As regras do jogo são claras: a partir do momento em que sentem os 3865 gramas de Óscar na mão, os vencedores têm 45 segundos para esbanjar. Contagem decrescente no teleponto, a iminência de lhes cortarem o pio e aquilo que se costuma designar como “o mundo inteiro” a assistir. Sem direito a segundos takes. “Que farei com este tempo?” ter-se-ão perguntado os nomeados ao longo do último mês. E eram tantas as hipóteses: fazer história, fazer política, fazer uma triste figura.

No fim, quase ninguém ligou ao relógio, poucos arriscaram nas acrobacias e o palco pertenceu a uma anónima tradutora, a única capaz de assegurar que grande parte dos discursos fossem um pouco menos que ininteligíveis.

Brad Pitt, Melhor Ator Secundário, “Era Uma Vez Em… Hollywood”

Frase: “Disseram-me que só tinha 45 segundos, ou seja, mais 45 segundos do que aquilo que deram ao John Bolton no Senado esta semana”

A maior incógnita na categoria não era quem iria ganhar, mas “quem anda a escrever os discursos de Brad Pitt?” É um segredo mal-guardado: há nomeados que recorrem a redatores profissionais. E este só pode ser o caso. Num filme sobre filmes, o discurso arranca com uma referência a discursos, gancho para um KO político direto, à distância de apenas uma vírgula – referência à absolvição de Donald Trump no processo de impeachment. Seguem-se, em crescendo, os agradecimentos a colegas e família, as recordações de infância e a estocada final: um agradecimento a Hollywood… num filme sobre Hollywood. Até a frase segue a lógica pescadinha de rabo na boca, com uma simples citação do título do filme, agora em contexto pessoal: “Era uma vez em… Hollywood”. Bravo.

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Toy Story 4, Melhor Filme de Animação

Frase: “Obrigado”

“Obrigado”, “obrigado”, “obrigado”. Como quem diz, “o nosso trabalho é criar alguns dos melhores filmes de animação do mundo, não receber prémios”.

“Hair Love”, Melhor Curta-Metragem de Animação

Frase: “A representação é muito importante, especialmente nos desenhos animados”

Pequeno filme. Grande mensagem.

Bong Joon-ho e Han Jin-won, Melhor Argumento Original, “Parasitas”

“Thank you. Great honor.”

Prémio “tradutora da noite”. Terá passado a mensagem à letra – é pena – o que confirma que a forma de agradecer dos sul-coreanos é tão previsível como a dos restantes habitantes do planeta. Pontos extra para o sorriso de Bong Joon-ho ao examinar o Óscar de todos os ângulos.

Taika Waititi, Melhor Argumento Adaptado, “Jojo Rabbit”

“Obrigado, por seres minha mãe. E, quero dizer, por muitas outras razões”

Mãe, ofereçam livros aos vossos filhos. Um dia, eles vão adaptá-los ao cinema, ganhar um Óscar e agradecê-lo com um adorável sotaque neo-zelandês. Pelo caminho, e como quem não quer a coisa, vão deixar uma mensagem política em favor dos “miúdos indígenas”: “We are the original storytellers” (Somos os contadores de histórias originais).

“The Neighbor’s Window”, Melhor Curta-Metragem

“Aprendi, ao observá-la, que uma história bem contada é uma coisa poderosa”

De novo, as mães. Agora uma em particular, que contou histórias a um rapazinho que um dia resolveu fazer disso a sua vida. O Óscar é para ela e para todas as outras (e outros) contadores de histórias. Ergam-lhes uma estátua.

“American Factory”, Melhor Documentário

Frase: “Acreditamos que as coisas vão melhorar quando os trabalhadores mundo fora se unirem”

Abram alas para os documentaristas e as suas mensagens subversivas. Melhor visual, conteúdo e atitude. Be kind, rewind.

“Learning to skateboard in a Warzone (If You’re a Girl)”, Melhor Curta-metragem Documental

Frase: “Estou a trabalhar no Afeganistão desde 2005 e este filme é a minha carta de amor às raparigas corajosas daquele país”

Com uma frase destas, fica difícil dizer muito mais sobre um discurso que, na essência, procurou resumir um filme numa mão cheia de palavras. E que conseguiu. Podia até dar outro Óscar.

Laura Dern, Melhor Atriz Secundária, “Marriage Story”

“Há quem diga ‘nunca conheças os teus heróis’, mas eu digo que se forem realmente abençoados, os vossos heróis serão os vossos pais”

Graça e tranquilidade. Ao cabo de uns inacreditáveis 40 anos de carreira, na véspera de completar 53 anos e acompanhada pela mãe, Laura Dern mostra como se faz. Da mesma forma que noutra encarnação tanto foi musa de David Lynch como estrela de “Jurassic Park”, ao agradecer o Óscar para melhor atriz secundária deslizou sem esforço dos previsíveis agradecimentos, para o tema do filme – “ultrapassar diferenças em nome da família, do lar e, esperamos, para o bem de todos nós, do planeta” – e a comovente homenagem aos pais. Baumbach chorou.

