Pensar no trabalho de Stephen King como algo mercantilizado, que viaja por uma linha de produção e obedece a fórmulas e desfechos tipificados, é o custo a pagar por uma produção tão intensa. O primeiro episódio da maior parte das séries adaptadas de uma obra de Stephen King obedecem a um conjunto de regras que serão trabalhadas nos seguintes. Ou seja, há um base que é obedecida com frequência e que serve de porta de entrada para o suspense, o sobrenatural ou o fantástico que se segue. Por vezes, tudo isto está misturado – uma mistura enrolada num qualquer tipo de conspiração – mas King deixa o espectador com certezas do que está a ver.

Uma cidade, uma comunidade, um espaço confinado com uma série de valores que são perturbados por algo estranho: pode ser uma morte ou simplesmente um evento fora do natural/normal. Seja o que for, é algo que pesará durante toda a narrativa, mesmo que frequentemente a história vá atrás dos problemas pessoais das personagens e das respetivas famílias.

Apenas com as adaptações recentes para televisão, há um pouco de tudo. Há “Castle Rock”, que mistura várias personagens de Stephen King e entrelaça uma série de narrativas muito bem; “Mr. Mercedes”, que faz o mesmo mas com alguma contenção e atenção ao mistério; ou “Under The Dome”, uma adaptação demasiado consciente de si própria e, por isso, presa na armadilha de muitas outras que vieram antes. Ou seja, arrastou-se muito tempo numa articulação de não-resolução.

[o trailer de “The Outsider”:]

Eis que chegamos a 2020 e uma das grandes séries a estrear no início do ano é uma adaptação de Stephen King. Chama-se “The Outsider”, baseada no livro homónimo publicado em 2018. E não é só uma adaptação de uma obra de Stephen King, é uma grande série que encontra o ponto de rebuçado entre mistério e sobrenatural e que reúne um conjunto de atores que têm a cara perfeita para o universo do autor (normalmente outras equipas de casting encontram duas ou três caras perfeitas, aqui o elenco todo pertence a King). E é uma série da HBO. Não quer dizer que a marca HBO imprima um selo de qualidade instantâneo, como era regra até há uns anos, mas ser da HBO impõe que, por exemplo, o romancista e argumentista Richard Price (“The Wire”, “Deuce” ou “The Night Of”) seja responsável pela supervisão e escrita de quase todos os episódios.

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“The Outsider” chega à HBO Portugal a 13 de Janeiro, segunda-feira. Os dez episódios desta minissérie serão estreados ao ritmo de um por semana e são um minucioso trabalho de pinças. Tudo acontece dentro da normalidade das adaptações de King para televisão, há um primeiro episódio de choque – aliás, os primeiros minutos são logo de choque – com um problema que parece ter resolução fácil. E tem. Só que não é o que parece. E, neste caso, o “não é o que parece” é elaborado com a eficácia de grande drama policial.

Jason Bateman (“Arrested Development” e “Ozark”) é um dos produtores da série. Mas é também protagonista e realizador dos dois primeiros episódios. A sua presença carrega a habitual leveza/comédia com a experiência que adquiriu em “Ozark”, torna-se num vilão perfeito para ser o início daquilo que é disruptivo na comunidade de “The Outsider”. É o pai de família normal numa cidade atormentada por fantasmas. Depressa abandona a normalidade para ser o culpado de um crime (acontecimento imediato no primeiro episódio) e o catalisador do incumprimento da normalidade nos universos de Stephen King.

[Stephen King fala sobre “The Outsider”:]

Mais do que medo ou pânico generalizado, o que em “The Outsider” se trabalha, e que Richard Price adorna na perfeição, são os receios e as vulnerabilidades individuais e de como elas são exploradas pelo mal — ou uma figura do mal. Nada de estranho para uma adaptação de King, mas fascina como tudo está balançado e nivelado. “The Outsider” depressa se torna uma série sobre os outros, mas também sobre nós; é um policial sobrenatural que não se deixa fascinar com o horror e que até o banaliza – faz parte de nós – e que em nenhum momento esquece as suas personagens, todas elas fazem parte de uma dança conjunta que se fortalece com aquilo com o espectador sabe e o que é disseminado por todas elas.

Regressa-se à ideia inicial. O método mercantilizado de Stephen King. Nem sempre o texto original é o melhor, nem sempre as suas ideias estão em concordância com o tempo, com a atualidade. Mas há outro problema mais grave na generalidade das adaptações: a tentativa quase sempre errada de tornar demasiado óbvio aquilo que nasce nas entrelinhas das suas histórias. “The Outsider” brilha, também, por causa disso. Apesar de respeitar a fórmula de exacerbar o conflito logo no primeiro episódio, o que se segue não é óbvio. “The Outsider” é uma tempestade perfeita entre os elementos comuns a Stephen King e os externos.

E não, não parece uma série da HBO – e isso é bom. Stephen King não é complicado, apenas apresentado com uma clarividência de como as suas ideias funcionam transportas para um argumento. É uma boa narrativa em excelente televisão.