Os futebolistas são, no contexto do desporto em Portugal e da violência que surge nesse meio, “alvos fáceis” para insultos e ataques, tornando-se “uma espécie de subcidadãos”, disse esta quinta-feira à agência Lusa o investigador José Neves.

Há uma questão estrutural importante, que é a forma como os jogadores de futebol têm vindo a ser olhados já há muitos anos, e não se alterou. São alvos fáceis, de insultos, de insultos racistas, como o caso do Marega, de violência”, explicou o investigador da Universidade Nova de Lisboa à Lusa.

José Neves é autor de vários artigos sobre a história do futebol, como “O desporto enquanto paz. Contributo para a história de uma ideia”, que “analisa e discute o modo como o desporto foi sendo idealizado como um factor de pacificação do mundo e da sociedade da segunda metade do século XX à actualidade”, publicado em 2016 na Revista Digital, da Argentina, tendo coordenado ou editado várias publicações sobre desporto, história e sociologia.

Na opinião do também docente universitário, o que aconteceu ao avançado maliano do FC Porto no domingo, em que abandonou o relvado na visita ao Vitória de Guimarães após ouvir insultos racistas, comprova que “o grau de violência sobre o jogador de futebol” está acima “do que sofre qualquer outro ‘performer’ da indústria do espetáculo”. Esse grau, diz, é ainda “muito devedor da imagem dos gladiadores, salvaguardando riscos de anacronismo”, na medida em que se tornam “objetos performativos” e a “indústria que deles vive não os reconhece como sujeitos iguais”.

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Assim, tornam-se “apedrejáveis”, alvos de insultos e outros abusos, como a perda de direitos cívicos ou laborais, “como o controlo do peso fora do espaço e do tempo de trabalho”, entre regras que se compreendem “pela especificidade da atividade” e outras que os tornam “uma espécie de subcidadãos”.

Não têm direito de fala, porque tudo é negociado e controlado pelos gabinetes de comunicação”, exemplificou.

A somar ao facto de serem “sujeitos destituídos de um conjunto de direitos de cidadania elementares, a nível laboral e estatuto cultural” que lhes é atribuído, há ainda “um conjunto de preconceitos” em torno da figura.

“Há um estatuto de subcidadania que se desculpa com o facto de ganharem imenso dinheiro”, comentou. José Neves considera esta noção “decisiva”, exemplificando com o ataque à academia do Sporting em Alcochete, que evidencia como os jogadores “estão ali para serem insultados, apedrejados, para lhes ser cobrado” um serviço. Assim, nunca surgem “na figura do cidadão, com direitos e estatuto profissional”, e nesse quadro “a figura do Marega, com aquele gesto, contraria muito bem”, classificando a saída de campo como “um ato de extraordinária força e assertividade”.

O avançado do FC Porto recusou-se a permanecer em jogo e abandonou o campo, ao minuto 71, após ter sido alvo de insultos racistas por parte dos adeptos do clube vimaranense, numa altura em que os “dragões” venciam por 2-1 – anotou o segundo golo -, resultado com que terminou o encontro da 21.ª jornada da liga, no domingo.

Marega marcou, festejou a apontar para o braço, fugiu de cadeiras, ouviu insultos racistas e saiu – tudo em dez minutos

O Ministério Público instaurou um inquérito na sequência deste incidente, que já mereceu a condenação do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do primeiro-ministro, António Costa, entre outros.

Casos de violência no futebol “prejudicam” economia do setor

Os casos de violência no futebol “prejudicam” a viabilidade económica da indústria em torno da modalidade, disse também à agência Lusa a docente universitária Maria José Carvalho, desde o afastamento de patrocinadores ao público.

Na opinião da docente da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP), em que integra a Comissão de Ética, “é evidente” que os casos fragilizam a economia do setor, tanto no público como nos patrocinadores, que gostam “de estar associados a algo que acrescente valor ao seu negócio” e não a algo “que o vá destituir de grandeza”.

Há exemplos de patrocinadores que têm resolvido os contratos com equipas ou atletas por determinadas práticas que são contrárias aos seus valores, como por exemplo no doping, em várias modalidades”, explicou.

Ao nível do público, casos como os insultos racistas que sofreu Marega, o ataque à academia do Sporting em Alcochete ou o rebentamento de petardos, por exemplo, podem afastar os adeptos dos estádios.

Obviamente que, quando há problemas deste género, muitas pessoas dizem que não vão ao estádio, que não levam as crianças. Durante muitos anos não fui ao futebol por ter estado no jogo do ‘verylight’”, acrescentou, referindo-se à morte de um adepto do Sporting na final da Taça de Portugal de 1996, pelo rebentamento de um destes engenhos pirotécnicos.

Também José Neves vê este tipo de casos como “um obstáculo, para patrocínios e mais diretamente na bilheteira”, tanto para “públicos novos” a quem seria vendido “um espetáculo relativamente pacífico” e encontra, por exemplo, o “rebentamento de petardos”, algo a que um adepto frequente “já está habituado”.

