Chamam-lhes “roaring twenties”, “les années folles”, “os loucos anos 20”, e a imagem que deles se propagou pelo tempo fora até à atualidade é, não por acaso, aquela que o cinema plasmou no nosso imaginário, a partir de obras como  Cabaret de Bob Fosse, Roaring Twenties de Raoul Walsh, Some Like it Hot de Billy Wilder, até às várias versões do romance de Scott Fitzgerald, The Great Gatsby, ou os vários filmes que Woody Allen fez ambientar nessa década fulgurante. Ou fulgurante numa América que não conheceu no seu solo uma guerra devastadora que arruinou a Europa, cujas ruas não se tinham tornado um freak show de homens amputados, rostos destruídos pelas armas químicas, nem estava financeiramente arruinada. Pelo contrário, vivia um período de abundância impulsionada pelas novas indústrias e pelas novas tecnologias que, por sua vez, permitiam às classes médias um novo estilo de vida que passava por uma liberalização dos costumes, uma nova vivência das cidades, não apenas voltada para o trabalho mas para os divertimentos noturnos, para uma nova conquista do espaço geográfico com o automóvel e, claro, com a mulher a chegar a espaços até aí só permitidos aos homens. O nova iorquino e negro  bairro de Harlem expande-se para o mundo através dessas sonoridades jazzísticas, enquanto raparigas de cabelo curto,vestidos acima do tornozelo e muitos brilhos aprendiam a dançar charleston, fox trot, shimmy, swing, movimentos carregados de liberdade, ritmo e erotismo, ao ponto de alguns serem proibidos em certos clubes e bailes. Esta foi também a década de ouro da cultura negra na América e a sua força cultural foi tal que temos que voltar lá se quisermos compreender o século XX.

Quando soaram as badaladas que deram entrada na nova década de um século, em apenas 20 anos já se tinha visto cair impérios, assassinar monarcas, triunfar a revolução bolchevique, nascer uma República em Portugal, serem criadas novas nações sobre as cinzas de antiquíssimos impérios, e uma guerra onde, pela primeira vez, cidades e civis foram atacados, e onde as novas tecnologias permitiram a criação de armas cuja capacidade de matar era esmagadora. Com que espírito começava a Europa essa nova década? Certamente não com a mesma confiança no futuro que percorria a América. No seu quarto, Marcel Proust molhava mais uma madalena no chá e escrevia o terceiro tomo de Em Busca do Tempo Perdido/Do Lado de Guermantes, longe da festa que os americanos fariam em Paris. Virginia Woolf escreveria Mrs Dolloway e James Joyce Ulisses, Knut Hamnsun, Fome, Thomas Mann subiria à Montanha Mágica, Ernst Jünger traz as suas memórias das trincheiras em As Tempestades de Aço e Freud espreitava o nosso inconsciente e escrevia Para Além do Principio do Prazer

Metropole ou os anos 20 vistos pelo olhar grotesco de Otto Dix, 1927

Na recém-criada República de Weimar, a escola de artes Bauhaus prepara-se para mudar o rosto das nossas cidades e o interior das nossas casas ao juntar as belas artes e a mais vanguardista tecnologia. A década de 20 será também a década do som: surge a rádio, o gramofone torna-se acessível em casas de família e clubes noturnos, bares, o cinema ganha som e com eles o mundo passa a estar ligado — não apenas à eletricidade — mas também entre si. Foi nestes anos de democratização e expansão técnica que a moda, as artes, as formas de sociabilidade se replicam um pouco por todo o mundo a uma nova velocidade.

