Se “Uma Vida Escondida”, de Terrence Malick, fosse um livro em vez de um filme, era um calhamaço de 900 páginas, prolixo e filosofante; e se fosse um quadro, era um telão, pintado em estilo enfático e empolado. É que subtileza, recato, contenção, são palavras que não constam no vocabulário artístico do autor de “A Linha Invisível” e “A Árvore da Vida”, e “Uma Vida Escondida” vem confirmá-lo, embora a fita seja, das recentes de Malick, a menos vaga e indecifrável. O que não é dizer muito, já que o realizador continua na senda do cabotinismo, seja no gesto, seja no discurso, e a afetar a mesma pose de cineasta “espiritual”. Só que há mais espiritualidade num só plano de um filme de Dreyer, Bresson ou Olmi, do que nas três horas de “Uma Vida Escondida”.

[Veja o “trailer” de “Uma Vida Escondida”:]

Malick recorda a história de Franz Jägerstätter (August Diehl), um fazendeiro austríaco católico, que durante a II Guerra Mundial se recusou a fazer o juramento de lealdade a Hitler quando foi chamado pela segunda vez para o Exército, invocando objeção de consciência. O ato valeu-lhe, e à família, serem ostracizados pela maior parte dos habitantes da sua aldeia, e um conflito com a sua igreja. Imperturbável perante qualquer tentativa, violenta ou institucional, para o fazer voltar atrás na decisão, nem sequer sob pena de não voltar a ver os pais, a mulher (Valerie Pachner) e as filhas,  Jägerstätter foi preso, julgado em tribunal militar, condenado à morte e executado, em Agosto de 1943. Em 1971, Alex Corti fez um filme sobre ele para a televisão austríaca. Em 2007, foi considerado mártir da Igreja Católica pelo Papa Bento XVI e beatificado.

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[Veja os dois principais intérpretes no Festival de Toronto:]

O estilo laboriosamente grandiloquente com que Terrence Malick filma as etapas do calvário de Jägerstätter não é nada consentâneo com o heroísmo modesto, estóico e anónimo manifestado pela personagem (o título do filme é tirado de uma frase do final de “Middlemarch”, de George Eliot). Do ecrã rasgado aos planos afetados de elaboração, da hiperdependência da grande angular à música que sublinha as imagens como se fosse um marcador fluorescente, até aos estereótipos pastorais, tudo em “Uma Vida Escondida” tem letras maiúsculas. Terrence Malick não pára de dizer que está a fazer Grande Cinema, Cinema Transcendente, e que tal como Jägerstätter, também ele tem Deus do seu lado. Mas não faz senão pecar ao longo de todo o filme: por soberba estilística e arrogância intelectual. “Uma Vida Escondida” é só jactância de “obra magna” com bolhinhas místicas.

[Veja uma sequência do filme:]

As personagens, sejam principais, sejam comparsas, também estão reduzidas a lugares-comuns falantes e ambulantes: Jägerstätter é o Mártir Digno e Inabalável e a sua mulher a Esposa Compreensiva e Fiel, rodeados praticamente por todos os lados de Camponeses Intolerantes e de Nazis Vociferantes e Brutais. Uma das raras figuras de “Uma Vida Escondida” que escapa a esta simplificação é o oficial interpretado por Bruno Ganz (foi o seu último papel), que preside ao tribunal militar que julga Jägerstätter e o condena à morte, não sem antes o tentar fazer mudar de ideias uma última vez. A sua (infelizmente breve) presença introduz no filme uma medida de humanidade real e um cambiante de ambivalência que de outra maneira lhe faltam de forma dramática.

O próprio Franz Jägerstätter é drenado de dimensão humana e espiritual, e o seu martírio de significado. Em vez de um homem que tudo sacrifica, da família à própria vida, por amor à sua fé e coerência aos seus princípios éticos, Malick fá-lo passar por um teimoso irredutível, um casmurro radical. Embora sempre filmado como se fosse a última bolachinha do pacote do martírio cristão, um justo exemplar que se opõe de forma heroicamente sofredora e até às últimas consequências, àqueles que vêm perturbar e corromper a ordem da natureza e as disposições divinas. Pese aos admiradores e aos zelotas do seu cinema, Terrence Malick continua a ser um cabotino tão solene como gasoso.