A Sociedade de Geografia de Lisboa considera que uma possível restituição de arte a países que estiveram sob administração portuguesa, deve ter em conta o contexto, e alertou para a necessidade de se conhecer as condições em que as peças foram trazidas.
Cada caso é um caso”, defendeu, em declarações à agência Lusa, o presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), Luís Aires Barros, que questionou se Itália e França vão devolver ao Egito os obeliscos que ornamentam as praças de S. Pedro e da Concórdia, respetivamente, em Roma e em Paris. “A pilhagem não foi o ‘modus operandi’ português”, argumentou Luís Aires Barros, para quem “todo o acervo da SGL é, basicamente, doado”.
O secretário-geral da SGL, general João Carlos Geraldes, por seu turno, argumentou que “o nosso caso é específico” e resulta “tão diferente quanto foi o nosso estar no mundo”.
A SGL, com mais de 150 anos, tem uma vocação de exploração científica e a sua história cruza-se com a política colonial portuguesa, da monarquia à República. Foi uma missão da SGL que fez o levantamento geográfico dos antigos territórios ultramarinos, e muitos dos seus associados lideraram diferentes missões científicas.
O Museu da SGL conta com várias coleções de arte de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Congo, Benim (atual Nigéria), Moçambique, Guiné-Bissau e Egito, entre outras áreas geográficas. A diretora do museu, Manuela Cantinho, disse à Lusa que “a maioria das peças é por doação”, e “sabe-se o contexto de onde vieram”.
A história como as coleções se constituíram é fundamental”, alertou a responsável, citando o caso de Henrique de Carvalho (1843-1909), que foi oficial do Exército. “A história da recolha das coleções tem muito a ver com a história da Antropologia neste país”, disse Manuela Cantinho, prosseguindo: “Os grandes nomes da Antropologia portuguesa, como Consigleri Pedroso, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcellos eram sócios da SGL”.
São estes e outros homens que, “a dado passo, consideram que, para se conhecer, é preciso fazer recolhas etnográficas, e solicitam peças às ex-colónias”, uma opção fortalecida pelas várias exposições internacionais que entretanto se realizaram, disse a responsável. “Os antropólogos e os historiadores têm algum conhecimento como as coleções eram constituídas, o trabalho de campo, a dificuldade que tinham em obter determinadas peças. Os africanos não se desfaziam de certos objetos e não davam toda a informação sobre esses objetos”, afirmou Cantinho.
“Há uma prática de recolha científica, de que a maior parte da população não tem noção e, generalizar que tudo o que foi recolhido foi ‘saqueado’ é desconhecer como a antropologia se foi instalando, embora saibamos que certos países, nomeadamente a Alemanha e a Bélgica, tiveram outras práticas, mas não é o caso Portugal”, assegurou à Lusa.
Nós recolhemos uma ínfima parte e por impulsos, no final do século XVII, depois no século XIX (segunda metade do século XIX) e, por último, na segunda metade do século XX”. “Nos acervos do Museu Nacional de Etnologia, de Coimbra e até do Porto, estão alguns milhares de objetos, enquanto nos museus etnológicos alemães estão cerca de 500 mil objetos recolhidos em meia dúzia de anos, em diversos continentes”.
Há diferenças “ao nível do contexto da recolha, como de país para país, estamos a falar de patamares muito diferentes”, sublinhou Cantinho. A responsável estima que a SGL tenha cerca de 15 mil objetos provenientes de África.
Manuela Cantinho citou Henrique de Carvalho, que documentou a sua investigação, alvo de um volume publicado pela SGL, “Henrique de Carvalho, a expedição (1884-88)”. Henrique de Carvalho iniciou em 1884 a investigação sobre o território do então Império Lunda, no nordeste de Angola. Da equipa do explorador fizeram parte o farmacêutico Agostinho Sesinando Marques, para colher ervas supostamente medicinais, espécimenes botânicas para a constituição de herbários que estão hoje nos museus de Lisboa e de Coimbra, e o fotógrafo Manuel Sertório de Almeida.
Henrique de Carvalho trouxe muitas peças que foram oferecidas pelos chefes locais, e outras pediu aos artesãos para fazer “cópias”, pois não lhe foram entregues. “Está tudo anotado no seu diário. Há peças que nenhum africano se desligaria delas”, disse a responsável.
O devolver peças tem várias implicações, e o principal não é a peça em si, é o conhecimento que adquirimos sobre a peça. A excelência da cultura africana está nesse conhecimento”, declarou Manuela Cantinho à Lusa.
Ao contrário do que se passa com as coleções de arte africana, no museu da SGL são poucas as peças da Índia e do Brasil, por exemplo, territórios onde a presença portuguesa durou também séculos. “Nós nunca tivemos essa intenção de ‘sacar'”, sublinhou Manuela Cantinho.
Existem histórias que merecem a nossa reflexão. Por exemplo, a coleção exposta atualmente no Museu de História Natural e da Ciência, da Universidade do Porto, ‘Culturas e Geografias’, e que resulta de uma permuta entre Portugal e a Alemanha. O nosso país em 1927 decidiu devolver à Alemanha as coleções arqueológicas da Assíria, que tinha apreendido durante a I Grande Guerra. Como recompensa diversos museus de Berlim fizeram uma seleção de objetos, nomeadamente da Melanésia, Camarões, Grécia e do Egito, que enviaram para Portugal. Muitas destas intrigantes histórias só muito recentemente têm sido investigadas”, disse Cantinho.
“Por exemplo: a coleção de sarcófagos egípcios e as respetivas estatuetas [foram] uma oferta do Museu do Cairo à SGL em 1893, como ofereceu a outras sociedades científicas e museus da Europa”, referiu por seu lado Luís Aires Barros à Lusa. O espólio ficou em Portugal na sequência do contexto da Grande Guerra Mundial (1914-1918), e do apresamento dos navios de bandeira alemã que estavam em águas portuguesas. A SGL advertiu ainda que “uma grande parte da arte africana em Portugal está em mãos privadas”.
Manuela Cantinho realçou que a diferenciação dos casos se aplica também aos países. “Nós não somos a Alemanha que organizou campanhas de recolha de obras e hoje o Museu em Berlim tem 600 mil peças, quando nós temos umas dezenas”.
Portugal beneficiou destas campanhas alemãs de recolha, pois ficou “na posse de algum espólio”. Foi o que aconteceu no âmbito da I Grande Guerra, quando também se apresaram alguns navios com bandeira do Império Alemão, que passavam ao largo da costa portuguesa, o que foi tomado como ato hostil.
Outro caso é um conjunto de peças do Benim, adquiridas por um cidadão alemão que as ofereceu ao museu da SGL.