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Não é por acaso que é nesta década que é feita, na Alemanha, uma das mais importantes distopias cinematográficas, Metropolis de Fritz Lang, um artista profundamente sintonizado com a sua época e que traduz em imagens algumas das grandes inquietações que já tomavam a Europa: o surgimento de ditaduras, as massas de trabalhadores hipnotizadas, a possibilidade de a técnica criar homens-máquina, cyborgs, as cidades erguidas em direção aos céus, os edifícios gigantescos como menires futuristas, paradigmas de uma nova relação com o sagrado, que passa a ser a tecnologia e o dinheiro. Se tivermos em conta que essa América dançante colapsa logo no fim da década com a Grande Depressão de 1929, e que em 1936 Hitler sobe ao poder na Alemanha, percebemos que nas sombras desses anos loucos havia um monstro que se preparava para acordar nessas cidades felizes.

Quando Paris era uma festa vestida de Chanel

Nos anos 20 duas cidades disputam o lugar de capital da movida, da vanguarda, da audácia: Paris e Nova Iorque. Se, do lado de lá do Atlântico havia o sonho americano que todos os dias somava novos membros vindos de todo o mundo, do lado de cá, desembarcavam artistas, escritores, pintores, aristocratas sem reino, ricos ociosos. Afinal, escreverá Hemingway, “Paris é uma festa”. Lá se juntam Picasso, Dali, Man Ray, Jean Cocteau, Scott e Zelda Fitzgerald, Josephine Baker e tantos outros. É dali que sai, em 1924, das mãos de André Breton o Manifesto Surrealista que vai agitar toda a arte durante décadas, é precisamente nesse início da terceira década do século que Gabrielle Chanel lança o famoso Chanel nº5, provavelmente o perfume mais famoso de sempre.

Madame Varda, em 1924, num look Chanel para uma produção da Vogue © Edward Steichen/Conde Nast via Getty Images

Mas Paris e Nova Iorque também disputam o lugar de capital da moda. Os flapper dresses são uma criação americana à qual a Europa não resiste, em parte devido à influencia do cinema, cujas atrizes se tinham tornado os novos ícones de beleza. Há uma nova liberdade que os corpos femininos querem celebrar e Coco, que será sempre uma conservadora, mesmo nos seus momentos de maior arrojo e criatividade, cria o seu tailleur e um século depois é difícil superar esta aliança perfeita entre simplicidade e requinte. Claramente herdeira da geometria depurada dos modernistas, fascinada pelo estilo de vida ao ar livre da aristocracia, pela prática de desportos náuticos, e pelo guarda roupa masculino, Gabrielle Chanel vai ser pioneira de um estilo despojado de ornamentos, de excessos que conquistará mulheres de personalidade forte como Greta Garbo. E, em 1926 apresenta a sua terceira criação, o Little Black Dress, arquétipo da moda do século XX. Com esta peça Chanel deixa para trás séculos e séculos em que o preto era uma cor associada à morte, ao sinistro, ao macabro, ao luto, para a impor como um cor simultaneamente neutra e moderna, o epítome do chique, que ninguém até hoje conseguiu superar.

E se Coco se dava com a aristocracia, os milionários, os artistas, Elsa Schiaparelli, criadora de origem italiana, vai dar-se sobretudo com os surrealistas, e as suas criações fantasiosas e inesquecíveis, como o chapéu-sapato farão dela a grande rival de Gabrielle. Consta que se detestavam e que houve períodos em que Schiapa (como era conhecida entre os amigos) era mais considerada que Chanel, sobretudo a partir dos anos 30.

Longe destas lutas, uma mulher criava um universo pictórico e ornamental único e que mostra que nem tudo o que era importante se fazia no eixo Paris-Nova Iorque-Hollywood: Frida Kahlo, ou como  o uso da tradição pode ser um gesto de uma modernidade estonteante.

Corpos livres, corpos domesticados

Apesar da insistência em associar os anos 20 a uma liberdade rutilante a verdade é que essa era apenas a forma como a época se dava a ver, como já referimos nas classes altas e no cinema. A realidade é que esta década foi também palco para o nascimento dos fenómenos de massas. O cinema primeiro e depois o desporto. Até aqui as atividades desportivas eram praticadas sobretudo pela aristocracia e burguesia, e não haviam os espaços agregadores de multidões que vão surgir nesta época: os estádios, os recintos olímpicos preparavam-se agora para chamar multidões e o desporto ganha uma componente de entretenimento. Dos corpos masculinos exigia-se a compleição física das estátuas dos atletas gregos. As vitórias desportivas e a força física passam a simbolizar o poder das nações como os filmes-propaganda de Leni Riefenstahl vão mostrar nos anos 30.

