Todos os grandes realizadores já falecidos deixaram projetos de filmes que nunca chegaram a fazer. Federico Fellini, por exemplo, não conseguiu concretizar “Il Viaggio di G. Mastorna”, baseado numa ideia do escritor Dino Buzzati, onde o protagonista faz uma jornada fantástica pelo mundo dos deuses do mundo pagão clássico, tendo como guia um velho professor, materialista e ateu, e que acabou por se tornar num álbum de banda desenhada de Milo Manara; nem tão pouco “Canale 5”, uma sátira a Silvio Berlusconi e ao seu império mediático, onde este compra Veneza e a transforma num cenário para filmar anúncios e concursos televisivos pirosos. E depois, há  “Viaggio a Tulum”, que envolveu Fellini com Carlos Castaneda. É a história deste estranho filme frustrado que recordamos, nos 100 anos do nascimento do cineasta italiano.

Carlos Castaneda (1925-1998) foi um antropólogo americano de origem peruana que gozou de bastante popularidade, em especial nos EUA, nas décadas de 60 e 70, tendo vários dos seus livros sido também publicados em Portugal. Castaneda relatava neles as suas experiências místicas e mágicas vividas no México, à base de drogas como o “peyote” e sob a tutela de um xamã da tribo Yaqui chamado Don Juan Matus, de cuja “sabedoria” ele era apenas o divulgador. Castaneda foi mais tarde desmascarado como um mistificador, os seus livros como ficções e Don Juan como uma personagem imaginária. Mas Fellini, um interessado em esoterismo, tinha lido alguns dos seus livros e ficado fascinado pela ideia de um homem de ciência, um antropólogo, que se deixa conquistar “por um mundo misterioso, um mundo que definimos vagamente como ‘irracional’”, como explicaria numa entrevista dada em 1991 ao jornalista e poeta Toni Maraini.

[Veja um documentário sobre Carlos Castaneda:]

Fellini tentou, debalde, entrar em contacto com Carlos Castaneda no início da década de 80, para fazer um filme baseado nos seus escritos, mas não tinha conseguido comprar os direitos das obras. Até que um dia, em Outubro de 1984, quando se preparava para rodar “Ginger e Fred”, recebeu um telefonema dizendo que Castaneda estava em Roma e queria conhecê-lo. O encontro deu-se num hotel da capital italiana. Fellini descreveria mais tarde Castaneda como podendo ser “confundido com um siciliano – um siciliano cordial, descontraído, sorridente”. O autor de “Os Ensinamentos de Don Juan” revelou então ao cineasta que, muitos anos antes, o feiticeiro yaqui tinha visto “A Estrada” e profetizado que um dia eles haviam de se encontrar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Outros realizadores, caso de Alejandro Jodorowsky, também tinham tentado filmar os livros de Castaneda, mas este convenceu Fellini que se haviam misteriosamente “escolhido” um ao outro para que este filme visse a luz do dia. O antropólogo queria que a rodagem fosse no México, mas Fellini disse que isso seria muito caro e que conseguia recriar as paisagens mexicanas em estúdio em Roma, na Cineccità. Castaneda e Fellini marcaram então um novo encontro, em Los Angeles, de onde iriam para o México, visitar as ruínas das cidades maias de Chichen Itza e Tulum. No início de 1985, Fellini meteu-se num avião para Los Angeles com o produtor Alberto Grimaldi e o seu assistente de realização Andrea De Carlo. Castaneda vistou-os no hotel em que estavam instalados, acompanhado por várias mulheres. Fellini nunca mais o voltaria a ver.

[Veja uma curta-metragem sobre a história do filme:]

A ideia era que Carlos Castaneda acompanharia os três italianos na visita ao México e percorreriam juntos os locais onde os seus livros são ambientados. Mas entretanto, Fellini tinha recebido várias mensagens que o avisavam para desconfiar de Castaneda. Quando o realizador contou isto a Castaneda, este perdeu a compostura. Disse que havia uns loucos, uma espécie de culto que o perseguia, que era seguido por um carro que talvez fosse da CIA e que era melhor que Fellini e os seus acompanhantes fossem ao México sozinhos. E a seguir, desapareceu. O cineasta disse mais tarde, na entrevista citada, que tinha depois encontrado “mensagens estranhas” e sinais de “magia negra” no seu quarto de hotel.

