Um antigo serralheiro de Pedrógão Grande deixou a construção civil para ser escultor e conceber peças únicas com sucata, mas ainda gosta de mostrar portões de ferro que aplicou nas aldeias durante décadas.

Dom Quixote e Sancho Pança, protagonistas do romance “Dom Quixote de la Mancha”, de Cervantes, Luís de Camões e Fernando Pessoa são algumas das figuras que têm inspirado o artista, de 66 anos.

Ainda criança, António Manuel Henriques abalou para Lisboa, onde teve vários empregos, o último dos quais durante uma década numa empresa metalomecânica.

“Antigamente, fazia portões, portas, gradeamentos e latadas, mas ninguém me ensinou”, afirma à agência Lusa, na oficina dos Troviscais, município de Pedrógão Grande e distrito de Leiria.

Tinha 24 anos quando regressou à terra. Pretendia trabalhar como torneiro mecânico na Sertã, distrito de Castelo Branco, tendo acabado por refazer a vida em serralharias do concelho natal, nos lugares de Mosteiro e Valongo.

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“Nem sequer sabia soldar. Por minha conta é que comecei a aplicar-me”, recorda António Henriques, junto às principais figuras de um presépio original: José, Maria e Menino Jesus.

Da iconografia cristã, passa para a astronomia e a simbologia maçónica, exibindo uma esfera armilar e um “olho que tudo vê”, respetivamente, os dois de grandes dimensões. “Estou na fase de fazer as coisas de que gosto”, refere o escultor, que só há poucos anos enveredou pela arte.

Idealiza e concretiza as obras em função das sucatas disponíveis, que tanto podem ser correntes, martelos, marretas, picaretas, tesouras, forquilhas e enxadas, por exemplo, como peças de automóveis, máquinas e eletrodomésticos.

“São coisas que faço por gosto”, congratula-se, enquanto discute inovações e técnicas de construção com o vizinho Aires Henriques, fundador do Museu da República e da Maçonaria, nos Troviscais, que encerrou as portas ao público no ano passado.

Na vila de Pedrógão Grande, António possui uma loja onde os clientes podem apreciar os trabalhos já acabados. “Nada morre, tudo se transforma”, lê-se no cartaz de uma exposição realizada na Castanheira de Pera, numa alusão à lei enunciada por Lavoisier no século XVIII: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Sempre que pode, o homem vasculha depósitos de ferro-velho dos doadores. Por vezes, quando encontra a peça ideal para determinado projeto, opta pela sua aquisição. “Compro algumas na feira das velharias. Olho para elas e verifico que dão para isto ou para aquilo”, explica. Tem clientes nacionais e de outros países.

“Um casal holandês, sempre que vem de férias a Portugal, em geral leva uma peça”, segundo António Henriques. Vende algumas obras a 50 euros, enquanto outras, que “levam semanas a fazer”, podem custar 2.500 euros.

Nas povoações de Mosteiro e Troviscais, o artista, que se define como “curioso e autodidata”, consegue identificar trabalhos que fez quando era serralheiro, incluindo latadas e gradeamentos. No Mosteiro, que integra a rede turística Aldeias do Xisto, existem portões de ferro de todo o século XX.

António vai descobrindo detalhes artísticos e métodos de produção anteriores à soldadura. Há portões de diferentes anos com as iniciais dos donos, quando as ruas não estavam identificadas e as casas não tinham número, o que aconteceu mais tarde numa ação das autarquias concertada com os Correios.

“As pessoas querem hoje mais discrição”, sintetiza o artesão. Admite desenvolver atualmente uma atividade “mais desenraizada” da concreta vida comunitária. Continua a trabalhar o ferro, agora como criador e sem a habitual pressão dos clientes de portões e demais obras utilitárias.

“Isto está a ficar deserto. Trabalho por gosto e também para a minha sobrevivência”, acentua.

O economista Aires Henriques tem incentivado o amigo a prosseguir a aposta na arte do ferro. “Ele percebeu que o mercado se alterou e que tinha de dar um novo sentido à sua vida”, testemunha o estudioso e divulgador do património cultural de Pedrógão Grande.

A escada de pedra que dá acesso à sua Torre da Princesa Peralta, nos Troviscais, tem a marca de António Henriques, que concebeu um corrimão a representar uma cobra e um bode.

“A grande imaginação acaba por ser dele. Num meio tão carente do ponto de vista cultural, este artista merece ser acarinhado”, defende.

Aires Henriques quer aprimorar a subida aos aposentos da filha do lendário rei Arunce. “Aquilo ainda não está acabado. Quero um lagarto a saltar para fora da escada”, revela. A cabeça do chibo sugere um dragão a cuspir lume, de acordo com o investigador. Na forja, a ferro e fogo, o homónimo Henriques dará vida ao sardão acossado pela serpente.