Roger Deakins, Melhor Fotografia, “1917”

“Isto pertence a muita gente que trabalhou neste filme”

“So that was a cinematographer!” (“Então, isto é que um diretor de fotografia!”) O comentário é da atriz Julia Louis Dreyfuss, que lhe entregou o Óscar e permaneceu em palco para anunciar o seguinte. Óscar para Melhor Fotografia, mas também para melhor porte aristocrático, melhor fisionomia, melhor balancear nervoso, melhor mão inquieta que coça a têmpora, coça o queixo, penteia o cabelo, coça a têmpora, penteia o cabelo… melhor sotaque.

Bong Joon Ho, “Parasite”, Melhor Filme Internacional

“Esta noite vou beber. Descanso de manhã. Obrigado”

É difícil aferir se houve mais suspense antes de Penélope Cruz ler o nome do vencedor ou nos vários momentos em que o auditório aguardava em silêncio pela tradução do discurso do realizador sul-coreano. No momento em que a equipa do filme de levanta, ninguém sabe como reagir. Até que a intérprete traduz e a coreografia ganha sentido. É comédia física no seu melhor, mesmo que inadvertida.

Hildur Gudnadottir, Melhor Banda-Sonora original, “Joker”

“Para as raparigas, as mulheres, as mães, as filhas que ouvem a música a borbulhar por dentro: por favor, façam ouvir a vossa voz, precisamos de vos ouvir”

Tão forte e frágil ao mesmo tempo, tal e qual a música que fez para o filme de Todd Phillips. É raro ouvir uma voz e um discurso que batam tão certo com o trabalho premiado.

Bong Joon-ho, Melhor Realizador, “Parasitas”

“Obrigado. Vou beber até de manhã”

Ele admite, por interposta pessoa (a intérprete, quem mais?), que depois de ter ganho o Óscar para Melhor Filme Internacional achou que estava despachado. O que mostra que por vezes o melhor discurso é aquele que não era para ser. Desorientado, articula uma ideia: “O mais pessoal é o mais criativo”. O resto é homenagem, ao cinema, aos restantes nomeados, mas sobretudo a Scorsese. “Quando estava na escola estudei os filmes do Martin Scorsese.” O público expira de alívio por poder aplaudir um dos seus.

Joaquin Phoenix, Melhor Ator, “Joker”

“The greatest gift [acting] has given me, and many of us in this room, is the opportunity to use our voice for the voiceless”

É um feito, ganhar um óscar, pegar nele e falar durante três minutos e 40 segundos sem esboçar um sorriso. A banda sonora de “Joker”, entretanto premiada com um óscar, parece feita para o momento. É o discurso político da noite. Negro, gráfico e solene. Do púlpito, Phoenix não escolhe um tema em particular; fala de todos, porque todos, diz ele, têm um chapéu comum, a injustiça. Vai apontando o dedo, incluindo a si próprio. Alivia (um pouco) o desconforto com um repto final ao amor e às segundas oportunidades: “Run to the rescue with love and peace will follow.” Uma dúvida persiste: quantas daquelas pessoas terão levado para as after-parties a imagem de vitelos arrancados à mãe em nome dos seus cafés com leite?

Renée Zellweger, Melhor Atriz, “Judy”

“Quando celebramos os nossos heróis somos lembrados de quem somos como povo único, unido”

O discurso mais longo da noite. Sem ponta de nervosismo – ou de qualquer outra emoção. Zellwegger está num palco, está em casa. E ali se deixa ficar. Agradece, nomeia heróis, fala de Judy Garland – símbolo, diz ela, de tudo isto. A sala rende-se, sem outro motivo aparente para lá do poder magnético da representação.

“Parasitas”, Melhor Filme

“Estou sem palavras”

Os produtores não sabem o que dizer. O público do Dolby Theatre também não. Os humores variam entre a estupefação e o êxtase. Salva a face da equipa – e da cerimónia – uma das atrizes, que começa por dizer (em inglês) que gosta de tudo no realizador: “do sorriso, do cabelo louco, da forma como anda, da forma como fala.” Aquilo que por momentos se teme ser uma desastrosa declaração de amor, acaba por se tornar num ternurento e certeiro discurso de agradecimento, “ao público dos filmes coreanos”, “que nunca hesitam em dar opiniões sinceras, que nos permitem ir sempre mais longe.” Ou, como se diz em inglês, “thank you”.