depois de ter falhado nas outras investiduras”, sublinhou, argumentando que Sánchez forçou uma coligação com “os ultra-esquerdistas, os independentistas e os batasunos [bascos independentistas]”, tendo-se tornado ele próprio num radical.

Foi um tom de acusação semelhante o escolhido por Santiago Abascal, do Vox, que acusou Sánchez de querer constituir um governo que “tem a aprovação da ETA”, referência que já tinha sido feita por Casado, do PP, lembrando a abstenção dos cinco deputados do Bildu na votação da investidura. E acusou o socialista de usar “as instituições para vencer as eleições”.

Quase com um pé no Governo, Pablo Iglesias, do Unidas Podemos, usou o seu tempo para se dirigir diretamente ao socialista. “Pedro, eles não nos vão atacar pelo que fazemos. Vão-nos atacar pelo que somos. Face aos intolerantes, peço-te que mantenhas o tom forte e firmeza democrática.”

No final do dia, as palavras de Manuel Azaña Díaz, último presidente da Segunda República Espanhola, foram as mais usadas para esgrimir argumentos. “Ninguém tem o direito de monopolizar o patriotismo”, citou Sánchez. Casado respondeu com outra citação famosa de Azaña: “Tolero que ataquem a República, não tolero é que ataquem Espanha.”