O principal problema, do ponto de vista da viabilidade mercantil do futebol em Portugal é, primeiro, a posição relativamente subalterna da economia do país no contexto europeu, e depois a grande desigualdade interna”, diagnosticou o investigador, que vê “três grandes clubes” destacados do resto mas mesmo entre eles com várias diferenças de poderio económico.

A falta de vontade de “estabelecer um pacto de liga” e fortalecer a competitividade interna também constitui um problema económico para o setor, com José Neves e Maria José Carvalho a concordarem que a falta de distribuição centralizada de receitas televisivas aumenta “a desigualdade da competição”, ao contrário da lógica da Liga inglesa, destacou o docente universitário da Nova.

José Neves recorda que a criação da “Premier League”, nos primeiros anos da década de 1990, veio alterar o consumo do futebol nos estádios para continuar a fazer frente ao problema da violência, aí mais centrada no “hooliganismo”, com uma mudança do tipo de públicos, deixando de ser “um desporto de massas” para afastar os escalões socioeconómicos mais baixos dos estádios, que passaram, também, a ter lugares sentados em vez de os adeptos estarem de pé.

Ainda assim, as soluções adotadas no contexto britânico não poderão ser transpostas para Portugal, defende José Neves, por se tratar de introduzir “uma lógica de desigualdade” mas também pela base de apoio popular e lógica de “associativismo” associada ao futebol português, que depende de um “consumo muito mais alargado”.

Portugal tem quadro legal contra violência no desporto “robusto”

Portugal tem um quadro legal contra a violência no desporto “robusto”, mas faltam medidas de educação e um “esforço concertado” para parar o fenómeno, acrescentou ainda a docente universitária Maria José Carvalho.

Segundo a docente, faltam medidas no seio da indústria futebolística para fazer frente ao problema, desde o racismo a uma questão mais geral da violência no desporto.

O segundo ponto do artigo 79.º da Constituição da República Portuguesa consagra ao Estado promover a prática desportiva “bem como prevenir a violência no desporto”, algo incluído na revisão constitucional de 1989, e Maria José Carvalho considera que Portugal tem um quadro legislativo “robusto”, num aditamento que surgiu em resposta à tragédia de Heysel, em 1985, quando morreram 39 pessoas que forçaram a entrada na final da Taça dos Campeões Europeus desse ano.

Carvalho, que jogou andebol até aos 30 anos, vê na sociedade portuguesa “sinais preocupantes” que pertencem também ao enquadramento internacional, realçando que há em Portugal “um conjunto enormíssimo de modalidades” e que fenómenos racistas, por exemplo, “não acontecem todos os dias”, pelo que importa discernir “a dimensão do futebol profissional e do espetáculo”. Ainda assim, é preciso agir e não só no “impulso de expressão repúdio, que é muito bom”. “Gostaria de ver as entidades, públicas e privadas, a anunciar um conjunto de ações, e não vejo outro que não seja o investimento na educação”, considerou.

Maria José Carvalho pede ainda uma intervenção do ministro da Educação que tem a tutela do desporto, Tiago Brandão Rodrigues, para que anunciasse medidas concretas em conjunto com os agentes da indústria desportiva.

Gostava de ver ações concretas para minimizar estes problemas, porque isto é o reflexo da sociedade. O que sentimos é que as pessoas pensam sempre nos direitos e não nos deveres, e assim podem tudo, bater no professor ou no médico. É paradigmático”, acrescentou.

Na opinião da docente universitária, “há um papel mimético” para os adeptos que vejam dirigentes a proferirem “declarações de ódio e de hostilidade” que levam a que esses comportamentos sejam “multiplicados”.

Quando os próprios dirigentes entram nestas guerrilhas com declarações cujo epicentro é sempre o mesmo, e pensam que assim conseguem tirar dividendos, só estão é a menorizar a indústria do futebol”, sentenciou.

O investigador da Universidade Nova de Lisboa, José Neves, concorda que o problema do racismo e da violência no desporto não se circunscreve ao fenómeno desportivo, até porque “os adeptos só o são num tempo reduzido da sua semana, depois são muitas outras coisas”.

É um problema que deve ser combatido no futebol, mas também nas outras esferas da sociedade onde existe”, explicou o docente universitário, que vê este como uma questão “transversal à sociedade portuguesa que se manifesta no desporto, na ordem pública, na segurança e até no Parlamento”.

José Neves vê no clima de hostilidade e violência em torno do futebol português um problema que começa mas não se esgota nas claques desportivas, mas em toda a linha, até pela relação entre estes grupos e “as direções dos clubes”, que as usam como “braços armados” para intimidar a oposição, os próprios jogadores e jornalistas. Ainda segundo o mesmo investigador, há um conjunto de “figuras intermédias que são uma espécie de funcionários desta paixão futebolística”, entre assessores de imprensa e oficiais de ligação aos adeptos.