A primeira vez, em 2004, foi Melhor Atriz Secundária em “Cold Mountain”, de Anthony Minghella. De um filme passado na Guerra Civil Americana para o papel da diva Judy Garland em 1969 e eis o Óscar de Melhor Atriz Principal, atribuído na madrugada de domingo para segunda-feira.

As apostas iam quase todas nesse sentido. O crítico de cinema do Observador já tinha registado que Renée Zellweger não só merecia como iria ganhar a estatueta pelo “papelão” na cinebiografia “Judy”, de Rupert Goold. E assim foi, culminar de um recente percurso de galardões: Critics’ Choice e Globo de Ouro no início do ano e ainda há poucos dias o BAFTA.

Se a mãe de Liza Minnell, Judy Garland, atriz e cantora da “era dourada” de Hollywood, teve uma vida tormentosa de traições, violência, drogas e tentativas de suicídio, Renée Zellweger aparentemente não conhece tamanha escuridão. Judy morreu por overdose de medicamentos a 22 de junho de 1969. Renée nasceu dois meses antes, a 25 de abril, filha de pai suíço, o engenheiro mecânico Emil Erich Zellweger, e mãe norueguesa, a enfermeira obstetra Kjellfrid Irene.

[trailer de Judy]

“Cresci num ambiente muito diferente”, respondeu recentemente quando lhe pediram que comparasse a sua vida à da protagonista de “O Feiticeiro de Oz”. “Por sorte, nunca segui o caminho das drogas e se tive problemas emocionais contei com amigos, colegas e uma família que me protege. Os meus pais viajavam pelo mundo, tinham prioridades muito diferentes e transmitiram-me a mim e ao meu irmão o sentido da curiosidade e da aventura.”

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Aos 50 anos, a texana que o grande público descobriu em 2001 ao lado de Hugh Grant em “O Diário de Bridget Jones”, parece ter os pés bem assentes na terra, mesmo se passou um período conturbado que a levou a afastar-se do cinema nos últimos anos. Perguntaram-lhe há pouco se é difícil triunfar em Hollywood e ela respondeu que o triunfo foi quando disse a si mesma: “Não posso continuar a ser empregada de mesa, vou mas é ganhar a vida como atriz”. Estávamos no início da década de 90.

[o discurso de Renée Zellweger, depois de ter ganho o Óscar:]

Renée Kathleen Zellweger terá tido uma infância preenchida e aberta a todas as possibilidades. Na escola foi cheerleader, ginasta e atriz amadora, enquanto em casa o pai chegou a ensinar-lhe a arranjar automóveis. Ao ingressar na Universidade do Texas, em Austin, onde cursou inglês, foi obrigada a trabalhar ao mesmo tempo, porque o pai terá ficado desempregado. Entrou em anúncios publicitários de cervejas e fez filmes experimentais de baixo orçamento. “Jovens em Delírio” (1994), do estreante Ben Stiller, e “Massacre no Texas: O Regresso” (1995), de Kim Henkel, podem ser referidos como as primeiras incursões mais sérias no grande ecrã.

“Pensei que iria desmaiar perante Tom Cruise”

Mal arrancou para Hollywood, conseguiu um papel principal em “Jerry Maguire” (1996), de Cameron Crowe, como namorada do protagonista Tom Cruise. As qualidades da atriz estavam prestes a ser reconhecidas com estrondo, pois foi este o filme que a fez estrela. A crítica do New York Times desfez-se em elogios: “A frescura desta atriz é uma escolha inspirada para contracenar com uma atração como Mr. Cruise. O banal encanto que ela revela é bastante fora do comum e faz com que ele desça à terra, o que nenhuma diva do cinema conseguiria.”

No mesmo jornal, meses antes da estreia, o nome de Renée Zellweger tinha tido honras de espampanante artigo a dizer que um papel daqueles, ao lado do galã Tom Cruise, era desejado por Winona Ryder e Bridget Fonda, mas fora parar a esta jovem texana de 26 anos, que não se levava muito a sério e até tinha um tom simplório – palavras do jornalista. “É uma espécie de heroína ao estilo Billy Wilder”, comentou Tom Cruise naquele distante 1996. O realizador acrescentou que ela não se deixava intimidar na presença da estrela masculina. “Pensei que iria desmaiar perante ele, mas assim que começámos a trabalhar limitei-me a seguir em frente”, contou a própria.