Os três italianos partiram de carro para o México e visitaram Chichen Itza e Tulum, enquanto iam recebendo mensagens que lhes indicavam onde se dirigir e o que fazer (uma delas aconselhava que alugassem um carro descapotável, para estarem em “contacto mais direto com o céu”). Não encontraram nenhum xamã índio nem foram testemunhas do menor fenómeno fora do normal. Extenuados, Fellini, Grimaldi e De Carlo foram descansar a Cancún e depois regressaram a Roma, via Los Angeles. O cineasta não conseguiu financiamento para o seu filme inspirado nos escritos de Castaneda, que se iria chamar “Viaggio a Tulum”. Diria depois na entrevista a Tony Maraini que tinha sido tudo “muito estranho” na sua breve relação com Castaneda e havia desistido de o fazer. Além disso, havia gente que o tinha “tentado assustar” para que ele não o rodasse.

Em 1986, o diário “Corriere della Sera” publicou umas síntese do argumento do filme, assinado por Fellini e pelo argumentista Tulio Pinelli, e ilustrado por Milo Manara. É a história de um realizador que quer rodar uma fita inspirada em recolhas de lendas e de rituais mágicos de antigas civilizações aztecas, da autoria de um universitário latino-americano que não é nomeado. Em 1990, o texto foi transformado numa banda desenhada com o mesmo título (editada em Portugal pela ASA em 2003), de recorte surreal e com um forte elemento erótico, bem típico de Manara. Fellini aparece na história, ora como ele mesmo, ora como Marcello Mastroianni.

[Veja uma curta sobre a relação entre Fellini e Manara:]

O cineasta e o desenhador decidiram eliminar a figura de Carlos Castaneda da história, após terem sido incomodados por vários telefonemas, alguns deles ameaçadores, de um grupo italiano ligado à doutrina e às experiências alucinogénicas daquele. Fellini achava que esse grupo ou estava em contacto directo com o antropólogo, ou tinha ligações a a uma qualquer organização oculta acima dele. E como era supersticioso, tirou Castaneda de “Viagem a Tulum”. Em 1986, Andrea De Carlo já tinha publicado um romance, “Yucatan”, inspirado na viagem ao México que fez com Fellini e Alberto Grimaldi, onde misturava realidade e ficção. Fellini não gostou do livro e zangou-se com ele.

Em 2011, 13 anos após a morte de Fellini,  a revista mexicana “Gatopardo” publicou um artigo sobre o encontro entre ele e Carlos Castaneda, e as confusões e os equívocos em redor do projeto frustrado de “Viaggio a Tulum”. O autor do artigo, Sergio R. Blanco, ouviu Tony Karam, diretor da Casa do Tibete no México, que conheceu e privou com Castaneda nos anos 60, acabando por se distanciar dele, ao perceber que se tratava de uma fraude. Segundo Karam, Fellini foi usado pelo antropólogo, que era “um manipulador sem ética, embora magistral”. E começou a fazê-lo pouco após o ter conhecido em Roma, quando percebeu que o cineasta tinha, tal como Fellini “uma personalidade muito forte e não podia obter dele uma devoção total, que era o tipo de relação que ele tinha absolutamente com toda a gente”.

E conclui o articulista, escorado nas declarações de Karam: “Fellini não se terá apercebido que, tal como Mastroianni na BD de Milo Manara, tinha sido, sem o saber, a personagem de um filme. Um filme no qual Castaneda puxava os cordelinhos”. Também em 2011, Tiahoga Ruge, outro antigo assistente de Fellini, realizou um filme de ficção baseado na viagem ao México do cineasta, “Dreaming About Tulum: A Tribute to Federico Fellini.” Não sabemos se o realizador, se o tivesse visto, teria gostado ou não. Mas palpita-nos que lhe torceria o nariz.

[Veja o “trailer” de “Dreaming About Tulum”:]