A série Peaky Blinders, ou um retrato da Europa nos anos 20 © DR

Já o corpo feminino e a sua tão falada nova liberdade conquistada pelo abandono dos corpetes e espartilhos ver-se-á  totalmente escravo da nova ditadura da beleza made in Hollywood. O rosto que as câmaras, as luzes e as sombras esculpiam nas telas tornavam-se obrigatórios e a maquilhagem usava-se para recriar o modelo de uma mulher sempre entre a inocência e o escândalo. Nos anos 20 o cinema faz triunfar estas Vamps que alimentavam sobretudo uma Europa deprimida. Uma atmosfera do que seria a verdadeira Europa dos anos 20 é-nos dada, atualmente, pela série Peaky Blinders: o stress pós-traumático dos homens vindos da trincheiras da 1ª Guerra, a pobreza das cidades, o crime como forma de sobrevivência.

No recanto mais ocidental desta Europa, Portugal, o grande momento modernista tinha-se dado na década anterior com o Orfeu, e fora de Lisboa ou Porto o pais vivia na sua secular medievalidade, vestido de cores escuras, com as mulheres embiocadas no sul e sob capas de burel no Norte. Na capital reinava a dança de presidentes e em 1922 chegava à presidência Manuel Teixeira Gomes, o escritor de novelas eróticas, Fernando Nogueira Pessoa conhece Ofélia, mas continuará melancólico e deprimido. Surge o movimento presencista, e Aquilino Ribeiro afirma-se como o escritor do momento. De longe vinha a poesia simbolista de Teixeira de Pascoaes, que conquistava vários seguidores. Raul Brandão, prosseguia com a suas memórias e as suas viagens expressionistas às Ilhas Desconhecidas, mas a grande novidade era a rádio e as novelas radiofónicas que faziam a delícia do país até ao seu canto mais remoto. Valeu-nos a poesia e o escândalo de Florbela Espanca e a estranheza de Judith Teixeira. Vivíamos fascinados por Paris e esperávamos as novidades vindas no Sud Express como no século XIX, nos magazines ilustrados e nos cinemas que começavam a abrir em grande sala, como o Tivoli, em 1924. Apesar da falta de cosmopolitismo que grassa em Portugal, lá vão chegando de Paris algumas modas, não aceites sem alvoroço, como os fatos de banho, à data chamados maillots de banho, ou os vestidos e os cabelos demasiado curtos. Na verdade só em Cascais e no Estoril as mulheres cultivavam com à vontade o estilo de vida “garconette”, como conta José Augusto-França*. Em Lisboa abriram três danceterias que deram novo frisson ao erotismo luso e a vida nos cafés intensificou-se com a chegada de muita clientela feminina. Leia-se este excerto ilustrativo do lifestyle lisboeta contado por JAF:

“Ao mundo parisiense, survolté, modelo longínquo, respondia caricaturalmente o Chiado lisboeta com suas casas de chá das 5, onde se vinha de automóvel com chauffeur de libré, elas, e eles arvoravam monóculo e eram tenentes ou advogados recém-formados, talhados para o flirt, como começava a dizer-se. Honras desafrontadas, com morte do sedutor, eram então absolvidas nos tribunais, e outros, de honra também, davam duelosà espada de sangue raro. Este reservava-se para as revoluções, e, quandoas não havia, minguava a actualidade para a imprensa — além do breve pasto do caso Alves dos Reis ou da Maria Alves, actriz misteriosamente assassinada em 1926.”

Mas antes mesmo da década acabar entraríamos no Estado Novo, a América no crash e a 2ª Guerra Mundial espreitava ao virar da esquina.