Estreia grandiosa, portanto, logo seguida de “The Whole Wide World”, de Dan Ireland, com igual opinião favorável da crítica. A estranheza do apelido era questionada e se ela admitia que na adolescência a tratavam apenas por Renée Z., qualquer mudança de apelido, para efeitos de nome artístico, estava totalmente fora de questão. “Se Arnold Schwarzenegger manteve o nome dele, eu posso muito bem manter o meu.” Quer dizer, não se vislumbrava a simplória que alguns intuíam, mas a impressão continuou e persiste.

Na viragem do século, em vésperas de conquistar as massas com “O Diário de Bridget Jones”, de Sharon Maguire, a norte-americana era retratada como estrela de Hollywood em ascensão que se fazia transportar num SUV de cilindrada e gostava de aparecer acompanha de um cão em Sunset Boulevard. Atriz de consequência presa no corpo de uma ingénua, insistiam. Aparecia em entrevistas de calções, ténis e sem maquilhagem e na rua cumprimentava toda a gente que lhe aparecia à frente. Definitivamente, para a imprensa, a figura pública próxima do povo, com o artifício de não ser artificial, não estava ainda na moda.

Até hoje Renée Zellweger vê-se marcada pela ideia de que a sua frescura no ecrã compensa uma suposta falta de sofisticação. Ainda em setembro, no Guardian, lia-se que chegou a uma entrevista sem tiques de estrela e logo se enfiou num sofá a conversar com a jornalista, sentada em cima das pernas.

Talvez por isso, depois de “Betty”, de Neil LaBute, e “Ela, Eu e o Outro”, em contracena com Jim Carrey (o namorado de então), assentou-lhe em 2001 como uma luva ser Bridget Jones, solteirona de origem suburbana e aspirações desastradas.

Salpicada pelo escândalo Weinstein

O êxito deu-lhe uma nomeação para os Óscares e permitiu duas sequelas: “O Novo Diário de Bridget Jones” (2004) e “O Bebé de Bridget Jones” (2016). Com “Chicago” voltou às nomeações, mas a Academia não cedeu. E só com “Cold Mountian” conseguiu que a reconhecessem como Melhor Atriz Secundária. Eram filmes produzidos pela Miramax, de Harvey Weinstein.

Renée Zellweger casou-se com o cantor Kenny Chesney em 2005 e ao fim de poucos meses pediu a anulação do matrimónio, supostamente por ele ser homossexual (o que o próprio sempre desmentiu). Namorou com o ator Bradley Cooper e mais recentemente teve uma relação de sete anos com o músico Doyle Bramhall. Em 2014, numa gala da revista Elle, apareceu de rosto alterado, quase irreconhecível, e foi alvo de comentários jocosos sobre o calibre das intervenções estéticas a que poderá ter-se sujeitado.

Mas nenhum episódio da esfera privada da artista terá tido maior impacto do que aquele que a ligou ao escândalo de alegados abusos sexuais protagonizados por Weinstein e que levou à criação do movimento de denúncia Me Too. Em 2017, a atriz Melissa Sagemiller sustentou em tribunal que soubera pelo produtor que Renée Zellweger e Charlize Theron lhe prestavam favores sexuais. Ela desmentiu à época e há meses numa entrevista ao Vulture regressou ao assunto em versão mais ambígua: “Nunca foi uma vítima. Senti sempre que sabia o que fazer em circunstâncias destas, nunca me senti insultada ou rebaixada. Não vivi as coisas dessa forma. Foi uma brincadeira.”

Longe dos holofotes e dos filmes de nomeada entre 2010 e 2016, mas só agora regressada com destaque, a atriz viveu um período de incertezas a nível pessoal e diz que precisou, pela primeira vez, de recorrer a um psicoterapeuta. “Ele disse que eu passava 99% do tempo em personagem e uma fração microscópica de tempo na vida real”, confessou. Teve de parar e repensar prioridades. O prémio da madrugada de segunda-feira parece encaminhá-la para uma consagração de meia-idade com futuro em aberto.